"Em 11 de abril de 2023 a encíclica da paz comemora seus 60 anos. Mas, muros divisores continuam sendo construídos, a dignidade integral e inalienável da pessoa humana segue sendo vilipendiada e a cultura armamentista ganhando espaço e iludindo muita gente".
O artigo é de Elvis Rezende Messias, docente-pesquisador da UEMG Campanha. Licenciado em Filosofia (UEMG) e bacharel em Teologia (UCDB), é Especialista em Doutrina Social da Igreja (PUC-GO) e em Filosofia (Claretianos). Mestre em Educação (UNIFAL) e doutorando em Educação (UNINOVE). É sócio da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd) e membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Filosofia da Educação (GRUPEFE – CNPq, UNINOVE).
Este artigo traz excertos de outros dois trabalhos publicados em: Encontros Teológicos (v. 36, n. 1, 2021) e Interações (v. 16, n. 2, 2021).
A Igreja Católica possui um consistente corpo doutrinal também sobre as questões sociais. Todavia, não é incomum encontrar objeções que dizem que a doutrina social não tem sentido prático fora dos limites religiosos da comunidade cristã. O argumento é que seus fundamentos são demasiadamente metafísicos e exigem fé para o tipo de compreensão e de soluções que oferecem à realidade social. Assim, não teria a Doutrina Social da Igreja (DSI), em última instância, algo de concretamente relevante a dizer para a sociedade atual.
Em 11 abril de 1963, o papa João XXIII publicou a encíclica Pacem in Terris (PT). E logo no cabeçalho do texto, fez um gesto historicamente marcante: apresentou como destinatários da encíclica não somente os católicos ou crentes em geral, mas “todas as pessoas de boa vontade”. Isso foi inédito na história das encíclicas sociais da Igreja.
Isso significa que o papa, que viveu num contexto marcado por intensos conflitos de ordem universal, acreditava que a doutrina da Igreja ainda tinha o que dizer ao mundo atual. Por isso, chamava todas as pessoas a um efetivo diálogo sobre as questões que nos tocam coletivamente, reconhecendo que todos povos, culturas e credos têm com o que contribuir.
Com esse artigo, pretendo levantar aspectos pontuais da vida de Roncalli/João XXIII e do ensino social desenvolvido por ele, especialmente através da encíclica PT. Destaco dez contribuições fundamentais, oportunizando uma redescoberta geral da atualidade da DSI.
João XXIII, cujo nome de batismo era Angelo Giuseppe Roncalli, nasceu na Itália em 25 de novembro de 1881 e faleceu na noite de 3 de junho de 1963. Ele não teve um pontificado longo, mas seu trabalho como pontífice da Igreja Católica foi marcante. Em geral, foram quase cinco anos como papa (de 29 de outubro de 1958 a 03 de junho de 1963). Nesse período, dentre outros feitos, convocou o Concílio Vaticano II e o presidiu em seu primeiro período, além de ter publicado duas de suas encíclicas mais conhecidas, que se tornaram parte do corpo da DSI: a Mater et magistra (MM), de 1961, e a Pacem in Terris, de 1963.
Toda a vida de Roncalli se desenvolveu em um contexto histórico conflituoso. A própria Rerum novarum (1891), a primeira grande encíclica da DSI voltada exclusivamente à questão social do operariado europeu, foi publicada quando ele tinha ainda 10 anos de idade. Os tempos eram de agitações diante do progresso industrialista e capitalista, que gerou insatisfações em muitas pessoas por ocasião das muitas injustiças e explorações que também o acompanharam, além da ascensão de promessas de soluções por meio de regimes totalitários.
Quanto à esfera mundial, Roncalli viu ocorrer:
1) a Primeira Guerra Mundial (1914-1918);
2) a Revolução Russa e o Socialismo Real (1917);
3) a assinatura do Tratado de Versalhes (1919);
4) a primeira grande crise do capitalismo com a Grande Depressão (1929);
5) a Segunda Guerra Mundial (1939-1945);
6) o primeiro uso histórico de bombas atômicas, que foram disparadas pelos EUA em direção às cidades de Hiroshima e de Nagazaki, (1945);
7) parte da Guerra Fria (1945-1991);
8) a Fundação da ONU (1945);
9) o desenrolar intensificado do processo de descolonização afro-asiático (1945);
10) a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos-DUDH (1948);
11) a Revolução Cubana (1959);
12) parte da Guerra do Vietnã (1959-1975);
13) a Crise dos Mísseis em Cuba (1962).
E quanto ao interior do catolicismo, Roncalli viu a publicação de documentos e pronunciamentos dos papas Pio XI e Pio XII que foram importantes vozes da Igreja sobre a realidade mundial de então e passaram a compor o corpo do ensino social católico, tais como:
1) a Quadragesimo anno (de 1931, por Pio XI, comemorativa dos 40 anos da Rerum novarum);
2) a Non abbiamo bisogno (de 1931, por Pio XI, sobre o fascismo);
3) a Mit brennender sorge (de 1937, por Pio XI, sobre o reich alemão);
4) a Divini Redemptoris (de 1937, por Pio XI, sobre o comunismo ateu);
5) a radio mensagem La solenittà dela Pentecoste (de 1941, por Pio XII, comemorativa dos 50 anos da Rerum novarum).
Seja do ponto de vista prático, seja do ponto de vista reflexivo, as experiências históricas muito marcaram o papa Roncalli, levando-o a um constante confronto interior entre o que via ocorrer cotidianamente e a doutrina da fé que trazia dentro de si.
Assim sendo, Roncalli/João XXIII viu a situação de inúmeros conflitos e se envolveu muito diretamente, como sacerdote, para a solução pacífica de vários deles, aprofundando-se em reflexão tendo em vista a difusão do reconhecimento da dignidade integral de cada pessoa humana e um intenso compromisso com a promoção da paz em toda a Terra.
Papa João XXIII assinando a encíclica Pacem in Terris
A Pacem in Terris situa-se no contexto da comemoração dos quinze anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de uma marcante preocupação mundial com a proliferação do armamentismo nuclear. Ela veio a público na Quinta-Feira Santa de 1963, dia 11 de abril. Foi a última encíclica de João XXIII, que morreu menos de dois meses depois.
O Compêndio da DSI (CDSI) chama a PT de “a Encíclica da paz e da dignidade humana” e “sublinha a importância da colaboração entre todos”, sendo “a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a ‘todas as pessoas de boa vontade’” (CDSI, 95).
Denzinger e Hünermann (2015, p. 887) afirmam que com a PT “os direitos da pessoa humana são, pela primeira vez, fundados e reconhecidos no seu conjunto, a partir dos princípios cristãos, pelo Magistério eclesial”, e acrescentam que um exemplar da encíclica foi enviado aos membros da ONU pelo papa “em sinal de solidariedade”.
Já o Docat (2016, p. 38) diz que na PT aparecem “promoção da paz e propagação dos direitos do homem como preocupação central da Igreja”.
João Paulo II (2003), por sua vez, afirmou que a PT teve de viver o desafio de falar de paz para um mundo dividido, que tinha grande expectativa de progresso, mas que se enveredou por um caminho extremamente bélico e por um espírito constante de ameaça.
Segundo a expressão de Carrera (2018, p. 11), a PT surgiu como um convite para as pessoas de boa vontade “não se encerrarem em egoísmos nacionais e em posições rígidas e a enfrentarem, em espírito de colaboração, os problemas cruciais da fome, da justiça e da paz”.
E o próprio Roncalli, em outubro de 1942, já havia deixado manifesto em seu Diário uma evidente preocupação com o problema da contaminação da ideologia nacionalista, especialmente na Itália, mencionando, inclusive, o fato de que também alguns eclesiásticos estavam se deixando envolver por essa atmosfera (cf. JOÃO XXIII, 2018, p. 316).
Na PT, posteriormente, o papa acenou novamente seu incômodo com esse problema do nacionalismo e do uso da força bruta na resolução dos conflitos, quando tratou da temática das minorias sociais diante de processos políticos de cunho puritanista. João XXIII manifestou preocupação com o fato de “que pessoas de uma mesma raça aspirem constituir-se em nação soberana” (PT, 94), denunciando como “grave injustiça qualquer ação que tende a reprimir a energia vital de alguma minoria, e muito mais se tais maquinações procuram exterminá-la” (PT, 95).
É marcante sua renúncia à força e à violência, ainda que para muitos isso soe como fraqueza, covardia, pacifismo, termos que reaparecem hoje em dia. Para o papa, “uma convivência baseada só em relações de força nada tem de humano: nela as pessoas veem reprimida a própria liberdade, quando, ao contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a solicitar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento (PT, 34).
Afirma, ainda, que os conflitos e divergências sociais “dirimem-se não com a força das armas nem com a fraude e o engano, mas sim, como convém às pessoas humanas, com a compreensão recíproca, através de serena ponderação dos dados objetivos e serena conciliação” (PT, 93). E entende que “difunde-se cada vez mais entre os homens de nosso tempo a persuasão de que as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas” (PT, 125).
Como se vê, a DSI segue interpeladora e a PT oferece uma contribuição fundamentalmente atual.
Logo no início da PT, são estabelecidas quatro bases para a paz entre os povos: a verdade, a justiça, a caridade e a liberdade. Essas bases se consagraram no corpo da DSI como seus valores fundamentais (verdade, justiça e liberdade) e sua via mestra (caridade).
João XXIII é convicto de que sem elas não é possível construir uma fecunda convivência interpessoal, pois seria impossibilitado o reconhecimento pleno da dignidade humana. O papa não faz grandes reflexões conceituais sobre essas bases, mas do seu pano de fundo antropológico-teológico decorrem importantes exigências histórico-sociais e morais.
Quanto à verdade, ela é apresentada como elemento irrenunciável para que uma pessoa possa reconhecer aquilo que é, ou seja, sua dignidade, sua transcendência, sua abertura ontológica ao outro, à comunhão, à sociabilidade: em síntese, os próprios direitos e deveres em relação aos demais (PT, 35). Desse modo, a busca pela verdade é a base fundante para a renúncia consciente e a denúncia insistente das mentiras, da calúnia e da desconstrução da dignidade humana – a própria e a dos outros. Por conseguinte, é um importante instrumento para combater as falsas proposições de paz, a má-fé que pretende justificar a guerra, a morte do outro, a exploração, a miserabilidade, o totalitarismo e o relativismo que minam a liberdade, a consciência crítica e a olhar integral para a realidade circundante.
Quanto à base da justiça, ela é posta como um compromisso decorrente da verdade integral da pessoa humana e como fundamento para um concreto reconhecimento da dignidade do outro. A justiça reclama de toda estrutura social uma plena dedicação “ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios deveres” (PT, 35).
Quanto à base do amor/caridade, ela é a via mestra que nos capacita a “sentir as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens”, à procura de “uma perfeita comunhão de valores culturais e espirituais” (PT, 35). Na verdade, o amor é Deus mesmo (1Jo 4, 16), e, assim como Ele se compromete com a nossa salvação integral, também nós, pelo influxo do Amor em nossa identidade, somos capacitados ao compromisso com o desenvolvimento integral de todas as pessoas na sociedade em que vivemos. O amor/caridade não se trata, assim, de “bom sentimento” ou de “assistencialismo”, mas de uma dinâmica que convoca à transformação concreta da estrutura social vigente.
Quanto à liberdade, por fim, ela é fundamental, pois, sendo os humanos “por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade das próprias ações” (PT, 35). A liberdade é um indispensável elemento de nossa humanidade, “expressão da singularidade de cada pessoa humana” (CDSI, 200) e valor que consente a cada um realizar sua própria condição de modo concernente à sua racionalidade, não de modo egoísta, mas na perspectiva do bem comum.
Para João XXIII, “a todos os homens de boa vontade incumbe a imensa tarefa de restaurar as relações de convivência humana na base da verdade, justiça, amor e liberdade” (PT, 162). E, partindo dessa convicção, o papa lidou com diversas temáticas emergentes à sociedade contemporânea na PT, como se pode ver a seguir:
• Os sinais dos tempos como orientação metodológica para captar, à luz da fé, os aspectos da realidade social que interpelam a reflexão teológica a um aprofundado discernimento, reconhecendo a própria realidade como locus teológico (PT, 1-7.39-45.75-79.125-128.141-144).
• Crítica às relações sociais reguladas pelo império da força bruta, acusadas de errôneas e indignas da natureza racional do ser humano (PT, 4-6.34.93.125.127-128.137).
• Explanação sobre os direitos humanos inalienáveis e seus deveres irrenunciáveis, compreendidos de modo complementar, expressando especial esperança e apreço pelo papel mundial da ONU e pelo texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos (PT, 8-45.75.141-144).
• A questão da propriedade privada e de sua função social na perspectiva do princípio da destinação universal dos bens (PT, 21).
• Acenos acerca da centralidade e universalidade da lei natural para a perspectiva do diálogo entre os povos e culturas (PT, 6-7.28-30.80-81.128.131.156.159).
• O desarmamento visto em perspectiva integral, envolvendo a situação das armas nucleares e também das armas menores, depreendidas das noções de “desarmamento integral” e de “desarmamento do espírito/coração” (PT, 5.109-119).
• Constante reafirmação da relação entre os princípios da dignidade humana e do bem comum, realidades às quais o Estado deve servir e promover (PT, 7.12.26.31.53-78).
• A convivência humana como realidade eminentemente espiritual (PT, 36-38.45.78.100.121.123.145.149.151.163.167).
• A gradual ascensão econômica das classes trabalhadoras, o ingresso da mulher na vida pública e a superação da existência de povos dominadores e dominados (PT, 39-45).
• A necessidade e legitimidade da existência das autoridades sociais, mas com uma marcante crítica ao autoritarismo (PT, 46-52.80-85).
• O direito/dever à desobediência civil, à objeção de consciência e à participação dos cidadãos na vida pública (PT, 50-51.73-74).
• Apreço pela democracia, reconhecendo, contudo, que não compete à Igreja determinar de modo definitivo qual é a melhor forma de governo (PT, 52.67).
• A opção de amor preferencial pelos pobres (PT, 56.65).
• Autonomia e complementaridade dos poderes públicos (PT, 67-69).
• A relação entre a organização jurídica e a consciência moral (PT, 70-74).
• A importância da elaboração de uma Constituição em cada Estado que expresse a consciência amadurecida dos povos sobre dignidade humana de todos (PT, 75-79).
• O tratamento das minorias (PT, 94-97).
• O princípio da solidariedade (PT, 98-100).
• A primazia da pessoa humana sobre o capital e a importância do equilíbrio entre população, terra e capitais, com inspirações para pensar a questão da reforma agrária (PT, 101-102).
• O problema dos refugiados políticos (PT, 103-108).
• A responsabilidade do Estado também no bem estar espiritual do povo (PT, 123).
• A relação das sociedades entre si, a comunidade universal, a crítica ao fechado desenvolvimentismo e a responsabilidade das sociedades mais desenvolvidas economicamente em relação àquelas em vias de desenvolvimento (PT, 121-134).
• O princípio da subsidiariedade (PT, 139-140).
• O compromisso social do cristão, a relação fé/vida e o preparo para a inserção social (PT, 146-151).
• A formação/educação integral (PT, 152).
• Não confusão entre erro e pessoa que erra, capacidade de abandono do erro (PT, 157).
• A distinção entre ideologias e movimentos históricos (PT, 158).
• A distinção entre revolução e evolução gradativa e bem orientada (PT, 160-161).
• Os cristãos e a não violência (PT, 162-164).
• Pecado e causa de dissensões, não combater situações de pecado com mais pecado (PT, 168).
• Jesus Cristo como o príncipe da paz e modelo da dignidade humana, e o seu Reino como espelho para a sociedade (PT, 165-171).
João XXIII, logo no início da PT, reafirma que Deus “criou o ser humano à sua imagem e semelhança, dotado de inteligência e liberdade” (PT, 3). Também fez isso na Mater et magistra, expressando que “toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana” (CDSI, 107; cf. MM, 217-220). A ideia de “dignidade humana” é uma constante em seu pensamento.
A compreensão histórica da dignidade humana a partir desse fulcro teológico – imago Dei – era irrenunciável para João XXIII. Textos do Magistério posteriores à PT também reafirmarão contundentemente esse viés interpretativo (cf. Gaudium et spes = GS, 22; Catecismo da Igreja Católica = CIC, 357). O famoso relato de Gn 1, 26-27 apresenta, então, um marcante paradigma antropológico-teológico segundo o ensino social católico, oferecendo “linhas mestras” para a visão “da pessoa humana, da sociedade e da história” (CDSI, 37).
Ainda que a epistemologia contemporânea nutra certas resistências a fundamentações de cunho ontológico, já que não são manipuláveis empiricamente, a doutrina da imago Dei possui uma destacada força crítica diante da realidade social. Ela é, por exemplo, um ataque frontal ao feminicídio, à xenofobia, ao racismo, à pobreza econômica, à violência sexual, psicológica etc. É, ainda, uma das fontes mais perenes de combate à naturalização da tortura, da desigualdade social, do subemprego, do tráfico de pessoas, da exploração de classe, da corrupção, da falta de segurança pública e da cultura armamentista, enfim, de tudo aquilo que degrada a dignidade humana integral, sendo um grito contra a injustiça que se alastra.
João XXIII também foi claro no entendimento de que da consciência da dignidade da pessoa humana depreendem-se vários de seus direitos, e oferece uma lista deles:
a) o direito à existência e a um digno padrão de vida (PT, 11);
b) os direitos que se referem aos valores morais e culturais, como à boa fama, liberdade de pesquisa, liberdade de manifestação do pensamento, cultivo da arte, informação pública verídica (combate à fake news), direito de instrução de base, de formação técnica, profissional e de acesso aos estudos superiores (PT, 12-13);
c) o direito à fé pessoal e pública, de liberdade religiosa (PT, 14);
d) o direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida, ao matrimônio livremente contraído, à primazia na educação dos filhos na perspectiva do bem comum (PT, 15-17);
e) os direitos inerentes ao campo econômico, com marcante senso de responsabilidade social, como à livre iniciativa, ao trabalho justo, devidamente desenvolvido sob condições dignas e dignamente remunerado, “condizente com a dignidade humana” (PT, 20), à propriedade e sua função social (PT, 18-22);
f) direito de reunião e associação, oriundo da sociabilidade natural da pessoa (PT, 23-24);
g) direito de emigração e de imigração, posto que o “fato de alguém ser cidadão de um determinado país” não lhe tira “o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade internacional” (PT, 25);
h) direitos de caráter político, como a participação ativa na vida pública e ao bem comum, dado que a pessoa é o sujeito, o fundamento e o fim da vida sócio-política, e o direito de segurança jurídica contra todo juízo arbitrário (PT, 27).
João XXIII insiste ainda que ao reconhecimento dos direitos impõe-se, por consequência, o reconhecimento da sua relação indissolúvel com os deveres. “Assim, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida; o direito a um condigno teor da vida, à obrigação de viver dignamente; o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo” (PT, 29).
Daí que se apresentam, então, vários deveres:
a) reconhecer a dignidade integral da pessoa do outro, da reciprocidade de direitos e deveres entre pessoas diversas (PT, 30);
b) o dever de colaboração mútua e de promover o bem comum (PT, 31);
c) envidar todos os esforços para que cada pessoa disponha dos bens indispensáveis à sua subsistência (PT, 32-33);
d) o dever do senso de responsabilidade e de liberdade, fruto de uma viva consciência da dignidade humana, e que deve ser sempre superior a qualquer coação, imposição externa, medo, dado que “uma convivência baseada unicamente nas relações de força nada tem de humano” (PT, 34-35);
e) reconhecer os próprios direitos e deveres quanto os dos demais, deixando-se “conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias”, buscando a comunhão (PT, 35);
f) considerar “a convivência humana como realidade eminentemente espiritual”, transpondo reducionismos antropológicos, abrindo-se ao dom do outro, reconhecendo valores de ordem transcendente (comunhão, igualdade de dignidade, verdade, justiça, amor, liberdade...) como basilares para a articulação da convivência humana pacífica e condigna ao ser humano (PT, 36-37).
É fundamental, então, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, que se dá para além da mera promoção dos seus direitos individuais, pois não se deve absolutizar o ser humano em um humanismo autorreferenciado. Sendo imagem de Deus, que é Trindade de Pessoas em plena relação, o ser humano também é pessoa, é alguém, não uma coisa, é um ser aberto ao outro, à sociabilidade, que se realiza no bem comum. Tal compreensão segue tendo o que contribuir para a superação das barbáries dos dias de hoje.
A doutrina da imago Dei também se destaca quanto ao urgente resgate da complexa noção de todo, de uma perspectiva de integralidade diante das coisas.
A contemporaneidade muito se marca por um intenso aceleramento produtivo, pelo excesso de informações, por excitações e estímulos diversos. Nesse sentido, é constante o risco de fragmentação interpretativa, de reducionismo antropológico etc.
A DSI, porém, compreende a dignidade humana como dignidade integral. A pessoa é digna em sua totalidade, em todas as dimensões de sua existência. João XXIII alude a isso quando fala do princípio do bem comum, que “diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo, como às do espírito” (PT, 57). E, por definição, o bem comum deve consentir e favorecer “o desenvolvimento integral da personalidade humana” (PT, 58).
A fenomenologia humana e o arcabouço científico atual demonstram a complexidade do humano, suas múltiplas dimensões e possibilidades de desenvolvimento. Somos homo somaticus, homo vivens, homo sapiens, homo volens, homo loquens, homo politicus, homo culturalis, homo faber, homo ludens e homo religiosus (MONDIN, 1980). Somos, assim, homo complexus, convergindo sapiens e demens, prosaicus e poeticus, economicus e ludens etc. (MORIN, 2012).
Desse modo, somos chamados à visão integral do real, à compreensão sistêmica do complexo social, ao desafio de pensar soluções aos urgentes problemas contemporâneos em perspectiva abrangente. Isso também impõe o dever de promover o princípio da participação (PT, 73-74), garantindo que cada pessoa possa colaborar na construção coletiva das propostas, na análise plural dos fatos, na busca de uma caridade social ampla, que não somente se efetive em assistência imediata, mas que procure as fontes dos males para saná-los na raiz e possibilitar que cada grupo de pessoas tenha condições de fazer algo por si, conforme inspira também o princípio da subsidiariedade (PT, 122).
Diante disso, percebe-se uma especial necessidade de autorreflexão fenomenológica, em que o próprio ser humano é convidado a olhar para si como realidade integral, como ser integralmente digno, porque integralmente salvo (cf. CDSI, 1).
A doutrina social presente na PT marca um singular momento de abertura dialogal da Igreja com a sociedade atual. Todavia, há muitas resistências a isso dentro da própria Igreja.
Houve, de fato, uma franca condenação do comunismo e das heranças anticomunistas na doutrina social de Leão XIII, Pio XI e Pio XII. Mas a DSI passa por constantes aprofundamentos, conciliando continuidade e renovação. Na DSI, “a firmeza nos princípios não faz dela um sistema de ensinamentos rígido e inerte, mas um Magistério capaz de abrir-se às coisas novas sem se desnaturar nelas: um ensinamento sempre novo” (CDSI, 85). Assim, houve um importante aprofundamento do discernimento entre ideologias originárias e movimentos históricos surgidos a partir delas.
O discurso anticomunista acabou ganhando no imaginário de muitos católicos a sensação de que existe um automático apoio da Igreja a regimes de direita e mesmo de ultradireita nacionalista, especialmente porque frequentemente esses regimes se utilizam da retórica religiosa e de um aparente alinhamento ao catolicismo como estratégia para imposição de suas agendas ideológicas. Mas a Igreja não ensina isso.
Na encíclica PT, João XXIII oferece um discernimento fundamental, explicando que certa “doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é suscetível de alterações profundas” (PT, 158). O papa reconhece que mesmo aquelas ideias que receberam condenações enfáticas da Igreja no passado passam por novas formulações e também possuem algo a ser considerado, podendo gerar movimentos históricos ao mesmo tempo resultantes e distintos delas. Essa chave interpretativa é indispensável para o discernimento das muitas ideologias político-econômicas que circulam entre nós.
O papa Paulo VI, na encíclica Populorum progressio (PP, 30), também fez menção direta a esse discernimento de João XXIII, ficando claro que o que foi apresentado na PT se tornou um indispensável critério de discernimento para toda a Igreja a partir de então.
Sobre isso, Denzinger e Hünermann (2015, p. 905) explicam que João XXIII pôs em exercício o critério paulino do “examinai tudo e ficai com o que é bom” (cf. 1Ts 5, 21), “aplicando-o ao que há de bom nos movimentos sociais”. O papa também teria justificado o que já havia exposto na encíclica Mater et magistra, na qual apresentou uma “prudente abertura [...] em relação aos progressos da vida social, distinguindo sempre entre as aspirações justas de um movimento e as origens do mesmo ou sua maneira de proceder”.
Enfim, apresenta-se aos católicos a necessidade constante do discernimento, do diálogo e da superação de engessamentos interpretativos, sob a moderação da “virtude da prudência” e em sintonia “com os princípios do direito natural, com a doutrina social da Igreja e as diretrizes da autoridade eclesiástica” (PT, 159).
É importante também relacionar o tema da promoção da paz com a problemática questão das armas. Aqui, as categorias de dignidade integral, de desenvolvimento integral e de desarmamento integral (PT, 113) se revelam intimamente ligadas.
Para João XXIII, o fundamental a ser alcançado é a “completa eliminação” (PT, 113) dos armamentos. E aí também se insere a questão das armas de pequeno porte e de posse individual. Ainda que a discussão feita pelo papa necessite ser situada no campo do direito internacional e das questões das armas de destruição em massa, há, por parte da lógica interna do ensino social católico, um enfático incentivo à diminuição da cultura armamentista, seja na ótica universal e das armas de destruição em massa, seja também na ótica da “defesa” particular. E, decisivamente, a chamada “doutrina da guerra justa” é posta em questão e levada à superação: “não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados” (PT, 126).
Considerando que em diversos países já há legislações que possibilitam a posse e o porte de arma aos seus cidadãos, não há razões verdadeiramente evangélicas para incentivar a facilitação do acesso às armas, uma vez que o fundamental é que elas sejam eliminadas por completo, conforme salientou João XXIII. Não há, por parte da Igreja, um incentivo a políticas que facilitem o seu acesso sob o pretenso argumento de que a cultura da paz seria alcançada com a promoção da cultura armamentista. E é a coerência interna de seu olhar teológico sobre o desenvolvimento integral do mundo e a dignidade integral do ser humano que justificam esse não incentivo católico às armas.
Assim sendo, compreende-se cada vez mais que a Igreja reflete na perspectiva do desenvolvimento integral e que essa reflexão se encaminha por coerência, ao reconhecimento e à promoção do desarmamento integral. O que está em jogo não é apenas o desarmamento concreto das armas físicas, bélicas, de fogo, mas, sobretudo, o desarmamento do coração, até que alcancemos o humanismo integral ao qual somos intimamente vocacionados.
Esperar que a cultura das armas seja o caminho para a cultura da paz pode ser sinal de desespero e, talvez, até mesmo de perda do sentido de transcendência e da dignidade integral/ontológica/teológica da pessoa humana. Em última instância, é uma escolha que se encaminha para destruir a imagem daquilo que se pretende defender: a imagem da dignidade humana, sua vida e liberdade (CDSI, 496).
Por isso afirma a Igreja que “também o mundo atual necessita do testemunho dos profetas não armados, infelizmente objeto de escárnio em toda época” (CDSI, 496). “A paz que eu vos dou não é a mesma que o mundo vo-la dá” (Jo 14, 27).
Redescobrir e difundir o ensino social católico ainda é um trabalho inspirador para hoje. Quando a Igreja intervém nas questões sociais ela não está se dirigindo a algo que lhe é alheio nem se trata de um desvio de sua missão.
A PT possibilita um olhar abrangente para o diálogo contemporâneo entre as esferas da sociedade mundial, manifestando forte profissão de fé em Deus, mas também na própria humanidade, na sociedade humana e na capacidade que cada pessoa tem de reconhecer os fundamentos transcendentes da dignidade de toda a criação. Para João XXIII, é preciso reconhecer que a ordem social é, sobretudo, de natureza espiritual, devendo ser fundada na verdade, realizada segundo a justiça, recomposta na liberdade e animada pelo amor (PT, 36-37). Em síntese, é Deus mesmo a fonte “donde possa haurir a sua genuína vitalidade uma sociedade bem constituída, fecunda e conforme à dignidade de pessoas humanas” (PT, 38).
Em 11 de abril de 2023 a encíclica da paz comemora seus 60 anos. Mas, muros divisores continuam sendo construídos, a dignidade integral e inalienável da pessoa humana segue sendo vilipendiada e a cultura armamentista ganhando espaço e iludindo muita gente.
Nunca é demais redescobrir o espírito da última encíclica de João XXIII. Quando estava próxima de completar 40 anos, o papa João Paulo II (2003), foi direto e claro sobre ela: Pacem in Terris, um compromisso permanente. E, agora, às vésperas dos 60 anos da encíclica joanina, o papa Francisco, em sua intenção de oração para o mês de abril de 2023, deixando-se inspirar pela PT, clamou “por uma maior difusão da cultura da não violência, que implica a diminuição do uso de armas, tanto por parte dos Estados como dos cidadãos”. Esse é caminho, pois o desejo de paz segue forte no interior de cada ser humano (PT, 165).
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