30 Junho 2023
"[O cristão] é questionado em primeiro lugar pelo problema da responsabilidade das igrejas, porque não há dúvida de que Auschwitz não teria acontecido se não fosse pelos séculos anteriores de antijudaísmo cristão; e depois, portanto, da necessidade de pedir perdão a Israel e, novamente, converter-se a Deus", escreve Brunetto Salvarani, teólogo italiano, professor da Faculdade Teológica da Emília-Romanha. O artigo é publicado por Rocca, 01-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois que os fornos crematórios de Auschwitz terminaram de fumegar, depois que o judaísmo, contrariando as expectativas de muitos, voltou a criar raízes em Israel, depois que muitos perceberam a corresponsabilidade cristã pelo extermínio em massa dos judeus na Segunda Guerra Mundial e depois que a situação no Oriente Médio se revelou extremamente perigosa para a paz mundial, judeus e cristãos finalmente - infelizmente com grande atraso - entraram em diálogo e iniciaram novas reflexões de ambos os lados em ampla escala...": essa é a lúcida e compartilhável leitura oferecida por Clemens Thoma sobre o fato de que no coração da nova atitude cristã em relação a Israel – de que Il Poliedro tratou em várias ocasiões – reside o dramático evento do Holocausto. O que o pensador judeu ortodoxo Eliezer Berkovits, já em 1979, no volume With God in Hell tinha abertamente chegado a definir a “falência moral e espiritual da civilização e da religião cristã”.
Além disso, é opinião incontestável que, por trás da virada vistosa operada pelas igrejas cristãs em sua visão do povo judeu, o autêntico e traumático divisor de águas é representado pelo extermínio nazista: e que Auschwitz desempenha, como bem percebeu Franz Mussner, “uma função hermenêutica”, porque a mudança de ideias implica sempre um novo entendimento. E como o cardeal Walter Kasper confirma com autoridade: “Paradoxalmente, as primeiras aproximações remontam aos campos de concentração nazistas, onde judeus e cristãos empenhados encontraram-se unidos na resistência contra um sistema totalitário neopagão que desprezava a humanidade, descobrindo assim sua herança comum e suas concepções comuns dos valores humanos".
Afirmações que devem ser acompanhadas, além disso, por aquela que enfatiza a complexidade da uma reelaboração satisfatória de quão central é o cenário pós-Auschwitz, tanto no plano teológico como naquele da recepção pelo magistério católico.
O próprio cardeal Bea – o arquiteto da declaração Nostra aetate – já o havia admitido, durante o debate conciliar, inserindo a perspectiva do Holocausto entre as razões imperiosas que finalmente impunham um novo olhar por parte dos cristãos: “O bimilenar problema, tão antigo quanto o próprio cristianismo, das relações da Igreja com o povo judeu, tornou-se mais aguçado, e por isso se impôs à atenção do Concílio Ecumênico Vaticano II, sobretudo pelo terrível extermínio de milhões de judeus pelo regime nazista na Alemanha".
Enquanto o neotestamentista judeu Pinchas Lapide entrevia uma estreita conexão entre a redescoberta judaica da figura de Jesus – já comentada nesta coluna – e a experiência do Holocausto: “Só depois Auschwitz, retorna-se de parte dos cristãos, por assim dizer, a reumanizar Jesus, e precisamente deslocando a ênfase sobre o vere homo, sobre o homem verdadeiro, em uma época em que tão poucos bípedes são homens de verdade; Jesus torna-se assim um homem ideal. E entre os judeus ele agora sai do inferno de polêmica, que caracterizou toda a Idade Média, para retornar ao judaísmo de sua pátria. O irmão Jesus é finalmente levado de volta para casa como companheiro, como conterrâneo e consanguíneos - operações estas que não é difícil deduzir da leitura dos Evangelhos – aliás, até mesmo como sionista e companheiro de luta”. Tons sinceros, por parte desse corajoso autor, que em todo caso, sinalizam uma mudança de tom em relação ao passado, ao menos por parte de algumas elites judaicas.
Na realidade, deve-se dizer com a devida parrésia que, apesar das repetidas condenações ao antissemitismo após o fim da Segunda Guerra Mundial por várias entidades e assembleias eclesiais, estudando bem documentos similares, a tomada de consciência dos cristãos se apresentou no início ainda bastante superficial, e não produziu uma reflexão realmente aprofundada sobre as suas responsabilidades próximas e remotas no tempo. Enquanto parece indicativo o fato de que na Confissão das nossas culpas de outubro de 1945, votada pelo Conselho de Igrejas Evangélicas em Stuttgart, não há nem mesmo uma menção à tragédia dos judeus. Será apenas com o passar dos anos que, ainda que lentamente, a consciência cristã avançará na conscientização da centralidade estratégica de lembrar, para que um drama semelhante nunca mais volte a acontecer; mas acima de tudo pela necessidade do reconhecimento das culpas, também dos cristãos e do seu antijudaísmo constitutivo, a esse respeito.
Até o documento elaborado pela Comissão da Santa Sé para as relações religiosas com o judaísmo intitulado Nós recordamos: uma reflexão sobre o Holocausto, de 1998, significativamente precedido por uma carta do próprio João Paulo II ao presidente daquela entidade, o cardeal Edward Cassidy, no qual reconhecia que “o crime que ficou conhecido como o Holocausto permanece uma indelével mancha na história do século que está se concluindo". Desejando calorosamente, ao mesmo tempo, que esse texto - não surpreendentemente terminado após uma incubação particularmente longa e sofrida – "ajudar a sanar as feridas das incompreensões e das injustiças do passado". No capítulo V, o documento se debruça sobre o empenho vinculante para uma teshuva (arrependimento) por parte do Igreja Católica, que compartilha "tanto os pecados como os méritos de todos os seus filhos": "Lembrar esse terrível drama significa tomar plena consciência da salutar advertência que ele comporta: às sementes infectadas com antijudaísmo e antissemitismo nunca mais devem poder criar raízes no coração do homem". Nós recordamos, portanto, representa um passo notável, mas – olhando bem – ainda impregnado de ambiguidade, conforme a análise precisa a respeito oferecida por Stefano Levi Della Torre em 2000 num volume intitulado Errare e perseverare, em particular sobre as culpas de Igreja como tal (e não apenas de alguns de seus filhos, como afirma o documento do Vaticano).
Renzo Fabris destaca como uma experiência tão horrenda deixou impressos de forma duradora no espírito judaico os traços da dor, da solidão e da morte. Os testemunhos sobre o Holocausto são oferecidos pelos judeus à humanidade mais para que não se esqueça o que aconteceu do que para que aqueles fatos terríveis sejam lidos de maneira precisa: “Para um judeu que escuta a voz imperativo de Auschwitz - o autor na ocasião refere-se ao pensamento do rabino Emil L. Fackenheim – o dever de recordar e contar não é negociável. É sagrado... mas a teologia judaica ainda continua sem saber como responder a Auschwitz". Dentro da reflexão judaica, em geral, mal se podem apreender fragmentos, intuições isoladas: porque diante da terrível nudez de fatos como os ocorridos por ocasião do holocausto, não contam as explicações tradicionais que de alguma forma recorriam a Deus, usando os conceitos de pecado, expiação, martírio, e assim por diante. Em particular, resulta evidente a intolerância judaica a qualquer argumentação tradicional sobre o que aconteceu em Auschwitz: bastaria lembrar a posição de Elie Wiesel – sobrevivente do campo de concentração, escritor e ganhador do Prêmio Nobel da Paz – quando no Processo de Shamgorod sugere que apenas Satanás pode pretender explicar o extermínio no processo que os sobreviventes promovem contra Deus, acusando-o de ter abandonado seu próprio povo.
Aqui está, então, a pergunta fatídica: qual Deus permitiu que Auschwitz acontecesse? E que sentido tem hoje, depois de Auschwitz, falar de Deus? O filósofo judeu Hans Jonas acredita que, diante do Holocausto, para o judeu é possível admitir a compreensibilidade e a bondade de Deus - que são dois de seus atributos bíblicos fundamentais – apenas ao preço de abrir mão da onipotência divina. Jonas recorre aos conceitos do Deus sofredor, do Deus em devir, do Deus que cuida, mas ele avisa que o dele é apenas um balbucio.
O seu ensaio conclui-se, exemplarmente, com a seguinte consideração: “Depois de ter confiado inteiramente ao devir do mundo, Deus não tem mais nada para dar: agora quem deve dar é o homem. E o homem pode dar na medida em que não faça com que, por seu comportamento ou por sua culpa, Deus se arrependa de ter tolerado o devir do mundo”.
Essa força provocativa atinge, ou deveria atingir, até o cristão. Que é questionado em primeiro lugar pelo problema da responsabilidade das igrejas, porque não há dúvida de que Auschwitz não teria acontecido se não fosse pelos séculos anteriores de antijudaísmo cristão; e depois, portanto, da necessidade de pedir perdão a Israel (penso na oração de perdão do Papa Wojtyla durante o Ano Santo de 2000) e, novamente, converter-se a Deus. Tem ainda a questão, para o cristão, de criar uma figura de cristianismo que - depois do holocausto – lhe é concedida, de algum modo imposta: “Diante de Auschwitz – afirma com veemência o teólogo Johann Batista Metz – o que está em jogo não é simplesmente uma revisão da teologia cristã do judaísmo, mas uma revisão da teologia cristã como tal".
“Como historiadora é bastante fácil para mim descrever Auschwitz, contar como aconteceu o genocídio dos judeus. Em um certo ponto, no entanto, nos defrontamos com um núcleo absolutamente incompreensível e, portanto, inexplicável: por que os nazistas decidiram apagar os judeus da Terra? Porque gastaram tanta energia para encontrar velhos e crianças pelos quatro cantos da Europa que ocupavam – de Amsterdã a Bordeaux, de Varsóvia a Tessalônica – apenas por exterminá-los?”. A essas perguntas pretendia responder a historiadora francesa Annette Wievorka, que dirige o Centro Nacional de Pesquisa Científica na Sorbonne de Paris e tem vários livros a seu crédito sobre o Holocausto, no famoso Auschwitz explicado à minha filha. Perguntas que, no entanto, dentro de um período não muito amplo, correm o risco de parecer superadas. Não por sua obviedade, mas pela progressiva falta de testemunhas diretas daquele drama indizível que poderia favorecer as razões – por assim dizer – dos negacionistas, daqueles que sustentam que o Holocausto não aconteceu, ou pelo menos não com as proporções gigantescas que infelizmente conhecemos bem.
Enquanto que, na realidade, o extermínio de um terço da população judaica do mundo, o abrupto fim da feliz simbiose entre a cultura alemã e o judaísmo esclarecido (que, como se sabe, produziu experiências intelectuais extraordinárias, de Buber a Scholem), a destruição do microcosmo iídiche na Europa Oriental tiveram um impacto profundo e permanente na consciência religiosa e política judaica.
A complexidade dos problemas que a leitura desse evento causou, não só ao judaísmo, é realmente inimaginável. Mesmo a questão relativa à modalidade mais correta para nomeá-lo, sobre a qual se debateu por muito tempo (e nem é preciso lembrar a densidade simbólica do nome na tradição bíblica). Se o termo hebraico Shoá – desastre, catástrofe – no último quarto de século já se impôs em escala europeia, no universo anglo-saxão ainda se recorre a Holocausto: uma palavra cheia de ambiguidade porque corre o risco de vincular o que aconteceu a uma espécie de sacrifício ritual. Enquanto no âmbito ortodoxo judaico (haredim, hassidim) prefere-se falar de khurbn, adotando do iídiche um lema a meio caminho entre destruição total e sacrifício, e aludindo também a outras catástrofes da história, desde as várias destruições do templo em Jerusalém até a expulsão da Espanha em 1492 e aos massacres pelos cossacos em 1648. De qualquer forma, há um consenso geral sobre o fato de que o Holocausto, pelos objetivos de extermínio e pelas modalidades técnico-burocráticas de sua implementação, representa algo único na história da humanidade; e como tal foi elaborado por teólogos e filósofos, não apenas judeus. Mas a questão-chave, do lado israelense, permanece se o Holocausto constitui um novo paradigma na história e na memória judaica, a partir do qual seria necessário repensar a presença judaica no mundo, sua relação com as nações e até aquela com Deus.
Retomando Jonas e seu O conceito de Deus depois de Auschwitz: “Para o cristão, que espera a verdadeira salvação do além, este mundo (e especialmente o mundo humano, atingido pelo pecado original) pertence ao diabo e deve ser visto com desconfiança. Para o judeu, ao contrário, que vê neste mundo o lugar da criação divina, da justiça e da salvação, Deus é principalmente o Senhor da história: Auschwitz, para o crente, portanto, torna problemático o próprio conceito de Deus transmitida pela Revelação". E ainda: “Nada (da antiga tradição judaica) pode ser de alguma utilidade para a compreensão do evento chamado Auschwitz. Não há mais lugar para fidelidade ou infidelidade, fé ou agnosticismo, culpa ou punição, ou para termos como testemunho, prova e esperança de salvação e nem mesmo para força e fraqueza, heroísmo ou covardia, resistência ou resignação. De tudo isso Auschwitz não sabia nada, e devorou crianças que ainda não possuíam o uso da palavra e a quem essa oportunidade nem sequer foi concedida...”.
Termino com um autor da literatura italiana, o escritor judeu de Turim Primo Levi, que a partir da experiência extrema de Auschwitz, encontrou a confirmação da impossibilidade de pronunciar o nome de Deus pendurado na forca – o anjo de olhos tristes da Noite de Wiesel – mas também, paralelamente, a absoluta necessidade, para uma consciência coerente, de aceitar humildemente as raízes do povo que é Deus havia escolhido: com extrema laicidade, e usando como testemunho único o instrumento tão secular do narrar histórias.
Aquele Deus que, como apontou em uma famosa página de É isto um homem, cuspiria no chão a oração do piedoso judeu Kuhn, que no campo de concentração - ao final de uma seleção de prisioneiros destinados à câmara de gás - havia rezado a ele em voz alta, agradecendo-lhe por não ter sido levado na ocasião, mas esquecendo-se muito rapidamente da abominação que de qualquer forma havia sido cometida. Mesmo que por reflexão, também a sua, como aquela de todo judeu moderno, estava destinada a ser, irremediavelmente, uma "vida quebrada" (H. Arendt).
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O holocausto, divisor de águas entre cristãos e judeus. Artigo de Brunetto Salvarani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU