03 Março 2023
"O prognóstico é que o desmatamento continuará aumentando à medida que um plano de desenvolvimento maciço ganha força, a saber, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA)", escrevem Gabriel Cardoso Carrero, Robert Tovey Walker, Cynthia Suzanne Simmons e Philip Martin Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 28-02-2023.
Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007.
Gabriel Cardoso Carrero possui bacharel em ciências biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina, especialização em gestão e manejo ambiental em sistemas florestais pela Universidade Federal de Lavras, mestrado em ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e doutorado em geografia pela Universidade de Florida. Ele estuda a dinâmica do desmatamento, monitoramento florestal e desenvolvimento de cadeias produtivas. É pesquisador sênior associado do Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) e lidera o portfólio de América Latina de Revalue Nature Ltd.
Robert Tovey Walker tem doutorado em ciência regional pela Universidade de Pensilvânia e é professor no Centro de Estudos Latino-americanos e no Departamento de Geografia na Universidade de Florida. Ele estuda mudança de uso da terra na Amazônia usando métodos quantitativos, sensoriamento remoto e dados etnográficos coletados no campo. Estuda os processos de mudança da cobertura do solo, especialmente o desmatamento tropical.
Cynthia Suzanne Simmons tem mestrado em planejamento urbano e regional da Universidade Estadual de Florida e doutorado em geografia da mesma universidade. Atualmente é professora no Departamento e Geografia e no Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Flórida. Ela estuda as interações multiescalares entre economia, política e mudança ambiental, principalmente na Amazônia brasileira, onde ela conduz pesquisas sobre reforma agrária, desenvolvimento de infraestrutura em larga escala, resistência indígena e política de conservação.
Em setembro de 2022 publicamos na prestigiosa revista Land Use Policy um trabalho intitulado “Grilagem de terras na Amazônia brasileira: Roubando terras públicas com aprovação do governo” (disponível aqui) [1]. Esta série traz o conteúdo em português.
Estimamos a magnitude da grilagem – a apropriação ilegal de terras públicas – em uma fronteira ativa da Amazônia, o desmatamento associado e as taxas em que essas reivindicações foram legalizadas devido a mudanças na lei e redução de assentamentos. De todas as terras reivindicadas em nossa área de estudo de 300.689 km2 , 90,5% estão em desacordo com a legislação brasileira e 45,8% estão em áreas protegidas. Mudanças na lei até 2017 reclassificaram como lícitas 4,2% das terras ilícitas reivindicadas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Brasil em 2014 (901 km2 ano -1). Redimensionamento de assentamentos disponibilizou 5.266 km2 para apropriação ilegal.
O desmatamento em reivindicações de terra representou 35% do total, e esse percentual deve crescer. Mudanças futuras planejadas na lei de terras irão comprometer ainda mais o patrimônio natural e cultural da Amazônia legalizando pelo menos 10% da área declarada no CAR nesta fronteira. Importadores de carne bovina, soja e outras commodities devem barrar produtos de terras que foram tomadas como resultado de mudanças nas leis de terras do Brasil, reduzindo a terceirização do desmatamento.
A taxa de desmatamento da Amazônia caiu acentuadamente no Brasil de 2004 a 2012, parte do que foi devido a intervenções de políticas governamentais e ao esverdeamento das cadeias de fornecimento de commodities (especialmente no período 2008-2012) [2-4]. Infelizmente, o desmatamento começou a subir novamente devido à erosão da governança ambiental, agora exacerbada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro [5]. O presidente Bolsonaro defendeu atos legislativos que enfraqueceram muito a legislação ambiental, e seu governo reduziu a fiscalização e a punição de atividades ilegais, como extração de madeira e desmatamento, redução ainda mais exacerbada pela pandemia de covid-19 [6]. Muitas pesquisas abordam as forças macroeconômicas [7, 8] e os comportamentos microeconômicos [9, 10] responsáveis pela perda florestal da Bacia. Tais estudos ignoram o que ocorre antes da derrubada da floresta em qualquer propriedade.
As terras florestadas devem ser apropriadas antes de serem destinadas à agricultura. Isso tem implicações para nossa compreensão da mudança ambiental amazônica, uma vez que um dos principais processos sociais que contribuem para o desmatamento permanece obscuro, a saber, a formação de propriedades privadas ilícitas em terras públicas. O termo “grilagem de terras” tem significados diferentes em contextos diferentes (por exemplo). [11] Neste artigo, usamos o termo para refletir a apropriação ilícita e sem custos de terras públicas por interesses privados.
Aqui abordamos as reivindicações ilícitas de terras em uma das frentes de desenvolvimento mais ativas da Bacia Amazônica. Examinamos sete municípios contíguos totalizando 300.689 km2 (aproximadamente o tamanho da Itália) no estado brasileiro do Amazonas para estimar a magnitude de tais reivindicações, a taxa em que se tornam lícitas por mudanças na lei de terras, invasões nas Unidades de Conservação e Terras indígenas, e a quantidade de desmatamento que ocorre nelas. Mostramos também que os assentamentos da reforma agrária estão sendo reduzidos, presumivelmente para disponibilizar novas áreas para a apropriação. Esses sete municípios mantêm extensa cobertura florestal (96%), mas a conversão agrícola é rápida e em 2021 foi responsável por 14,7% do desmatamento ocorrido na porção brasileira da bacia. [12]
O prognóstico é que o desmatamento continuará aumentando à medida que um plano de desenvolvimento maciço ganha força, a saber, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA) [13]. Essa iniciativa começou em 2000 e desde 2011 está sob os auspícios do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) da União Sul-Americana (UNASUL). Com um projeto de lei no Congresso que propõe uma espécie de auto-licenciamento ambiental que desencadearia projetos de infraestrutura [14], muitas estradas regionais planejadas serão construídas tornando áreas florestais remotas cada vez mais acessíveis, como estradas estaduais que partem da Rodovia BR -319 no sul do Amazonas, conhecido como ponta de lança do desmatamento amazônico. [15, 16, 17]
[1] Carrero, G.C., R.T. Walker, C.S. Simmons & P.M. Fearnside. 2022. Land grabbing in the Brazilian Amazon: Stealing public land with government approval. Land Use Policy 120: art. 106133.
[2] Arima, E. Y., Barreto, P., Araújo, E., Soares-Filho, B., 2014. Public policies can reduce tropical deforestation: lessons and challenges from Brazil. Land Use Policy 41: 465-473.
[3] Nepstad, D., McGrath, D., Stickler, C., Alencar, A., Azevedo, A., Swette, B., Bezerra, T., DiGiano, M., Shimada, J., Motta, R.S. da, Armijo, E., Castello, L., Brando, P., Hansen, M.C., McGrath-Horn, M., Carvalho, O., Hess, L., 2014. Slowing Amazon deforestation through public policy and interventions in beef and soy supply chains. Science 344: 1118–1123.
[4] West, T.A.P., Fearnside, P.M., 2021. Brazil’s Conservation reform and the reduction of deforestation in Amazonia. Land Use Policy 100: art. 105072.
[5] Ferrante, L., Fearnside, P.M., 2019. Brazil’s new president and “ruralists” threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263.
[6] Vale, M.M., Berenguer, E., Menezes, M.A. de, Castro, E.B.V. de, Siqueira, L.P. de, Portela, R. de C.Q., 2021. The COVID-19 pandemic as an opportunity to weaken environmental protection in Brazil. Biological Conservation 255: art. 108994.
[7] Soares-Filho, B.S., Nepstad, D.C., Curran, L.M., Cerqueira, G.C., Garcia, R.A., Ramos, C.A., Voll, E., McDonald, A., Lefebvre, P., Schlesinger, P., 2006. Modelling conservation in the Amazon basin. Nature 440: 520–523.
[8] Rodrigues, A.S.L., Ewers, R.M., Parry, L., Souza, C., Veríssimo, A., Balmford, A., 2009. Boom-and-Bust Development Patterns Across the Amazon Deforestation Frontier. Science 324: 1435–1437.
[9] Walker, R.T., 2003. Mapping process to pattern in the landscape change of the Amazonian frontier. Annals of the Association of American Geographers 93(2): 376–398.
[10] VanWey, L.K., D’Antona, A.O., Brondízio, E.S., 2007. Household demographic change and land use/land cover change in the Brazilian Amazon. Population and Environment 28(3): 163–185.
[11] Agrawal, A., Brown, D. G., Sullivan, J. A., 2019. Are global land grabs ticking socio-environmental bombs or just inefficient investments? One Earth 1: 159-162.
[12] INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), 2021. Deforestation monitoring of the Brazilian Amazon rainforest by satellite (PRODES).
[13] Walker, R.T., Simmons, C., Arima, E., Galvan-Miyoshi, Y., Antunes, A., Waylen, M., Irigaray, M., 2019. Avoiding Amazonian Catastrophes: Prospects for Conservation in the 21st Century. One Earth 1: 202–215.
[14] Ruaro, R., G.H.Z. Alves, L. Tonella, L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2022. Loosening of environmental licensing threatens Brazilian biodiversity and sustainability. Die Erde 153(1): 60-64.
[15] Ferrante, L., Andrade, M.B.T., Leite, L., Silva Junior, C.A., Lima, M., Coelho Junior, M.G., Silva Neto, E.C., Campolina, D., Carolino, K., Diele-Viegas, L.M., Pereira, E.J.A.L., Fearnside, P.M., 2021a. Brazil’s highway BR-319: The road to the collapse of the Amazon and the violation of indigenous rights. Die Erde 152(1): 65-70.
[16] Ferrante, L., Andrade, M.B.T., Fearnside, P.M., 2021b. Land grabbing on Brazil’s Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestation. Land Use Policy 108: art. 105559.
[17] Esta série é uma tradução parcial de Carrero, G.C., R.T. Walker, C.S. Simmons & P.M. Fearnside. 2022. Land grabbing in the Brazilian Amazon: Stealing public land with government approval. Land Use Policy 120: art. 106133. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2022.106133. Agradecemos a A. Z. Leite pelas discussões jurídicas, F. Cerignoni, pela ajuda no download dos dados do ATLAS, D. R. A. Almeida pela orientação sobre o manuseio de dados, A. M. Yanai pelo conjunto de dados de assentamento de 2015 e V. L. Sontag pela edição das figuras. Os fundos foram fornecidos para o primeiro autor por meio de uma bolsa de pós-graduação do Departamento de Geografia da Universidade da Flórida (UF). A campanha de campo foi apoiada por uma Bolsa de Trabalho de Campo e pelo Projeto de Governança e Infraestrutura na Amazônia (GIA) do Programa de Conservação e Desenvolvimento Tropical (TCD-Universidade da Flórida) financiado pela Fundação Gordon e Betty Moore.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Grilagem de terras na Amazônia brasileira: Introdução à série - Instituto Humanitas Unisinos - IHU