04 Março 2023
Um ano após a invasão da Ucrânia e o início de um conflito armado que ninguém sabe como deter, aprendemos uma coisa: a variável independente é a guerra, não a paz. Estamos presos em Heráclito, filósofo grego de 2.500 anos atrás: “Pólemos é o pai de todas as coisas”.
A reportagem é de Giorgio Meletti, publicada por Domani, 28-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A humanidade sabe fazer a guerra, repete automaticamente seus ritos e palavras: de ambos os fronts, retumba o canhão, e o líder louva a vitória que reparará o sangrento mal sofrido.
Quem acha que tudo isso é uma loucura é tachado de traição e inteligência com o inimigo. Sempre se fez assim, a paz é bela, mas impossível se alguém lhe agride. Então, armemo-nos para vencer a guerra, fingindo que não sabemos que, na melhor das hipóteses, a derrota do inimigo prepara a próxima guerra.
A humanidade eurocêntrica a que pertencemos iludiu-se por quase 80 anos de ter sido vacinada da loucura da guerra, acreditando ter aprendido a lição após os 68 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial. Cultivou a ideia de que a variável independente, o imperativo categórico era a paz.
Na realidade, nesses 80 anos, os exércitos continuaram se armando, a paz foi confiada à força dissuasiva dos arsenais e à eficiência de exércitos que nunca deixaram de treinar em pequenos e grandes conflitos regionais.
Como demonstra o caso ucraniano, a ideia de que a paz é o resultado de uma paciente e honesta composição dos conflitos e da vontade de solucionar pronta e profundamente controvérsias de raízes seculares não deu um passo à frente. Precisamente porque o caso ucraniano não foi efetivamente neutralizado nos últimos anos, a guerra tornou-se inevitável. E ainda estamos presos à ideia de que a guerra, quando inevitável, é justa.
Basta um slogan um pouco tolo (“Há um agressor e um agredido”) para desqualificar a ideia de reconstruir a paz como uma ilusão de belas almas ou, pior, como um cavalo de Troia da propaganda inimiga à qual se prestam os habituais idiotas úteis ou, pior, os traidores.
O conceito é simples: basta que um país decida ir à guerra para que todos os outros passem a combater, com base no princípio moral segundo o qual é preciso ser corajoso e não covarde, e no dogma realista segundo o qual os valores europeus da paz e da democracia devem ser defendidos com mísseis.
O próximo passo é a retórica belicista segundo a qual o povo ucraniano quer a guerra, porque prefere a vitória à rendição. Assim como o povo russo ficaria contente em enviar seus jovens para morrer para agradar o ditador.
Há três meses, o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior estadunidense, fez a contabilidade da guerra: 100 mil soldados russos mortos ou feridos, outros tantos do lado ucraniano. Inúmeros observadores ocidentais estimam que o número de russos mortos é muito maior, e alguns chegam a acreditar que Putin está encurralado. O número exato de mortos é ultrassecreto, porque desencorajaria as tropas, e essa astúcia estratégica permite que se esconda que a real dimensão da loucura.
Ao mesmo tempo, porém, acredita-se que continuar armando a Ucrânia levará à derrota militar de Putin, ou seja, a encurralá-lo e a forçá-lo a se retirar e a negociar. A Rússia evoca o uso da bomba atômica, o Ocidente acredita que ela não terá coragem disso. E a chamada escalada seguem em frente.
Neste ano de guerra, a ONU confirmou 8.006 civis mortos na Ucrânia (dos quais 487 crianças) e 13.287 feridos. Mas há temores de que o número real seja pelo menos o dobro disso ou mais. São muitos? São poucos? Trata-se de um preço aceitável para a defesa da liberdade do Ocidente? No mesmo período, a Itália contabilizou 34.000 mortes por Covid, então, nós, italianos, temos mais perdas pela Covid do que os ucranianos pela guerra.
Mas isso só demonstra que a contabilidade do horror é inútil, porque não sabemos ponderar o número de mortos e porque a conta não considera que, há um ano, a vida também foi sequestrada dos próprios vivos. Há uma pergunta que a retórica dos últimos meses proibiria: há mais egoísmo em invocar a rendição de Kiev (para salvar os próprios interesses econômicos e a própria tranquilidade) ou em deixar que a vida dos ucranianos continue sendo massacrada em vista da vitória sobre o criminoso de guerra?
E temos certeza de que o sentimento predominante entre os ucranianos é aquele representado pelos exilados que aparecem nos nossos telejornais para pedir armas e mais armas e que consideram qualquer hipótese de cessar-fogo uma punhalada nas costas?
O horror está na linguagem. “O nosso destino é vencer”, proclama o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, com o tom dos ditadores de antigamente. A premiê italiana, Giorgia Meloni, está em perfeita sintonia: “O destino da União Europeia e das democracias ocidentais também passam pela vitória da Ucrânia (...) e uma derrota da Ucrânia não seria nada mais do que o prelúdio de uma possível invasão de outros Estados europeus”.
Tudo isso já foi escrito em 1941 por Stefan Zweig, um escritor judeu de Viena em fuga da perseguição hitleriana, em uma implacável e preciosa reconstrução do clima cultural em que explodiu não a segunda, mas a Primeira Guerra Mundial: um testamento espiritual deixado ao mundo logo antes de se suicidar.
Primeiro, a subestimação do problema: “No fundo, todos sabíamos há anos como funcionavam esses conflitos diplomáticos; no último momento, antes que a situação ficasse definitivamente comprometida, sempre eram resolvidos da melhor maneira. Por que não deveria ter acontecido o mesmo também naquela ocasião?”.
Depois, quando as armas começam a disparar, a aceitação de uma guerra inevitável e justa: “O desalento inicial diante de uma guerra que ninguém quis, nem os povos, nem os governos, uma guerra que os diplomatas involuntária e desajeitadamente deixaram escapar do controle havia se transformado em um repentino entusiasmo”.
Logo depois, afirma-se a ideia de que a culpa é dos inimigos: “Se, portanto, havia eclodido uma guerra, isso só podia ter ocorrido contra a vontade dos próprios homens de Estado; a culpa certamente não era deles. Pelo contrário, ninguém em todo o país tinha a mínima culpa: os criminosos, os belicistas tinham que estar necessariamente do outro lado da fronteira. Desembainhar a espada contra um inimigo cruel e perverso, que sem a menor razão atacava a pacífica Áustria, a pacífica Alemanha, devia, portanto, ser considerado legítima defesa”.
Por fim, chegava o fanatismo: “Os escritores juraram solenemente que não manteriam mais relações culturais com um francês ou com um inglês, chegando até ao ponto de negar que uma cultura inglesa ou francesa já existiu. Em comparação com o espírito alemão, com a arte alemã, com os costumes alemães, tudo era insignificante, sem valor. Muito mais vergonhoso foi o comportamento dos estudiosos e dos eruditos: os filósofos não souberam fazer nada além de proclamar a guerra como um ‘banho de aço’, da qual os povos sairiam temperados e que evitaria o risco de um fatal enfraquecimento de suas forças”.
E, para alimentar o fanatismo, eis a propaganda: “Os rumores mais infundados transformavam-se imediatamente em verdades certas, acreditava-se na calúnia mais absurda. Na Alemanha, viviam dezenas e dezenas de pessoas que juravam ter visto com seus próprios olhos, pouco antes da eclosão da guerra, carros carregados de ouro viajando da França para a Rússia; os jornais transbordavam de histórias de olhos arrancados e de mãos decepadas, que em todas as guerras começam a se espalhar desde o terceiro ou quarto dia. Aqueles ingênuos que se faziam propagadores dessas mentiras não sabiam que a técnica de atribuir ao soldado inimigo toda crueldade possível é material bélico tanto quanto os projéteis e os aviões, e que ela é regularmente retirada dos depósitos no início de cada conflito” (Stefan Zweig, “O mundo de ontem”, 1944).
Depois de 100 anos, repetimos o mesmo roteiro como se fosse ditado por uma lei da natureza. Estar do lado do agredido, defender a frágil Ucrânia da prepotência russa. Todas coisas aparentemente óbvias, mas com uma consequência incontrolável: a única saída da guerra é a guerra com um único objetivo aceitável, a derrota militar da Rússia. No entanto, sabemos que a vitória militar seria apenas o começo de uma nova temporada de conflitos.
Isso nos foi ensinado pelo economista John Maynard Keynes, que em 1919 participou, em nome da Grã-Bretanha, na conferência de paz de Paris e renunciou 20 dias antes da assinatura do Tratado de Versalhes.
Logo depois, ele confidenciou no pequeno ensaio “As consequências econômicas da paz” sua letal profecia: “Se mirarmos deliberadamente no empobrecimento da Europa Central, a vingança, ouso prever, não tardará a chegar. Nada poderá, então, atrasar por muito tempo aquela guerra civil final, em relação à qual os horrores da guerra alemã passada desaparecerão no ar, e que destruirá, quem quer que seja o vencedor, a civilização e o progresso da nossa geração”.
Vinte anos depois, a história apresentou a conta: uma paz apressada após uma guerra que havia custado 17 milhões de mortos preparou o terreno para uma nova guerra com 68 milhões de mortos.
No entanto, hoje, olhamos para a última guerra mundial com nostálgico orgulho. No fundo, diz-se, o mundo livre derrotou Hitler. O qual, porém, antes de se suicidar no bunker, conseguiu matar 25 milhões de russos e seis milhões de judeus, sem falar nos outros. No entanto, não foi a última guerra mundial, agora sabemos: a próxima ainda não eclodiu tecnicamente, mas já está nas palavras do Ocidente.
A guerra vitoriosa, que a própria cúpula militar estadunidense considera impossível, é sustentada por um arsenal de argumentos ilógicos. Apenas um exemplo.
Em Kiev, Giorgia Meloni fez esta afirmação: “Lembrou-me o nascimento do Estado italiano, presidente Zelensky. Porque houve um tempo no qual se dizia que a Itália como nação não existia e que a Itália era simplesmente uma expressão geográfica. Depois, veio o Risorgimento italiano, e a Itália provou ser uma nação. É um pouco parecido com aquilo que acontece com vocês hoje: alguns consideravam que seria fácil curvar a Ucrânia, porque a Ucrânia não era uma nação, mas com a capacidade que vocês tiveram de lutar, de resistir, vocês demonstraram que são uma extraordinária nação”.
Essa reconstrução da história italiana é lunar. A unificação italiana foi realizada pelo Reino da Sardenha por meio de ocupações militares e anexações com plebiscitos, assemelhando-se, portanto, mais à operação de Putin no Donbass do que à resistência ucraniana.
E a Itália era verdadeiramente uma expressão geográfica, segundo a expressão cunhada pelo chanceler austro-húngaro Klemens von Metternich, tanto que em 1861 não mais do que 10% da população falava italiano. E não foram as pequenas guerras do Risorgimento que fizeram da Itália uma nação, mas sim décadas de trabalho silencioso do exército de professores primários pagos pelo Estado, os verdadeiros heróis nacionais.
É apenas um exemplo, justamente, de perda de sentido. Defende-se que a guerra deve continuar com um argumento aparentemente linear. A Ucrânia foi atacada e tem o direito de se defender até recuperar os territórios ocupados pela Rússia, que, segundo Zelensky, incluem os invadidos há um ano, mas também a Crimeia.
Portanto, a única chance de paz é que Putin aceite voltar para casa de mãos vazias ou muito vazias, o que é altamente improvável. A quem levanta a hipótese de que Zelensky renuncie a algo para ter a paz, rebate-se que seria uma humilhação inaceitável, uma rendição ao agressor desejada pelos pacifistas ocidentais, mais atentos às suas contas de gás do que à liberdade do Donbass. Como se a paz não fosse sobretudo do interesse do povo ucraniano, que, segundo a retórica belicista, depois de um ano debaixo do fogo dos mísseis russos, estaria disposto a continuar assim por sabe-se lá quantos anos a fim de não se render ao prepotente.
Não só isso. Iludir-se de que o sagrado banho purificador da guerra fortalecerá a identidade nacional ucraniana ignora o fato de que a guerra semeia o ódio nos terrenos que atravessa. Nós, ocidentais, custamos a entender até que ponto o Donbass é povoado por russos ou por ucranianos, e nem mesmo os interessados sabem muito bem.
Normalmente é a guerra que divide, que traz o ódio entre vizinhos, como ensina a experiência da ex-Iugoslávia. Seja como for que essa guerra termine, décadas infernais se seguirão para a Ucrânia, marcadas por uma guerra civil rastejante que será causada pela própria guerra.
Se tentarmos desmontar a retórica (agredido e agressor, coragem e covardia, equivalência entre paz e rendição a Putin), resta apenas uma lógica, o imperativo da guerra. O filósofo alemão Jürgen Habermas, 93 anos, levantou uma questão premente.
Se é verdade que Putin não manifesta nenhuma vontade de negociar, também é verdade que os aliados da Ucrânia cometeram um erro ao não declararem desde o início os objetivos do apoio militar a Zelensky:
“Essa escolha deixou em aberto a perspectiva de uma mudança de regime inaceitável para Putin. Pelo contrário, o objetivo declarado de restabelecer o status quo anterior a 23 de fevereiro de 2022 teria facilitado o caminho posterior das negociações”.
Ao invés disso, prevaleceu, com toda a evidência, a vontade de ambas as partes de modificar as relações de força in loco sempre que possível, para impor ao inimigo uma negociação em condições de fragilidade.
Assim, embora seja considerado traição falar de paz, restam os fatos da guerra. Em 1º de dezembro de 2021, três meses antes do ataque russo à Ucrânia, o secretário de Estado estadunidense, Anthony Blinken, declarou ter as provas de que Putin estava planejando uma possível agressão militar à Ucrânia.
“Não sabemos se Putin tomou a decisão de invadir, mas devemos estar preparados para todas as eventualidades.”
Pode ser uma coincidência, mas justamente a partir daquele dia as ações dos principais fabricantes de armas estadunidenses dispararam. Nos 86 dias que se passaram até o dia 24 de fevereiro de 2022, data de início da guerra, as Bolsas de todo o mundo tremeram com medo da guerra, mas as ações da Northrop Grumman subiram 28%, as da Lockheed Martin 22%, as da Raytheon 21%, as da General Dynamics 15%.
No mesmo período, o índice Dow Jones perdeu 1,5%. Até a italiana Leonardo, em seu nicho, participou da festa. Entre o início de dezembro e o dia 24 de fevereiro seguinte, suas ações valorizaram 58%, enquanto o índice Ftse Mib da Bolsa de Milão perdeu 5%.
Nunca devemos esquecer que, em uma guerra como a da Ucrânia, os países da Otan defendem a democracia, mas também os orçamentos de suas fábricas de armas e, de modo geral, o próprio PIB.
A questão não é tanto que a guerra seja um grande negócio, um argumento de moralistas e de belas almas, mas sim que, neste momento, é um negócio errado. Junto com o primeiro aniversário da guerra na Ucrânia, estamos celebrando o terceiro aniversário da Covid. Sim, a pandemia. Parece que se passou um século desde as discussões de então.
Em 2021, poucas semanas antes de a temperatura da crise na Ucrânia subir, discutia-se sobre quantas vacinas o Ocidente rico deveria doar aos países mais pobres, não apenas por generosidade, mas também para frear a pandemia e evitar que ela se espalhasse pelo mundo e voltasse para casa.
Havia uma disputa sobre alguns bilhões de euros de gastos totais. A Itália doou 45 milhões de doses, com um gasto máximo estimado em um bilhão de euros. Para a guerra na Ucrânia, o Congresso dos Estados Unidos destinou até agora 113 bilhões de dólares, e a União Europeia, 48 bilhões de dólares.
O outro fato chocante é que, durante a fase aguda da pandemia, os cientistas explicaram, e os políticos aparentemente entenderam, que a humanidade devia se preparar para futuros e próximos ataques de vírus, de doenças infecciosas cada vez mais insidiosas. E que, para não ficar despreparado diante das novas ameaças (e se usava a palavra “guerra”), eram necessários investimentos maciços em vacinas e nos sistemas públicos de saúde, que, na guerra contra o coronavírus, haviam se mostrado mais eficientes do que os privados.
Tudo isso foi subitamente esquecido. No ano passado, os governos ocidentais decidiram aumentar substancialmente os gastos militares. Não se fala mais de saúde pública. Não se fala mais de transição ecológica. Não se fala mais da crise do capitalismo, do peso cada vez mais insuportável das desigualdades.
Na guerra contra as pandemias, nós nos rendemos. Na guerra contra as mudanças climáticas, nós nos rendemos. Dizendo que a culpa é de Putin, para a segurança dos nossos filhos, compramos armas, com toda a naturalidade, e quem tenta se opor não entendeu nada da vida ou trabalha para o inimigo. Na prática, voltamos subitamente 100 anos atrás.
A guerra já domina o discurso público não apenas em termos políticos, mas também em termos de desenvolvimento futuro da economia. O Banco Mundial fez uma estimativa inicial de 350 bilhões para a reconstrução da Ucrânia, alertando que a conta final será próxima de 700 bilhões. Um grande negócio que Meloni, em sua visita a Kiev, já reservou de modo brutal: “Há um know-how que as empresas italianas, que a excelência italiana pode oferecer: vamos pôr tudo à disposição, porque a Itália pretende desempenhar um papel de protagonista na reconstrução, a partir de hoje, deste país”.
E, para que não houvesse margem para dúvidas, sublinhou que se prepara um futuro radiante para a Ucrânia, semelhante ao que coube à Itália após a Segunda Guerra Mundial: “O nosso último pós-guerra foi um período de grande crescimento e desenvolvimento. São aqueles anos que nós chamamos de ‘o milagre italiano’, são os anos que fizeram da Itália uma das maiores potências industriais e a nação que é hoje. Pois bem, eu estou certa de que nos próximos anos nós também poderemos falar de um milagre ucraniano”.
Sabe-se lá até que ponto os ucranianos estão felizes com essa chance milagrosa, a oportunidade de reconstruir do zero seu país destruído. Depois de 100 anos, ainda estamos em guerra como um “banho de aço”.
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A variável independente é a guerra, não a paz. Como há 100 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU