13 Abril 2023
Precisamos de uma boa teologia para ajudar a orientar as respostas às questões morais, como a morte medicamente assistida a partir de uma consistente ética da vida, do diálogo, da sinodalidade e da opção preferencial pelos pobres.
A opinião é da Ir. Nuala Kenny, das Irmãs da Caridade em Halifax, Nova Escócia, médica pediatra e membro da Ordem do Canadá desde 1999. O artigo foi publicado por La Croix International, 11-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto eu me preparava para celebrar a Semana Santa e a Páscoa deste ano, meus pensamentos foram dominados pelas trágicas consequências da legalização da morte medicamente assistida no Canadá.
Como um flashback traumático, voltei a fevereiro de 2015, quando li a decisão da Suprema Corte do Canadá que descriminalizava a morte medicamente assistida com base em um argumento de direitos e liberdades. Como irmã religiosa e eticista médica, fiquei impactada com o significado moral e social dessa medicalização do sofrimento humano para a profissão médica, o Canadá e os cristãos.
Oito anos depois, as coisas estão piores do que eu jamais imaginaria. Praticamente todas as salvaguardas para evitar abusos foram eliminadas. A morte medicamente assistida é valorizada pela mídia, que apresenta relatos emocionais em primeira pessoa que resistem à análise crítica e retratam os opositores como pessoas impiedosas e indiferentes. Ela foi normalizada como uma boa morte. A morte com dignidade é entendida como uma morte escolhida e planejada na rejeição última do morrer, da morte e da ressurreição de Jesus.
Como o Canadá, uma nação cristã, pioneira na prestação de cuidados de saúde universais com financiamento público e defensora dos cuidados paliativos, tornou-se o regime de morte medicamente assistida mais liberal do mundo? Há lições da história da moral e da ética médicas a serem tiradas para o ensino da Igreja e a partir dele.
A recente reflexão de Isabelle de Gaulmyn sobre o uso atual da promoção “ética” de práticas e produtos nos lembra que essa disciplina da filosofia que orienta julgamentos de situações morais concretas exige um pensamento crítico e uma clara compreensão das crenças fundamentais sobre o bem, o mal, o certo e o errado.
A análise de Massimo Faggioli sobre o estado da teologia é motivo de preocupação sobre as nossas crenças católicas fundamentais e o modo como elas são transmitidas.
O Papa Francisco ensina o acompanhamento e a misericórdia nas circunstâncias concretas e muitas vezes “confusas” da vida. Ele enfatiza o discernimento por meio do poder do Espírito Santo e teve uma grande influência na ética da saúde, particularmente por meio da Amoris laetitia e da Laudato si’. Sua abordagem à moral se enraíza nas crenças centrais da Encarnação, da Crucificação e da Ressurreição de Jesus Cristo, que são profundamente contraculturais e relacionais com dimensões comunitárias, políticas e éticas.
A tradição hipocrática pré-cristã reconhecia a natureza inerentemente moral do cuidado dos doentes. Os enfermos sabiam que os médicos haviam feito um juramento de usar suas habilidades e conhecimentos para ajudá-los e nunca para prejudicá-los, incluindo: “Não porei nenhum veneno em mãos de ninguém, mesmo que me peçam”.
O cristianismo primitivo fortaleceu esse núcleo moral e a ética focada no médico como um agente moral com atenção particular à confiança, à compaixão e à phronesis ou sabedoria prática. Os códigos de ética reiteraram o compromisso com o bem-estar do paciente e a excelência científica e técnica.
Respondendo aos avanços sem precedentes na medicina, como o respirador portátil e a ressuscitação cardíaca em sociedades seculares e pluralistas, a bioética moderna desenvolveu “princípios de nível médio” desconectados de fundamentos religiosos ou filosóficos. Incorporou a tradicional beneficência, não maleficência e justiça, e acrescentou o “respeito pela autonomia”.
Ensinei esses princípios a literalmente milhares de estudantes de medicina e sei que eles se reduzem a uma lista de verificação de procedimentos em que a autonomia do paciente ofusca todas as outras considerações. Tragicamente, eles falham em reconhecer a medicina como um esforço inerentemente moral na experiência de pacientes que esperam ansiosamente pelo resultado de uma biópsia, de entes queridos em pânico que acompanham um paciente gravemente ferido em uma sala de emergência ou em recuperação de uma grande cirurgia, cheios de esperança.
As práticas mudaram, mas o núcleo da medicina ainda é a prática familiar e as especialidades médicas e cirúrgicas que cuidam de pessoas que precisam de cuidados devido a traumas, doenças e incapacidades. Os pacientes são vulneráveis em sua dependência do conhecimento e da habilidade médicos. O reconhecimento da fragilidade das escolhas livres e informadas no pântano de fontes online tendenciosas e não comprovadas e a atenção ao poder sedutor da crença na tecnologia são imperativos morais cruciais hoje.
Os gritos de angústia moral dos médicos obrigados a oferecer a morte medicamente assistida como uma opção de tratamento demonstram o duradouro núcleo moral da medicina. Eles levantam questionamentos fundamentais sobre os fins e o bem da medicina e a natureza essencial da relação médico-paciente.
Desde o início, as primeiras comunidades cristãs se perguntavam como viver sua vocação batismal em resposta às palavras de Jesus e ao testemunho de justiça e cuidado dos enfermos. A teologia moral formal desenvolveu manuais penitenciais para fornecer orientação para a prática pastoral na confissão.
A expansão para além da Europa ocidental levantou novas questões morais, e os teólogos resumiram princípios como o duplo efeito, a cooperação e o mal menor para a aplicação aos novos “casos”. No entanto, a formação moral era limitada, e prevalecia o pensamento centrado no pecado e orientado para a ação.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) renovou a cristologia. Trouxe verdades eternas para a condição humana e renovou a teologia moral com atenção particular à consciência e à sua formação por meio das escrituras, da tradição, da experiência e da razão, incluindo a ciência.
O livro “Health and Medicine in the Catholic Tradition: Tradition and Transition” [Saúde e medicina na tradição católica: tradição e transição], de Richard McCormick, de 1984, propôs revisões à luz dos desenvolvimentos antropológicos, éticos, metodológicos e eclesiais do Vaticano II e uma mudança do pensamento baseado em regras. A ética teológica de James Keenan se concentra em Jesus, nas Escrituras e nas relações, e a bioética teológica de Lisa Sowle Cahill, que expande as questões da dignidade a partir do ensino social católico e da justiça global, dá continuidade a esses desenvolvimentos.
Por sermos uma Igreja pós-cristandade, há uma necessidade maior do que nunca na história de ensinar as crenças fundamentais e o discernimento. Precisamos de uma boa teologia para ajudar a orientar as respostas às questões morais, como a morte medicamente assistida a partir de uma consistente ética da vida, do diálogo, da sinodalidade e da opção preferencial pelos pobres.
A reflexão de Massimo Faggioli sobre a crise da teologia acadêmica nas faculdades e universidades católicas que tentam competir em uma economia de mercado é um lembrete chocante da magnitude do desafio. Ao celebrarmos agora a Oitava da Páscoa, confio mais do que nunca no poder do Mistério Pascal. Acredito que podemos sair da escuridão do nosso desespero e nos reerguermos renovados para os desafios que temos pela frente.
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A ética do fim da vida e a esperança pascal. Artigo de Nuala Kenny - Instituto Humanitas Unisinos - IHU