27 Março 2023
E se o caminho para transformar o planeta e torná-lo sustentável dependesse de algo tão cotidiano e de primeira necessidade como a comida? Este é o argumento defendido pela arquiteta, professora e escritora britânica Carolyn Steel, em seu livro Sitopía (Capitán Swing, 2022).
Sitopia é um termo inventado por Steel a partir das palavras gregas sitos (alimento) e topos (lugar), e significa, literalmente, lugar de alimentos. Com isso, pretendia dar um nome à nossa sociedade, um mundo conformado pela comida.
Steel reflete sobre como a forma como nos alimentamos moldou nossas cidades. Conforme os mercados tradicionais vão desaparecendo e o valor que atribuímos à comida é cada vez menor, também vamos perdendo a coesão social, a saúde e até a nossa própria identidade cultural. Por dependermos de alimentos cada vez mais baratos e produzidos de modo intensivo, entramos em um modo de vida menos sustentável. Ainda temos tempo para mudar?
A entrevista é de Mariángeles García, publicada por Yorokobu, 22-03-2023. A tradução é do Cepat.
A filosofia está muito presente em seu livro. O fato desta disciplina estar desaparecendo dos planos de estudo (ao menos na Espanha) nos torna, como cidadãos, mais vulneráveis a ideologias que nos desumanizam?
Sim! De fato, acredito que estamos perdendo a capacidade de pensar por nós mesmos e de nos fazer grandes perguntas, o que realmente me preocupa. Penso que a internet criou uma espécie de supermercado das ideias, no qual as pessoas vão às compras até encontrar conceitos pré-fabricados que as atraem. Então, elas os adotam por atacado, como se tivessem sido pensados por elas próprias.
Isto me preocupa muito, porque essas ideias, muitas vezes, tornam-se ideologias irremovíveis. Também nos expõe a acreditar em teorias da conspiração e a ser incapazes de examinar o que realmente pensamos desde a base e, portanto, de estabelecer um debate fundamentado. Como vimos com a recente invação ao Capitólio dos Estados Unidos e agora ao Congresso brasileiro, este fenômeno ameaça a própria democracia.
Qual é a relação entre filosofia e alimentação, e como isso afeta nossa cultura alimentar?
Bem, existem poucos atos tão significativos como o de comer: levanta questões muito profundas como o que é a vida, o que significa compartilhar com justiça, qual é a nossa relação com a natureza e como é uma boa vida.
Por exemplo, só pelo fato de comer, nós nos autorizamos a considerar nossa vida mais importante do que a de, por exemplo, um frango ou uma batata. Mais do que isso, penso que ver o mundo pelo prisma da comida pode nos ajudar a nos tornarmos filósofos, o que significa que pode nos habilitar a fazer grandes e importantes perguntas. E isso, conforme eu dizia antes, é extremamente importante. De fato, se eu tivesse que redesenhar o plano de estudos, colocaria a alimentação e a filosofia entre as disciplinas mais importantes.
Por isso, inventei a palavra sitopia, porque vivemos em um mundo moldado pela comida. Sendo assim, pensar a partir dela pode nos ajudar a olhar ao nosso redor, questionar nosso lugar no mundo e voltar a nos fazer essas grandes perguntas.
O urbanismo das cidades costumava gravitar em torno de seus mercados: eram os centros de reuniões sociais e quase políticas. Como o urbanismo mudou, desde que a nossa alimentação piorou?
O mercado era o centro da cidade pré-industrial, não só fisicamente, mas social, econômica, simbólica e politicamente. Antes que a industrialização destruísse a o vínculo geográfico entre os alimentos e as cidades, os mercados eram os únicos lugares onde as pessoas podiam comprar alimentos frescos, então, todos recorriam a eles, não só para comprar comida, mas para uma socialização, para saber das últimas notícias e tagarelar.
Basta ler as descrições da ágora ateniense, os relatos de Zola sobre Les Halles, em Paris, e os de Samuel Pepys sobre Covent Garden para perceber como esses espaços públicos eram vibrantes. De fato, os supermercados foram projetados especificamente para eliminar os encontros sociais que outrora caracterizavam os mercados, o que significa uma grande perda.
O que essas mudanças implicam?
Como arquiteta, tenho muito interesse na importância da esfera pública, ou seja, a presença de um espaço aberto, inclusivo e heterogêneo no qual se é livre para atuar e se encontrar face a face com seus concidadãos. De fato, isso está diretamente relacionado ao debate anterior, sobre como as pessoas estão perdendo a capacidade de debater e pensar por si mesmas, porque grande parte dessa atividade agora é realizada on-line. E isto está longe de ser um verdadeiro espaço público, já que, como sabemos, é muito manipulado.
As implicações são enormes, uma vez que limitam nossa experiência do outro e nossas oportunidades de sentir o que temos em comum (apesar de nossas diferenças). E, por sua vez, ameaça nosso compromisso político e, de fato, nossa capacidade de participar como cidadãos em uma democracia que funcione.
Como deveria ser uma cidade urbanizada em torno de sua cultura gastronômica?
Qual é a primeira coisa que você faz quando viaja para uma nova cidade? No meu caso, e penso que no de muitos de nós, é procurar pela comida local e tradicional, seja em mercados, comércios locais, cafés e restaurantes. É de longe a maneira mais rápida (e prazerosa!) de entender o que faz um lugar funcionar, como as pessoas se relacionam, como são a paisagem e a cultura local.
Uma cidade como Barcelona, por exemplo, que protege e investe em seus mercados e promulga leis para protegê-los do desenvolvimento dos supermercados, seria uma dessas cidades. E, claro, muitas cidades do sul permanecem organizadas de forma espetacular em torno de suas culturas alimentares tradicionais, porque a marcha inexorável do McDonald's et al ainda não as alcançou.
Penso que a mensagem mais poderosa que podemos enviar a esses lugares é que, a todo custo, se apeguem a suas culturas alimentares locais: uma vez perdidas, é muito difícil recuperá-las (como qualquer pessoa no Reino Unido pode dizer!) e delas depende, em grande medida, a coesão social e política de um povo.
A cidade precisa do campo para sobreviver, mas, ao mesmo tempo, ela o despreza e ignora. Como explicar esta incoerência?
Basicamente, são estruturas de poder que, como sabemos, são muito antigas. Em um nível muito básico, as cidades e o campo coevoluíram, mas historicamente a maior parte do poder e da narrativa política estava nas mãos das cidades. É o que vemos, inclusive, na Epopeia de Gilgamesh, a história mais antiga que existe, na qual o rei de Uruk – talvez a cidade mais antiga da Terra – despreza o campo (na forma de bosque sagrado). Ele o saqueia e é castigado pelos deuses.
Parece-me fascinante, porque, em certo sentido, a Epopeia de Gilgamesh é a parábola ambiental mais antiga que existe. Então, sempre soubemos que o desequilíbrio entre cidade e campo era uma coisa perigosa, mas por muitos anos, na verdade, até meados do século XX, pode-se dizer, permaneceu a ilusão de que a terra, também conhecida como natureza, era infinita e dispensável.
Agora que sabemos que a Terra é finita, essa suposição assume um traço totalmente diferente. Talvez a tarefa mais urgente que enfrentamos hoje seja encontrar um novo equilíbrio entre a cidade e o campo, algo que as duas metades da civilização urbana desfrutaram só brevemente, ao longo da história.
Se somos o que comemos, como somos hoje?
Há pouco, brinquei dizendo que alguns de nós somos macarrões ambulantes. A brincadeira era séria, pois conforme nossa alimentação se industrializa, comemos mais alimentos processados, cheios de produtos químicos artificiais e gorduras inapropriadas, inclusive, substâncias criadas artificialmente que nossos corpos têm dificuldades para absorver e que interferem em nossos sistemas digestivos.
E agora sabemos que são estes alimentos que estão por trás da epidemia moderna da obesidade, bem como aterradora onda de doenças relacionadas à dieta. (É notável que as “condições de saúde subjacentes” que fizeram com que as pessoas no Ocidente estivessem muito mais propensas a morrer de covid, como diabetes, câncer e problemas cardíacos, estavam quase todas relacionadas à dieta.)
Em síntese, nós, que vivemos de alimentos altamente processados e de grandes marcas que cada vez mais dominam os corredores centrais dos supermercados somos bombas-relógio ambulantes para problemas de saúde e o encurtamento da vida!
Com a crise bélica da Ucrânia e o problema dos grãos ucranianos que alimentam o mundo, começamos a entender o problema da globalização. O que mais fizemos ou estamos fazendo de errado?
Certo, a guerra na Ucrânia foi uma chamada de atenção que nos diz que o sistema alimentar moderno, com suas cadeias alimentares altamente concentradas e consolidadas, é uma receita para o desastre. Existe tanta coisa para dizer a esse respeito que, realmente, seria necessário um livro, mas, em essência, muitos dos problemas que enfrentamos hoje são o resultado de tentar resolver o problema sobre como comer:
1. Tentando submeter a natureza a golpes com o uso de combustíveis fósseis e produtos químicos, em vez de trabalhar com ela.
2. Criando a ilusão de comida barata, quando tal coisa não existe.
3. Permitindo que nossos líderes políticos cedam o controle dos alimentos e a responsabilidade de alimentar seu povo às empresas, cuja única motivação é obter lucros.
4. Desregulamentando o sistema alimentar e deixando de proteger o mundo natural, de modo que está sendo sistematicamente destruído.
5. Criando uma ideia de boa vida baseada na existência de alimentos baratos, que virou de cabeça para baixo nosso sistema de valores.
Devemos entender o livro como uma crítica ao capitalismo?
Em uma palavra, sim! E, claro, nenhuma das questões que acabo de enumerar teriam sido possíveis sem o capitalismo. De fato, muitos delas são consequência direta dele. A doutrina de que a natureza é infinita e grátis, que os animais – e os humanos – são dispensáveis e que o lucro é a única coisa que importa são todos resultados diretos do pensamento capitalista em sua forma mais extrema.
Isso não quer dizer que não precisamos de mercados – precisamos –, mas também precisamos de medidas sociais e políticas sólidas para obrigar os mercados a agir em nosso interesse, o que significa estabelecer nossa economia de tal maneira que os incline a objetivos sociais e ecológicos que são comuns.
Por exemplo, espero que a maioria das pessoas esteja de acordo que a criação de uma sociedade próspera e equitativa, a preservação da natureza e a mitigação da mudança climática devem estar acima dos lucros. Por isso, proponho uma economia sitopiana, que baseie nosso pensamento econômico no verdadeiro valor dos alimentos, para substituir nosso atual sistema monetário.
“Sitopia” traz como subtítulo “Como a comida pode salvar o mundo”. Como você faria?
Em primeiro lugar, valorizando a alimentação e a devolvendo ao centro da nossa forma de viver, que é onde ela deve estar. A comida conecta e dá forma a tudo em nossas vidas, e é também a coisa mais valiosa que temos que produzir para sobreviver, por isso tem um poder inigualável de moldar nossas vidas para melhor, caso permitamos!
Pensar e agir por meio da comida nos obriga a nos fazer todas as grandes perguntas e, como a comida é essencialmente a própria vida, pode nos levar na direção correta. Onde as pessoas valorizam a comida e se reúnem para produzi-la, cozinhá-la e compartilhá-la, o mundo muda para melhor.
Ao refletir sobre a alimentação, podemos reajustar nossa ideia de uma boa vida e começar a construir um futuro florescente. A sitopia nunca pode ser utopia, mas aprendendo a aproveitar o poder da comida para o bem, podemos nos aproximar do sonho utópico de criar uma sociedade equitativa, saudável e resiliente para todos.
A comida tem poderes mágicos! Em muitos sentidos, é a ferramenta mais poderosa para transformar nosso mundo que não sabíamos que tínhamos.
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“A comida é a ferramenta mais poderosa para transformar nosso mundo”. Entrevista com Carolyn Steel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU