01 Julho 2023
“A história das mulheres tem uma tendência inquietante. Primeiro dá um passo à frente e depois dá dois passos para trás. Justamente em anos como estes em que as mulheres obtiveram mais reconhecimentos e mais direitos, como, por exemplo, a representação nas instituições, cresce a violência contra elas. Os crimes diminuíram, mas não os crimes contra o gênero feminino”. Dacia Maraini sempre cultivou uma paixão especial pelos acontecimentos da vida. Em seu último trabalho, In nome di Ipazia. Riflessioni sul destino femminile (Em nome de Hipátia. Reflexões sobre o destino feminino, em tradução livre, Solferino), por meio da coletânea de investigações, ensaios e artigos escritos desde a década de 1970 até os dias atuais, a escritora nos leva a uma viagem especial e aventureira pelos altos e baixos que marcaram as sortes femininas.
A entrevista é de Mirella Serri, publicada por La Stampa, 18-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Seu livro é dedicado a Hipátia, uma filósofa e matemática que desapareceu em março de 415 d.C. Por quê?
Astrônoma grega de Alexandria, filha de um grande filósofo, Téon, que a introduziu, desde criança, aos rudimentos da ciência, devemos a ela a invenção do astrolábio e do hidroscópio, instrumentos para o estudo matemático do firmamento. Ela é a primeira cientista que teoriza o fato da Terra não ser o centro do universo, mas um planeta que gira em torno do sol em um cosmo cheio de outros sistemas solares. Essas elaborações a tornam suspeita aos olhos dos cristãos do império romano, aos defensores fundamentalistas do dogma bíblico. Enquanto a jovem explica o fenômeno das estrelas diante do público entusiasmado é sequestrada e carregada à força em uma carroça pelo grupo dos Parabolanos (seita de fanáticos cristãos), estrangulada e cortada em pedaços. Parece que lhe arrancaram os olhos ainda em vida porque o seu olhar era um olhar herético sobre o universo.
Mulheres hereges e visionárias e mulheres que avançam na conquista dos direitos: cresce a raiva, a reação dos modernos Parabolanos. Como você explica isso?
Atualmente, não estamos mais assistindo a uma guerra entre os sexos. Mas a um choque de culturas. Mais as mulheres se emancipam e se tornam autônomas, mais ocupam cargos e têm funções de primeiro plano, mais aumenta a animosidade em relação a elas. Outro exemplo: por que 84% das pessoas visadas nas redes sociais são mulheres? Tudo isso é bem conhecido pelas vítimas de assédios que muitas vezes desembocam na vontade precisa de destruir o outro. Se você não pode ou não quer ser minha, ou seja, se você não pode e não quer ser controlada, dominada por mim, eu vou matar você. A sua liberdade coloca em discussão o meu estar no mundo.
A prática do feminicídio é intrínseca à natureza do homem belicoso e violento?
De maneira alguma. A crueldade, mas também a ferocidade, pertencem a ambos os sexos e, portanto, à natureza humana. É a educação, a cultura e as tradições que ensinam a tolerância e os princípios da igualdade baseados no respeito pelo outro. As mulheres, por razões históricas, aprenderam a sublimar seus instintos agressivos. Algo que os homens nem sempre fizeram, acostumados até em demasia com as vantagens do comando. Mas hoje, cada vez com mais frequência, há muitos homens que defendem a causa feminina e não por generosidade, mas por defender a igualdade dos seres humanos diante das regras de justiça e liberdade.
Na Igreja, as mulheres ainda não têm voz e os espaços que poderiam ter, mas finalmente, também na Itália, chegaram ao topo das instituições. Elas recebem mais críticas que os homens? A filósofa feminista Rosi Braidotti levantou o tema a respeito de Elly Schlein: passaram-se poucos dias desde sua posse na secretaria do Partido Democrático e seu estilo, a sua abordagem problemática para os temas mais candentes, da guerra na Ucrânia à segurança ambiental e ecológica, está sendo atingida por uma saraivada de comentários negativos. O que você pensa a respeito?
Schlein está fazendo um grande esforço para manter unidas as almas múltiplas e litigiosas de seu partido e em geral da esquerda. Basta olhar a animosidade que separa Matteo Renzi e Carlo Calenda. Mas a política significa mediação e convivência. Ela está sendo atacada por isso? Pode ser. O estilo da primeira-ministra Giorgia Meloni, que quer ser denominada no masculino, molda-se seguindo o ditado histórico das mulheres de direita. Sua liderança tem uma pegada guerreira, assertiva e muito tradicional.
Falando em divisões, o feminismo também tem as suas: o que você acha do debate sobre o útero de aluguel? A direita usa de forma instrumental o tema da Gestação de substituição, prática difundida nas modernas nações ocidentais, para atacar a comunidade Lgbtq+, para combater as uniões civis?
Os ataques são pretextos para minar direitos adquiridos à maternidade de substituição: é praticada, em 99% dos casos, por casais heterossexuais inférteis. É preciso distinguir: não me convence o caso de uma mulher que, para ganhar dinheiro, oferece seu corpo a pagamento. No entanto, por exemplo, tenho amizade há tempo com um casal de amigos gays que usaram esse método para poder ter um filho. Também a mãe que o carregou em seu ventre, no entanto, o vê e está presente, então todos eles se configuram como uma grande família alargada. Observando justamente os mais recentes noticiários, em que pais matam as mães na frente de seus filhos, maridos cometem suicídio e carregam a mulher e os filhos para o seu mesmo abismo, vemos que a família tradicional certamente não é um lugar tranquilo. Acima de tudo, os filhos precisam de amor; por que proibi-los de desfrutá-lo lá onde o encontram?
Esse livro propõe algumas de suas intervenções polêmicas, como aquelas sobre o direito ao aborto, as respostas a Pier Paolo Pasolini sobre o tema publicadas justamente pelo La Stampa, as atuais reflexões sobre os estupros na Ucrânia ou sobre a luta das mulheres iranianas: é uma panorâmica sobre o mundo feminino contemporâneo. Quando nasceu seu interesse pelas vicissitudes das mulheres?
Nasceu da recusa pela injustiça. Eu não a suporto. Quando eu tinha seis anos, é um episódio que minha mãe me contou, meu pai me acusou de ter manchado um de seus livros com tinta nanquim. Não era verdade. A gente morava em Tóquio e eu fugi de casa. Mais tarde, meus pais, após serem avisados por telefone, encontram-me sentada em uma mesa numa delegacia de polícia, cercada por um grande grupo de policiais japoneses que eu estava entretendo explicando-lhes no dialeto local que não queria mais voltar para casa e queria fazer o seu mesmo trabalho para punir abusos e assédios. Quando entendi que meu trabalho era escrever, usei meus livros para destacar as injustiças que oprimem uma parte da humanidade, as mulheres.
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Dacia Maraini: nós, mulheres, a liberdade e as violências. Hipátia, filha das estrelas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU