09 Junho 2023
Se há uma pessoa que mudou nossa forma de pensar sobre o cérebro, é Andy Clark, professor de filosofia cognitiva da Universidade de Sussex. Há mais de duas décadas, ele participou do nascimento da teoria da “mente estendida”, segundo a qual nossa realidade cognitiva é construída em combinação com o mundo físico que nos cerca, de nossos telefones celulares aos edifícios e a paisagem.
Em seu mais recente livro, The Experience Machine, Clark se concentra sobretudo em uma mudança de enfoque sobre como construímos nossa realidade: não se trata de um processo de fora para dentro, como se acreditava até agora, mas, ao contrário, nosso cérebro aplica boa parte de suas energias em fazer predições e comparar o que acontece com o molde da realidade que fabrica e atualiza a cada instante.
Há algumas semanas, o professor de filosofia participou da primeira assembleia do projeto Xscape, do qual faz parte, com uma equipe multidisciplinar que utiliza as últimas tecnologias em neurociência para entender como nossos ancestrais pensavam.
A entrevista é de Antonio Martínez Ron, publicada por El Diario, 06-06-2023. A tradução é do Cepat.
Hoje, perder o celular é como perder um pedaço do cérebro ou sofrer um dano cerebral?
Essa é a ideia da mente estendida. Às vezes, o que o cérebro faz está tão bem acoplado à nossa tecnologia que é útil pensar nisso como uma espécie de sistema cognitivo único, porque a sensação [de perder o celular] seria exatamente essa. Toda aquela informação que estava disponível não estaria mais, então, seria como acordar no meio da noite com uma espécie de dano cerebral subsequente.
Todo mundo está falando sobre IA generativa, como isso mudará nossa relação com a tecnologia e nossa mente estendida?
É complicado saber como vai funcionar, porque são muito ativas em comparação a um telefone celular e outros dispositivos. Será mais como um companheiro com quem irá compartilhar tarefas cognitivas ao longo de sua vida, porque claramente fazem parte de nossa mente, mas também possuem uma identidade própria.
Penso que veremos uma espécie de ecossistema de inteligências, algumas delas muito personalizadas, que você carrega desde criança e conhecem suas preferências. Trata-se de uma nova forma de mente estendida, como um novo módulo inconsciente de seu cérebro.
Como filósofo cognitivo, qual é a sua opinião sobre novas IAs generativas, como o ChatGPT?
Penso que são muito interessantes, mas estou 100% convencido de que não são realmente inteligentes, “conscientes”, nem algo parecido, porque não funcionam de modo adequado para isso. Conseguem essas conversações incríveis em que podem identificar padrões muito sutis sobre o que já fizemos e colocá-los em texto ou imagens para nos mostrar inúmeras coisas novas.
Ninguém sabe o que vai acontecer, mas acredito que possuem uma espécie de teto ou limite acerca do que podemos esperar delas, porque são muito pouco biológicas, não têm percepção, não realizam ações... Não se parecem em nada com um sistema biológico capaz de pensar. Só processam o que nós fornecemos, sejam imagens ou texto.
Um pesquisador espanhol, Pablo Lanillos, busca alcançar que os robôs passem no teste do espelho. Não há inteligência sem corpo?
De alguma forma, sim. Não acredito que seja necessário um corpo real, mas é preciso gerar esse ciclo de percepção e ação. Pensando a esse respeito, a única coisa que o ChatGPT consegue fazer é fornecer mais texto, e as únicas percepções que obtém são os textos que recebe.
E se você não pode intervir no mundo, não pode colocar suas ideias à prova, que é o que nós, animais, fazemos, assim aprendemos do ambiente. O ChatGPT e o Midjourney não podem testar coisas e isso significa uma grande limitação, é como se você tivesse acesso a todos os experimentos que já foram feitos no mundo, mas não pudesse fazer nenhum por conta própria.
Se uma IA não prediz e se engana, ou pode ser vítima de uma ilusão visual, não é verdadeiramente inteligente?
Se fosse necessário resumir o que os cérebros fazem com uma só palavra, a resposta seria “predizer”. Claro, o ChatGPT faz predições dentro de um texto, mas não as usa como nós, não as coloca à prova. Por isso, não pode ser enganado ou ter alucinações.
As pessoas que pensam que essa tecnologia está no caminho da Inteligência Artificial, argumentam que ela tem informações sobre tudo, sobre o cheiro de algo, sobre o que aconteceria se você pressionasse algo… Sabe muito ao seu modo, mas é muito estranha, é como uma criatura alienígena que só tem uma modalidade sensorial que são os textos. Se trabalha bem com as palavras, sobrevive, mas isso é tudo o que faz.
Está entre aqueles que estão preocupados com o seu avanço?
Não estou preocupado com a possibilidade de que assumam o controle do mundo, não serão o Terminator. E vale lembrar que existem muitas ameaças existenciais para a humanidade e a IA pode ser uma, mas, ao mesmo tempo, também pode ser uma das soluções para combater essas ameaças, como calcular a trajetória para interceptar um meteorito, por exemplo.
Por que o famoso vestido azul/amarelo é um bom exemplo de como nossa mente preditiva funciona?
Penso que é um bom exemplo em dois sentidos. Não se explica apenas porque o cérebro faz suposições a respeito de onde vem a luz, mas, sim, porque, conforme uma equipe de pesquisadores em Nova York descobriu, a história pessoal parece inclinar a ver de uma forma ou de outra, quando se é mais noturno ou diurno.
Os primeiros o veem azul e os segundos tendem a vê-lo amarelo. Este é um segundo nível de predição, ou seja, existem predições que dependem da fiação dura do cérebro e outras que são mais sutis e têm a ver com a forma como experimentamos as coisas.
É verdade que existem até quatro vezes mais conexões nervosas nas quais o sinal viaja na direção dos órgãos dos sentidos, do que o contrário?
Sim, em algumas áreas do cérebro, as vias de dentro para fora podem ser até dez vezes mais frequentes. É verdade que a evolução busca poupar energia, mas o custo de processar todos os dados é muito maior do que o de inferi-los, assim como faz a compreensão da imagem digital, que assume que se falta um pixel, deve ser semelhante ao que estava ao lado.
Explique-me por que falseando o ritmo cardíaco é possível mudar o pensamento.
Fiquei surpreso quando vi alguns dos primeiros experimentos, mas os resultados são robustos. Se você fizer as pessoas olharem para rostos e isso fizer seu pulso acelerar, um rosto neutro será considerado mais vezes como agressivo.
Essas diferenças também ocorrem quando as pessoas tendem a considerar com mais frequência um objeto na mão de um personagem de videogame como uma arma, se condicionadas a um som de frequência cardíaca acelerada. E faz sentido do ponto de vista do que o cérebro preditivo faz, porque está utilizando todos os elementos para entender como é o mundo lá fora.
“As predições estão sentadas no banco do motorista agora”, você diz em seu livro. Como isso muda tudo o que debatemos até agora em neurociência, por exemplo, quando se trata de entender a doença mental?
Penso que há duas transformações: a teórica e a aplicada. A primeira é emocionante porque reinterpretamos muitas coisas que sabíamos antes, mas a diferença, em minha avaliação, está na psiquiatria e na neurologia, onde trazemos uma nova forma de pensar sobre a experiência humana.
O cérebro preditivo está sempre buscando equilibrar as experiências e as predições e o desajuste disto pode explicar muitos desses problemas, do autismo à esquizofrenia. Acredito que estamos nos aproximando da obtenção de uma espécie de “tabela periódica das variações da experiência”. Isso pode nos ajudar a explicar muitos fenômenos, inclusive o que acontece quando são ingeridos alucinógenos.
O que é o Laboratório de Mentes Materiais?
É o laboratório do Instituto de Ciências do Patrimônio (Incipit-CSIC), em Santiago de Compostela, onde, no âmbito do projeto Xscape, Luis Martínez Otero e Felipe Criado trabalham com réplicas de materiais arqueológicos e rastreamento ocular (eye tracking), colocando humanos atuais para interagir com objetos de civilizações antigas para ver como os olham. Em nosso laboratório, em Sussex, fazemos simulações de tudo isso em mundos virtuais.
Qual pode ser a contribuição da ciência cognitiva para disciplinas como a arqueologia?
Esse é um aspecto importante da arqueologia, pois o que se quer entender é como as pessoas pensavam, não apenas como viviam, que parece ser um passo intermediário. Essas pessoas do passado mudaram com o tempo, e a maioria das mudanças foram genéticas, mas, ao mesmo tempo, parece que a forma como entendemos o mundo é muito diferente, como se tivesse havido uma evolução cognitiva mais sutil. E o registro arqueológico dá muitas pistas, porque fornece ferramentas e tecnologias.
Contudo, o que ninguém conseguiu até agora é nos mostrar como essa interação com ferramentas e ambientes pode mudar a maneira de pensar, de modo que na geração seguinte produzem outros objetos e ambientes e avançam escalonadamente até a forma como pensamos hoje. Aqui, somam-se muitas disciplinas, que é o que as bolsas Sinergy da Comissão Europeia buscavam: assuntos que ninguém pode resolver em um único campo. É isso que estamos fazendo.
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“A inteligência artificial será como um novo módulo inconsciente do nosso cérebro”. Entrevista com Andy Clark - Instituto Humanitas Unisinos - IHU