Dirigente petista é dono de área retomada pelos Kaiowá e Guarani de Laranjeira Nhanderu, onde ocorreu reunião da Aty Guasu; deputado Zeca do PT atacou comunidade em discurso.
A reportagem é de Maiara Dourado e Tiago Miotto, publicada por Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 14-03-2023.
Na última semana, o povo Guarani e Kaiowá denunciou uma série de ataques e situações de assédio envolvendo José Raul das Neves Júnior, presidente do diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade de Rio Brilhante (MS) e filho do dono da fazenda Inho, sobreposta ao tekoha Laranjeira Nhanderu.
Em defesa ao colega de partido, Zeca do PT, ex-governador do estado de Mato Grosso do Sul, discursou, no dia 9 de março, em sessão plenária da Assembleia Legislativa estadual contra a comunidade de Laranjeira, que retomou a área onde fica localizada a fazenda Inho no último dia 3.
Na ocasião, o deputado estadual acusou os Kaiowá e Guarani de invadir a propriedade do fazendeiro petista e questionou a tradicionalidade da terra pelo povo retomada.
“É uma barbaridade o que estão fazendo com o companheiro, amigo Raul em sua propriedade em Rio Brilhante. De um lado, porque não tem nenhum estudo antropológico definido para dizer que é terra indígena, e do outro, [porque] dois ônibus com aproximadamente 80 indígenas [foram] derramados lá”, discrimina o deputado.
Os indígenas contestam a declaração do deputado, uma vez que a área retomada é reivindicada pelos Kaiowá e Guarani há anos como parte de seu território de ocupação tradicional.
De acordo com os relatos, no dia 7 de março, José Raul das Neves Júnior, localmente conhecido como Raulzinho do PT, teria acompanhado outras duas pessoas em uma abordagem intimidatória feita ao motorista que conduziu vários indígenas à Aty Guasu, a Grande Assembleia dos Povos Guarani e Kaiowá, realizada entre 6 e 9 de março, na tekoha Laranjeira Nhanderu.
A forma inquisidora como a conversa se deu fez o motorista denunciar o ocorrido à Defensoria Pública Estadual (DPE) do Mato Grosso do Sul. O caso, por sua vez, foi encaminhado pela DPE ao Ministério Público Federal (MPF), que solicitou que o motorista fosse ouvido pela Polícia Federal (PF) para abertura de inquérito.
À esquerda, registro da presença da caminhonete na retomada, no dia 8 de março; à direita, registro no circuito de vigilância da empresa de ônibus cujo motorista foi intimidado, no dia 7 de março.
(Crédito: Reprodução | CIMI)
Na última terça-feira (7), três homens que se identificaram como investigadores da Polícia Militar abordaram o motorista de ônibus que levou indígenas Kaiowá e Guarani para a Aty Guasu em Rio Brilhante – ocasião à qual o deputado Zeca do PT refere-se quando afirma que os indígenas foram “derramados” no local.
Por meio de uma ligação telefônica, segundo a denúncia, um dos homens teria questionado o motorista – que não será identificado nesta matéria devido à coação sofrida – sobre sua localização, com o pretexto de realizar a locação do ônibus.
Os homens só revelaram o real interesse de seu contato no local onde o motorista se encontrava. Ele relatou ter sido indagado sobre o ônibus que transportou os indígenas e sobre o itinerário, dia e hora de retorno dos mesmos. Em nenhum momento os homens apresentaram identificação policial, o que causou desconfiança no motorista, que em razão disso decidiu reportar o ocorrido às autoridades.
No ato do depoimento, a identidade dos supostos policiais foi averiguada e um dos homens foi reconhecido pelo motorista, por meio de foto, como Raulzinho do PT. O político teria transportado em uma caminhonete os outros dois supostos policiais. As imagens do circuito interno de segurança foram entregues às autoridades.
Os homens chegaram ao local onde se encontrava o motorista em uma caminhonete Nissan branca, semelhante à caminhonete vista por diversas vezes rondando a retomada Kaiowá e Guarani. No relato dado à polícia, o motorista se mostrou preocupado com sua integridade física e também com a dos indígenas por ele conduzido, alvo dos questionamentos dos supostos policiais.
O tekoha Laranjeira Nhanderu, cuja demarcação é reivindicada há décadas pelos Kaiowá e Guarani, é uma das áreas que foram incluídas em um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2007.
O TAC estabelecia um prazo de dois anos para a conclusão dos estudos de identificação e delimitação de um conjunto de terras indígenas reivindicadas pelos Guarani e Kaiowá e determinava que os procedimentos demarcatórios fossem encaminhados ao Ministério da Justiça até abril de 2010, sob pena de multa diária de R$ 1.000.
As demandas territoriais foram reunidas em sete terras indígenas, organizadas conforme as bacias dos rios – os pegua, referência geográfica básica para os Guarani e Kaiowá. Assim, o tekoha Laranjeira Nhanderu integra a Terra Indígena (TI) Brilhante-peguá.
No dia 14 de julho de 2008, a Funai publicou a portaria que instituiu o estudo Grupo de Trabalho (GT) da TI Brilhante-peguá, com um prazo de até 240 dias para a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da terra indígena.
Passados 15 anos da assinatura do TAC e 14 da portaria, contudo, a TI que abrange o tekoha Laranjeira Nhanderu ainda não foi demarcada, e a comunidade se mantém em situação de vulnerabilidade.
“A antropóloga nos disse que já entregou o relatório [de identificação e delimitação] para a Funai, a Funai diz que não entregou”, afirma Simão, liderança da Aty Guasu.
“Se cumprissem esse TAC, o povo de Laranjeira Nhanderu se sentiria mais seguro. Porque, sem isso, os fazendeiros acabam fazendo o que eles querem, invadindo, massacrando o povo e até mesmo envolvendo a segurança do Estado para prender as lideranças, ameaçando, criminalizando”, reflete a liderança.
“Se esse TAC fosse cumprida, solucionaria o problema Guarani e Kaiowá. Porque ele é de 2007, mas a terra indígena é de muito antes. Os fazendeiros chegaram, invadiram, e aí os indígenas querem voltar para seu território, mas acabam sendo perseguidos”, lamenta Simão.
Em fala na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul no dia 9 de março, o deputado estadual Zeca do PT atacou a retomada de Laranjeira Nhanderu, afirmando que “aproximadamente 80 indígenas” teriam sido “derramados” na fazenda Inho.
O parlamentar petista afirmou que “não se tem nenhum estudo antropológico definido para dizer que [a área da fazenda] é terra indígena” – o que não é verdade.
Não há dúvidas quanto à inclusão da área ocupada pela fazenda Inho na reivindicação territorial Kaiowá e Guarani, e há outros elementos que comprovam a tradicionalidade da área, além do TAC e do GT aberto pela Funai.
“A fala do deputado Zeca do PT é desprezível, acentuadamente ruralista. Ignora a existência de procedimento administrativo e até mesmo de perícia judicial antropológica que foi realizada na fazenda vizinha”, critica o assessor jurídico do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Anderson Santos.
Para o advogado, o discurso do deputado é pautado em desinformação e racismo contra os povos originários e busca “desqualificar e deslegitimar a reivindicação da comunidade indígena, prática recorrente desde a colonização do Brasil”, considera.
Até a retomada da fazenda Inho, os Guarani e Kaiowá do tekoha Laranjeira Nhanderu ocupavam uma área de mata na reserva legal da propriedade vizinha, denominada Fazenda Santo Antônio – de onde chegaram a ser expulsos, em 2010, mas para onde retornaram em 2011.
Naquele ano, no curso da ação de reintegração de posse do fazendeiro contra os indígenas, a Justiça Federal de Dourados (MS) determinou a realização de uma perícia antropológica acerca da tradicionalidade da ocupação indígena.
A perícia, concluída em 2013, reconheceu que a área é tradicionalmente ocupada pelos Kaiowá, embora não seja, ainda, demarcada.
“Após a realização da perícia, o juiz federal decidiu pela manutenção da comunidade na área. Ele constatou que há tradicionalidade no espaço territorial, e a fazenda Inho fica exatamente ao lado”, explica Anderson.
A retomada estabelecida em 2011 na área de mata da Fazenda Santo Antônio, limítrofe à fazenda Inho, foi reconhecida como uma área de ocupação tradicional Guarani e Kaiowá por uma perícia antropológica, além de ser parte da área cuja demarcação é reivindicada pelos indígenas.
(Foto: CIMI)
“Então, não é verdade que não há nada que indique que essa fazenda está na área indígena. Além da reivindicação da comunidade e do procedimento administrativo já aberto, há essa perícia antropológica, que constatou a tradicionalidade da ocupação indígena na fazenda do lado. Os indígenas de Laranjeira Nhanderu sempre transitaram pela fazenda Inho para ter acesso à rodovia e ao Rio Brilhante, mesmo antes de ser retomada”, prossegue o advogado.
O deputado petista ainda acusou os indígenas de proibirem o fazendeiro de recolher “sete mil sacas de soja que foram colhidas”, o que foi desmentido pelos indígenas. Na terça-feira (7), a comunidade pediu à Funai, ao MPF e à PF que mediem a retirada dos pertences dos fazendeiros do local.
“A gente ouve aqui o deputado se manifestando contra a terra Laranjeira Nhanderu, mas a gente tem prova de que aqui é território indígena. Ele está criticando sem conhecimento, por isso repudiamos essa fala dele”, critica Simão.
Em carta, a Aty Guasu classificou a fala de Zeca do PT como “lamentável”. “Sem nenhum domínio, o deputado utilizou questões falsas contra a tradicionalidade de nosso território. Ele preferiu nos humilhar, e nos acusar publicamente de invasores, do que questionar a inércia no cumprimento de nosso direitos e as ilegalidades promovidas pelo governo Riedel”, questionam os Kaiowá e Guarani.
“Será o agronegócio tão poderoso que, no MS, até mesmo os parlamentares progressistas saem em defesa do agronegócio quanto este é causador permanente de violências? Ou será que Zeca, antes mesmo de ser do PT tem sua organicidade vinculada a este ruralismo genocida e é o Partido dos Trabalhadores que deve rever sua pertença em suas fileiras?”, prossegue o documento.
A retomada do tekoha Laranjeira Nhanderu localizada nos limites da fazenda Inho foi feita pela primeira vez há pouco mais de um ano, em 26 de fevereiro de 2022. A ação dos indígenas foi uma resposta a uma manobra articulada por fazendeiros, políticos e agentes de sindicatos patronais locais que pretendiam estabelecer um assentamento rural dentro da área reivindicada e em processo de identificação como terra indígena.
Na época, os indígenas denunciaram a ação de um senhor chamado “Ramão”, pai do vereador Adão Evandro Leite, de Rio Brilhante, que buscou convencer lideranças indígenas a declarar, em documento, que as terras por eles reivindicadas não eram área indígena. As lideranças não só se recusaram a assinar tal documento como retomaram a área em disputa.
Segundo uma liderança que por razões de segurança não será, nesta matéria, identificada, o objetivo da retomada era proteger suas terras e impedir a criação do assentamento. E assim, “barrar o crime fundiário de Ramão e do Adãozinho vereador”.
No entanto, “não existiu nenhum conflito entre indígenas e sem terra”, esclarece Anderson. Para o advogado, a criação ilegal do assentamento é uma manobra dos fazendeiros e aliados para atrapalhar o processo de demarcação das terras Kaiowá e Guarani e justificar ações ilegais da Polícia Militar contra a retomada.
“O governador usou desse subterfúgio para poder dizer que havia um conflito entre indígenas e sem terras no local, e por isso a Polícia Militar teria sido acionada. Isso é mentira”, afirma Anderson.
Na carta divulgada após a Aty Guasu realizada no tekoha Laranjeira Nhanderu, os Kaiowá e Guarani caracterizam a tentativa de criação de um assentamento ilegal na Fazenda Inho como um “golpe contra o processo de demarcação” do território.
“O fato é que estamos sendo monitorados, perseguidos e coagidos, até mesmo em nosso direito à reunião. Nossas comunidades já sentem medo de ataques, que agora para além de fazendeiros tem também como protagonistas as forças policiais”, denuncia o povo. “Por favor, antes que seja tarde, ajudem nosso povo a sair deste cerco”.