12 Abril 2023
“Essa situação é grave e tem se repetido no Mato Grosso do Sul. Novamente, o serviço estadual de segurança pública está atuando como segurança privado de fazendeiros e, neste caso, de empresários do ramo imobiliário”, explica Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
A reportagem é de Tiago Miotto, publicada por Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 11-04-2023.
O juiz Rubens Petrucci Junior, da segunda vara federal de Dourados (MS), decidiu manter presos preventivamente os nove indígenas Guarani, Kaiowá e Terena detidos durante uma operação da Polícia Militar (PM) realizada no sábado, 8 de abril, contra as famílias do tekoha Yvu Vera. A decisão, que ignorou um recurso apresentado pela Defensoria Pública da União (DPU) e a posição do Ministério Público Federal (MPF), foi proferida nesta segunda-feira (10).
Dez indígenas do tekoha Yvu Vera chegaram a ser detidos durante a operação policial, que teve apoio da Tropa de Choque da PM; um deles, um idoso Guarani Kaiowá de 77 anos, foi liberado após a intermediação da Defensoria Pública do Estado (DPE) do Mato Grosso do Sul.
Os indígenas são acusados de associação criminosa, dano ao patrimônio privado e ameaça, além de lesão corporal e posse de armas. Em depoimento à Polícia Civil, eles negaram as acusações e afirmaram ter ocupado a área em protesto contra a construção de um condomínio de luxo no local, limítrofe à Reserva Indígena de Dourados e reivindicado como parte do território tradicional Guarani e Kaiowá.
A prisão preventiva foi decretada pelo juiz federal “de ofício”, ou seja, sem pedido dos policiais e ignorando as posições da DPU e do MPF, que se manifestaram contra as prisões.
O MPF defendeu a liberação dos indígenas com medidas cautelares – entre elas, monitoramento eletrônico dos detidos, uso de tornozeleira eletrônica e proibição de que as pessoas retornassem ao local da retomada.
Descumprindo acordo, empresa iniciou construção de muro de condomínio de luxo em área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá, ao lado da reserva de Dourados (MS). (Foto: Cimi Regional Mato Grosso do Sul)
Depois de serem presos, no sábado, os indígenas foram conduzidos à Polícia Civil, onde foram ouvidos seus depoimentos. No domingo à tarde, a Justiça Estadual realizou uma audiência de custódia e declinou da competência do caso, por se tratar de um conflito envolvendo povos indígenas, que cabe à esfera federal.
A situação se desenrolou em plena Páscoa, gerando enorme tensão entre as comunidades indígenas do entorno da reserva de Dourados. Apesar da expectativa das famílias Guarani, Kaiowá e Terena, os nove indígenas permaneceram presos, aguardando a posição da Justiça Federal – que decidiu, já na noite da segunda-feira, mantê-los em prisão preventiva.
Na avaliação da DPU, há uma série de circunstâncias que foram desconsideradas pelo juiz federal ao decretar a prisão preventiva dos indígenas – a começar pelo fato de eles serem indígenas e terem, por isso, direitos específicos garantidos pela Constituição Federal, pelo Estatuto do Índio e pela Resolução 287, emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Segundo o Código de Processo Penal, a prisão preventiva – um dos tipos de prisão provisória – pode ser decretada para garantir ordem pública e econômica, quando houver prova do crime e “indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.
“Entendemos que não existem os requisitos para prisão preventiva. Essa é uma medida extrema, que só deve ser decretada quando existem motivos que a justifiquem”, explica Daniele Osório, defensora pública federal em Mato Grosso do Sul.
Segundo a defensora, os indígenas ainda não foram sequer denunciados oficialmente pelos supostos crimes cometidos. Além disso, nem o MPF, responsável pela acusação nas ações penais, nem o delegado de polícia que registrou o auto da prisão em flagrante solicitaram a prisão preventiva.
“Entendemos que o juiz não poderia, sem haver pedido dessas duas partes do processo – nem da autoridade policial, nem do MPF – ter decretado essa prisão de ofício”, avalia a defensora. “Eles não foram denunciados ainda, existe apenas uma análise preliminar. A autoridade policial apontou crimes que talvez não se concretizem numa ação penal”.
Entre os supostos crimes atribuídos aos indígenas estão, por exemplo, a prática de “esbulho possessório”.
“Esse crime exige o dolo, ou seja, a intenção de prejudicar a posse de outrem. Só que, no caso, os indígenas não tinham obviamente essa intenção, porque eles efetivamente acreditam – e têm motivo para tanto – que aquele espaço lhes pertence, que é uma terra tradicional indígena. Então, o que nós temos ali não é uma ocupação pura e simplesmente. É um processo de retomada das terras”, explica Daniele Osório.
Com base nesses argumentos, a DPU recorreu à Justiça Federal e deve ingressar com um habeas corpus junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), pedindo que as prisões sejam revertidas.
“São pessoas que têm endereço, que moram ali no entorno da Reserva Indígena de Dourados. São indígenas que estavam protestando, lutando pelo seu direito, que vem sendo sonegado pelo Brasil há muito tempo, e não são pessoas dedicadas à atividade criminosa. Então, nesse caso, além dessa prisão ser nula, porque não houve pedido da polícia e nem do MPF, ela é injusta. O tribunal vai ter que reanalisar esses argumentos”, aponta a integrante da DPU.
A prisão dos indígenas foi resultado de mais uma das várias ações da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul realizadas sem ordem judicial contra comunidades indígenas.
“Essa situação é grave e tem se repetido no Mato Grosso do Sul. Novamente, o serviço estadual de segurança pública está atuando como segurança privado de fazendeiros e, neste caso, de empresários do ramo imobiliário”, explica Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
Com demarcações paralisadas e comunidades indígenas inteiras confinadas em espaços diminutos, os conflitos estão deflagrados na região e a violência contra as comunidades indígenas está em alta.
Enquanto as famílias do tekoha Yvu Vera aguardavam pela posição da Justiça e pela libertação de seus parentes, o tekoha Aratikuty – retomada vizinha ao tekoha Yvu Vera, também localizada no entorno da Reserva Indígena de Dourados – foi alvo de um novo ataque, durante o qual casas indígenas foram queimadas.
Os indígenas denunciam que as pessoas que queimaram os barracos estavam uniformizadas e seriam policiais militares. O ataque, segundo as lideranças, ocorreu na madrugada de sábado – dia das prisões – para domingo.
“Se não soltarem eles, vamos fechar a BR. Essa terra aqui foi grilada, essa terra aqui é nossa”, afirma Kunha Mbo’yvera, liderança Guarani Kaiowá do tekoha Yvu Vera, referindo-se à área na qual a empresa Corpal estaria, segundo a comunidade, construindo um condomínio de luxo. Os indígenas afirmam que farão novas retomadas e ocuparão mais áreas reivindicadas se seus familiares não forem soltos.
“O que nós vamos fazer? Os brancos não veem a nossa situação aqui dentro [da reserva]. Os brancos só querem ver a gente sufocado num chiqueiro, e falam que as empresas querem construir condomínio aqui dentro, sendo que a terra é nossa. Nós não vamos sair daqui, queremos nossa terra de volta”, afirma a Kaiowá.
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Violações continuam em Dourados: Justiça Federal mantém indígenas presos e casas Kaiowá são queimadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU