09 Mai 2023
Para Catherine L’Ecuyer (Canadá, 1974), doutora em Educação e Psicologia, radicada em Barcelona e mãe de família numerosa, crianças e adolescentes precisam de tempo com os pais e não tê-lo significará enfrentar problemas decorrentes dessa falta. É autora de vários livros, entre outros, dos best-sellers Educar en el asombro e Educar en la realidad (Plataforma), e Conversaciones con mi maestra: Dudas y certezas sobre la educación (Espasa). Em 2020, foi nomeada membro honorífico do capítulo espanhol da Association Montessori Internationale. L’Ecuyer entende que a superproteção torna as crianças incapazes e dependentes.
A entrevista é de Ana M. Longo, publicada por El Diario, 07-05-2023. A tradução é do Cepat.
Você afirma que uma criança não deve ver telas antes dos dois anos de idade. Que danos podem causar?
A Academia Americana de Pediatria insiste em que crianças menores de dois anos não devem ver nenhuma tela e aquelas entre 2 e 5 anos devem, no máximo, ver menos de uma hora por dia. Esta recomendação se apoia em centenas de estudos que mostram que as crianças não aprendem por meio das telas, mas, sim, através das experiências sensoriais e das relações interpessoais, e que existem efeitos prejudiciais em seu uso nessas idades (diminuição do vocabulário, impulsividade, desatenção, déficit de aprendizagem, hiperatividade etc.).
Em sua obra “Educar en el assombro”, identifica que a tecnologia não é necessária para os menores. É possível dizer que a tecnologia contribui com algo para a educação ou muito pelo contrário?
As principais associações pediátricas insistem, desde 2006 (e ratificaram essas conclusões em 2011, 2016 e 2017), que não há evidências de que a tecnologia seja benéfica para as crianças. Muito pelo contrário. Quanto ao uso de tablets ou chromebooks nas salas de aula, desde o primário, pode interferir na aprendizagem da leitura e da escrita e fomentar a multitarefa tecnológica, que dispersa a atenção.
Até o momento, não existem estudos que estabeleçam seus benefícios e a ausência de seus malefícios. Sim, existe uma indústria com orçamento de marketing ilimitado para patrocinar congressos educacionais e estudos pontuais de rigor questionável (por exemplo, sem grupo de controle) e que se baseiam em critérios subjetivos.
Na Espanha, vivemos constantes mudanças e reformas educacionais. Elas nos favorecem em algo? O que pensa que falta para podermos falar de educação de qualidade que beneficie as crianças?
Existem três grandes correntes filosóficas que determinam as reformas educacionais: a mecanicista, a romântico-idealista e a clássica. A mecanicista assume que a criança é um vaso vazio que deve ser preenchido com dados e o esforço é entendido como um ato frio da vontade. Entende a criança como um recurso futuro para o mundo do trabalho.
A corrente romântico-idealista assume que existem as sementes do conhecimento na criança. A realidade objetiva não existe e é a criança que “constrói” sua própria aprendizagem. O objetivo desta corrente é que a criança se torne cidadã do sistema social e político idealizado de antemão pelo governo de momento.
Por fim, há a corrente clássica, em que o conhecimento transforma a pessoa. O fim da educação é o próprio aluno. Consiste em buscar a perfeição do que cada um é capaz, transformando-o. Nesta corrente, a escola é entendida como um claustro e a universidade como um templo do saber.
As mudanças nas leis educacionais são apenas a ponta do iceberg da mudança de rumo que os governos de direita e esquerda dão da primeira para a segunda e da segunda para a primeira corrente.
Os nascidos após 1984 são chamados de “nativos digitais”, por se considerar que aprendem melhor tecnologia. Você concorda?
O conceito de “nativo digital” não tem fundamento científico, é considerado um mito. Ora, em todos os mitos há uma parte verdadeira e uma parte falsa. A parte verdadeira é que os nascidos a partir de 1984 têm mais contato com a tecnologia. A parte falsa é que por isso aprendem melhor por meio da tecnologia. De fato, há evidências que mostram que não é o caso.
A multitarefa tecnológica cobra seu preço: mais erros, mais superficialidade no pensamento, perda de senso de relevância... São piores na busca de informações porque não têm critérios e piores no reconhecimento de informações falsas porque carecem de contexto, pois confundem informação com conhecimento.
Considera que uma criança deveria ter em suas mãos mais livros e menos aparelhos eletrônicos?
Claro, e recomendo especialmente os grandes clássicos. Enquanto as histórias nas redes sociais caducam após algumas horas, as obras clássicas são atemporais, justamente porque resistiram ao teste do tempo e do espaço e porque muitos leitores as consideraram suficientemente relevantes para mantê-las vivas.
Esses livros se conectam com o mais profundo do ser humano, falam sobre questões universais como a natureza humana, o amor, a dignidade, o ódio, o poder, a grandeza e a heroicidade. Não são textos de momento, são textos para qualquer momento.
Os pais trabalham e criam os filhos, mas é importante que compartilhem tempo com eles. Costuma-se dizer que não importa se for pouco tempo, desde que seja de qualidade. Você pensa da mesma forma?
Penso que é um falso dilema. Vai agora ao seu chefe e diz que trabalhará duas horas, em vez de oito, ganhando o mesmo, mas que será um tempo de qualidade. É o que dizemos aos nossos filhos quando os deixamos com a sobra, após uma longa jornada de trabalho. As crianças e os adolescentes precisam de um tempo específico com seus pais. Se não tiverem, depois, teremos que investir resolvendo problemas que são consequência dessa falta.
Conseguimos impedir que as crianças não fiquem entediadas?
Pensamos que o tédio é ruim e assim o transmitimos. Parecem pequenos executivos estressados. O tédio é “desejar, desejar”, dizia Tolstói. É o preâmbulo da autorreflexão, da brincadeira, da criatividade.
De que forma uma criança pode ser prejudicada com a superproteção e a ausência de preparação para todas as coisas negativas que vierem?
Superproteger uma criança é torná-la dependente e incapaz para a vida. Se um adolescente esquece o lanche em casa pela manhã e o levamos, a mensagem que recebe é que suas ações ou omissões não têm consequências. Hoje, há crianças de 12 anos que não sabem arrumar uma bolsa de esporte e se vestir sozinhas. Quando fazemos pela criança o que ela é capaz de fazer por si mesma, nós a cancelamos, anulamos.
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“Se as crianças não passarem tempo com os pais, depois, teremos que enfrentar as consequências”. Entrevista com Catherine L’Ecuyer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU