10 Julho 2023
A reabertura do caso Lintner é uma daquelas ocasiões que não se repetem nas passagens epocais da vida da Igreja – por isso, deve ser tratada com extremo cuidado e atenção, por um lado, e com igual franqueza e transparência, por outro.
O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 07-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A Coordenação das Associações Teológicas Italianas [CATI] assumiu a intervenção da Associação Teológica Italiana para o Estudo da Moral, que foi relançado aqui. Desse modo, queremos expressar solidariedade ao Prof. Lintner e compartilhar as preocupações mais gerais que o lançamento levanta. Esperamos que, também à luz deste caso individual, se possa caminhar com inteligência e amor, mas também com decisão, rumo a um modo de ser Igreja que saiba valorizar a vocação e a tarefa da teologia, precisamente onde a fé se confronta com a realidade das mulheres e dos homens de hoje, buscando, como em um ‘laboratório cultural’ (cf. Francisco, Veritatis gaudium, n. 3), as estradas mais adequadas para compreender e implementar a novidade do Evangelho. Também nos parece necessário que se abra, nos lugares apropriados e interessados, uma reflexão que alimente aquele processo de renovação, inclusive institucional, que o Papa Francisco indicou na carta enviada ao novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (1º de julho de 2023). Para tal fim, oferecemos a nossa disponibilidade para um debate construtivo, em particular em relação à transparência dos procedimentos vaticanos de avaliação e de julgamento, no que diz respeito aos papéis e às tarefas a que cada um é chamado” (comunicado de imprensa do CATI sobre o caso Lintner).
“Nós que formamos a comunidade MorAr, Sociedade de Teólogos e Teólogas Moralistas Argentinos, com sentido sinodal de fraternidade, queremos manifestar nosso apoio ao teólogo italiano Martin Lintner OSM. Somos conscientes da valiosa contribuição do professor Martin Lintner como teólogo moralista, pesquisador inquieto na busca da verdade e do bem moral, respeitado por sua profundidade teológica no diálogo respeitoso com a Igreja, frente à qual ele mesmo reconhece sua fiel filiação e seu respeito e fidelidade ao Magistério. Tendo interiorizado a negativo do ‘nihil obstat’ para a nomeação de Martin Lintner para presidir o Instituto Teológico de Bressanone pelos órgãos competentes, cremos que continua sendo necessário na Igreja aprofundar a transparência, a caridade e o sentido de comunhão e sinodalidade nos processos e métodos de tomada de decisão.
O Santo Padre Francisco, em sua recente carta ao novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Dom Victor Manuel Fernández, expõe a necessidade de ‘um pensamento que saiba apresentar de modo convincente um Deus que ama, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as convoca ao serviço fraterno’. É a mesma carta na qual o Papa Francisco exorta o novo prefeito a concentrar seu tempo em estimular o pensamento da Igreja, o progresso da doutrina, a reflexão a serviço da evangelização, mais do que a perseguição ou o controle doutrinal.
Essa carta anima o nosso compromisso na promoção do saber teológico moral, que, cimentado na Sagrada Escritura e na Tradição, é capaz de dialogar com as ciências e as culturas para dar razão de nossa esperança ao mundo inteiro (cf. OT 16). É com essa esperança solidária que queremos abraçar o nosso irmão Martin Lintner e todos aqueles que possam experimentar situações semelhantes, enquanto permanecemos unidos em oração por eles e por uma Igreja do encontro, que é sinodal e missionária” (comunicado da Sociedade de Teólogos e Teólogas Moralistas Argentinos).
Como se pode deduzir dessas duas afirmações sobre o caso Lintner, que idealmente unem o continente europeu ao latino-americano, a teologia tem reagido de modo propositivo, desejando um diálogo em favor da Igreja e, nela, do exercício do ministério teológico. Desejo que encontra agora uma primeira confirmação concreta.
Depois de anunciar, em 26 de junho, a necessidade da eleição de um novo reitor pelo Conselho da Faculdade Teológica Acadêmica de Bressanone, devido à rejeição do “nada obsta” ao Prof. Martin Lintner, no dia 6 de julho, Dom Ivo Muser comunicou que, após “um diálogo cordial e aberto, que nunca foi interrompido, com o Dicastério para a Cultura e a Educação, concordou-se em prorrogar o mandato do atual reitor – o professor Alexander Notdurfter – até o dia 31 de agosto de 2024. Esse tempo garantirá a calma necessária para amadurecer juntos as questões que surgiram e que envolveram também outros dicastérios”.
No que diz respeito aos procedimentos em vigor até agora, a Igreja Católica, portanto, está tomando o tempo necessário para uma reflexão comum entre os dicastérios romanos e as instâncias teológicas envolvidas, a fim de amadurecer os esclarecimentos necessários e identificar o que nesses procedimentos é bom mudar.
A esperança é de que se consiga sair de uma ambivalência estrutural, ainda muito presente na parte jurídica da Veritatis gaudium, na qual, quanto à prática de concessão do “nada obsta” para cargos acadêmicos nas faculdades católicas de teologia, oscila-se, como sujeitos vaticanos competentes, entre a identificação específica da (então) Congregação para a Educação Católica e uma referência genérica à Santa Sé sem maiores esclarecimentos.
De um lado, hoje, o Dicastério para a Cultura e a Educação é a parte oficial da decisão sobre o “nada obsta” e a comunicação aos envolvidos. O documento para concessão ou não do “nada obsta” vem desse dicastério. De outro lado, o Dicastério para a Doutrina da Fé é o lugar onde, de fato, foi tomada a decisão – aliás, sem nunca aparecer explicitamente.
No passado, essa situação permitiu uma espécie de desaparecimento total da responsabilidade vaticana em casos de não concessão do “nada obsta”. Quem assinava não se considerava responsável, porque considerava que estava agindo em uma simples função notarial em relação a uma decisão tomada em outro lugar. Em outro lugar, o da Congregação para a Doutrina da Fé, precisamente, em que tudo permanecia coberto por um véu de anonimato (tanto nas notificações quanto nas comunicações), e, por isso, não havia ninguém com quem falar.
Em 2018, com a publicação da Veritatis gaudium, cujas partes normativas foram escritas dentro da própria Congregação para a Educação Católica, nada foi mudado dessa ambivalência processual. Um sinal tanto da prevalência de fato da congregação escondida atrás da expressão genérica “Santa Sé”, quanto da aceitação substancial pela Congregação para a Educação Católica dessa viscosidade interna à Cúria Romana e da falta de transparência que ela implicava. No fim das contas, para esta última, ela representava sempre uma justificativa para se recorrer em caso de rejeição do “nada obsta”.
Quando ao que foi comunicado por Dom Muser, parece representar um ponto de ruptura com o tácito consentimento acordado durante década a esses procedimentos. No breve comunicado do bispo de Bressanone, é indicado claramente o sujeito que pretende se encarregar dessa revisão e esclarecimento das práticas relativas ao “nada obsta”: ou seja, o atual Dicastério para a Cultura e a Educação, liderado pelo cardeal Tolentino.
Se efetivamente formos nessa direção, ou seja, se não nos limitarmos a uma solução ad personam, mas, a partir do caso Lintner, chegarmos a um debate franco e a um diálogo construtivo dentro dos dicastérios romanos, por um lado, e entre eles e as instituições, associações e representações teológicas católicas, por outro, poderemos chegar não apenas a procedimentos renovados, mas sobretudo a uma nova era de interlocução edificante entre os sujeitos do magistério e as práticas teológicas da catolicidade contemporânea.
Desse modo, o Dicastério para a Cultura e a Educação poderia se tornar o primeiro laboratório de sinodalidade efetiva, pública e transparente dentro da Cúria Romana. Foi dado um primeiro passo nessa direção, correspondendo assim também a uma explícita indicação de trabalho dada pelo Papa Francisco com sua reconfiguração da própria Cúria.
A reabertura do caso Lintner é uma daquelas ocasiões que não se repetem nas passagens epocais da vida da Igreja – por isso, deve ser tratada com extremo cuidado e atenção, por um lado, e com igual franqueza e transparência, por outro.
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Lintner: a reabertura do Vaticano. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU