06 Junho 2023
"Somos chamados a remodelar a nossa utopia: em vez de mudar o mundo, trata-se de não nos deixarmos mudar pelo mundo. De não nos deixarmos reduzir a mercadoria. De não olhar cada coisa e cada pessoa como uma mercadoria. E essa mudança já pode ser praticada aqui e agora por todos nós", provoca o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 02-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
As religiões, especialmente o cristianismo e o islamismo, desde sempre sonharam em globalizar o mundo trazendo-o sob a sua obediência, mas nesse ínterim o mundo foi globalizado pela economia. E a realização do sonho das religiões pela economia trouxe inevitavelmente consigo um novo paradigma ético e antropológico, porque nas mentes contemporâneas a economia não é mais apenas uma ciência que analisa a produção da riqueza e as outras questões correlatas, não é mais apenas uma ciência como a física, mas, exatamente como a religião, se tornou também uma moral. Mais: é a moral vencedora, o modelo normativo, o cânone. É o verdadeiro Novo Testamento da sociedade moderna, cujo triunfo produz a seguinte metamorfose: da religião de Deus à religião do Eu.
Assim, o ser humano globalizado passou de homo sapiens a homo faber et consumens: de um ser que colocava a sua qualificação essencial no culto e na cultura, a um ser que a coloca na produção e no consumo (passando, assim, de acreditar que se vive para algo mais importante do que si mesmos, a acredita que não há nada mais importante do que si mesmos). É por isso que o modelo inspirador dos nossos dias é o homem que ganha e que gasta, que tanto mais vale quanto mais ganha e mais gasta, e que, segundo uma tendência cada vez mais evidente, não dá a mínima importância à cultura, aliás, zomba e despreza dela. Se assim não fosse, não teríamos um sistema que atribui salários pouco satisfatórios aos professores e cobre de dinheiro personagens duvidosos e fátuos chamados de “influenciadores”, e que entrega em um dia para um jogador de futebol o que um médico ganha em um ano e às vezes em toda uma vida.
O verdadeiro livro sagrado dos nossos dias, que torna obsoletos todos os livros sagrados anteriores (de religião, da filosofia, da política), é o evangelho da economia. De fato, para existir, tudo deve resultar conforme à lógica econômica, ela é o critério que torna canônico ou apócrifo todo aspecto do agir humano. Se um evento ou uma instituição não receber o sinal positivo do polegar do gerente das contas, justamente como o imperador romano com os gladiadores, não sobrevive.
Isso está correto? As contas sempre precisam fechar ou às vezes podem ficar abertas? Se as contas devem sempre fechar é porque o dinheiro tem como fim o dinheiro; se as contas às vezes podem ficar abertas sem fechar é porque o dinheiro está sendo finalizado para algo mais importante. Ao quê? O que é mais importante do que o dinheiro? É mais importante do que o dinheiro aquilo que não pode ser comprado com o dinheiro.
Ou seja, tempo, amor, cultura, dignidade, estima. Ninguém, por exemplo, pode comprar estima. De um ser humano se pode comprar o tempo, o corpo, as palavras, mas não a estima. A estima não pode ser comprada, é uma livre doação. Hoje, porém, se pensa que tudo pode ser comprado com o dinheiro, que todo ser humano tem seu preço e que é só uma questão de descobrir qual é e pagar.
Bem, neste horizonte onde se acredita que todas as contas devem fechar porque o escopo do dinheiro é produzir mais dinheiro e tudo pode ser comprado com o dinheiro, a tarefa da busca espiritual é lembrar que existe algo que não está à venda. É lutar para que os seres humanos não se achatem tornando-se de “uma só dimensão”, como preconizava Herbert Marcuse em 1964, mas mantenham sua estratificação múltipla. Hoje, quando a economia se tornou uma religião, a tarefa da religião é lembrar aos seres humanos que “o homem não vive só de pão”. É claro que sem o pão e sem a economia que o produz não há vida humana, mas o ponto é o fim, o escopo. Deve-se sempre lembrar de Kant e de seu imperativo categórico: “Aja de maneira a tratar a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio”.
Quando, em relação a si mesmos, se age como um fim? Cipião Africano (exatamente aquele de cujo elmo a Itália “cingiu a cabeça”) costumava dizer: “Nunca estou mais ativo do que quando não faço nada”. Há uma atividade que não coincide com a operosidade externa e ainda assim é produtiva. Aliás, confere mais ser, visto que o líder romano continuava: “Nunca estou menos sozinho do que quando estou sozinho comigo mesmo”. Ele falava daquilo que definia como otium, que nesse caso não é o “dolce far niente” mas o cultivo da mente e do coração. É o trabalho como jardinagem interior. Trabalhando em nós, de fato, realizamos o trabalho mais precioso: o de superar a solidão interior que nos causa mal-estar e nos leva a nos cercar de pessoas e coisas, de notícias e barulhos, por medo de ficar sozinhos só conosco. Esse é o grande trabalho humano dos seres humanos: cultivar a própria interioridade, ter momentos de recolhimento, praticar o que Carlo Maria Martini chamava “a dimensão contemplativa da vida”.
Não se trata de agir contra ou apesar da economia, trata-se de conferir a essa ciência, hoje considerada absoluta, um critério superior. Se quisermos nos salvar. Falo salvar como seres humanos, sem continuar a destruir os ecossistemas do nosso planeta e sem cair reféns de máquinas humanoides economicamente muito mais eficientes e convenientes do que nós.
A esta altura, porém, é inevitável se perguntar: de que adianta tudo isso que falei? Por acaso podemos mudar o sistema econômico no qual estamos imersos? É pelo menos desde 1848, data do Manifesto do partido comunista de Marx e Engels, que a filosofia buscou mudar o sistema econômico, mas quase dois séculos depois daquele poderoso início (“Um espectro assombra a Europa, o espectro do comunismo”) o resultado está aí para todos verem: o espectro do comunismo não assusta nem fascina mais ninguém, enquanto são bem outros os espectros que assombram a Europa e nos fazem tremer. O mesmo vale para as advertências da religião, igualmente malsucedidas, pensando no resultado de palavras de Jesus: “Bem-aventurados vós, pobres! Ai de vós ricos!”, enquanto o mundo repete alegremente a cada instante justamente o oposto: “Ai dos pobres! Bem-aventurados os ricos!”
Porém, se olharmos a situação do alto com uma visão mais ampla, o balanço não parece tão negativo: pelo menos entre nós já não há escravos nem servos da gleba, já não se trabalha doze ou treze horas por dia como no início da revolução industrial, a miséria das famílias em grande parte é superada, os direitos dos trabalhadores são reconhecidos e também bastante protegidos. E se eventualmente ocorre o contrário, o direito intervém e liberta e pune os responsáveis. Hoje, também, assiste-se ao fenômeno da chamada “Great Resignation”, “Grande renúnica”: aqueles que podem se demitir de empregos que consideram humanamente pouco gratificantes e retomam a sua vida, na consciência de que não se vive para trabalhar, mas se trabalha para viver e que existe algo mais importante que a carreira (em 2022 nos EUA mais de 40 milhões deixaram seus empregos; na Itália são mais de 2 milhões, com uma média de mais de 180.000 demissões por mês). É um fenômeno negativo ou positivo? Certamente sinaliza a presença de hereges em relação ao dogma do primado absoluto da economia.
Também gostaria de acrescentar que, graças ao meu trabalho, entrei em contato com algumas grandes empresas italianas e fico feliz em poder dizer que fiquei com uma excelente impressão, chegando a formar uma ideia de que se o nosso país, apesar de tudo, ainda se mantém é justamente graças ao sistema das empresas. Vi atenção ao balanço social, ao território, à qualidade das relações humanas, muitas vezes encontrei um vivo senso de responsabilidade para com os funcionários, às vezes sincera gratidão mútua. Quando bem dirigidas e com visão, as próprias empresas são as primeiras a estar cientes de que nem sempre as contas precisam fechar, que às vezes é preciso deixá-las abertas, porque “estando abertas” alimentam a confiança e a humanidade.
Gostaria de concluir dizendo que somos chamados a remodelar a nossa utopia: em vez de mudar o mundo, trata-se de não nos deixarmos mudar pelo mundo. De não nos deixarmos reduzir a mercadoria. De não olhar cada coisa e cada pessoa como uma mercadoria. E essa mudança já pode ser praticada aqui e agora por todos nós. Cada um de nós é um sistema econômico, uma espécie de empresa, e pode escolher ao que dar primazia: seja ao negotium ou ao otium, aos objetos ou à cultura, ao ter ou ao ser. O modo melhor de mudar o mundo é melhorar aquele pedacinho do mundo onde realmente temos poder: nós mesmos. Gandhi dizia: “Seja você a mudança que quer ver no mundo”.
Falei com vocês como teólogo, leigo, mas ainda assim teólogo, e se esta disciplina antiquíssima que é a teologia hoje ainda tem um valor é de nos lembrar que não só de pão vivemos, que não somos apenas mercadorias, nem apenas “gene egoísta”.
A inteligência e o amor de que somos capazes, e que não se podem comprar, constituem o verdadeiro propósito do nosso viver.
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A religião do Eu acredita apenas no dinheiro, mas amor e estima não se compram. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU