02 Março 2023
Em poucos meses, Petro acelera reformas estruturais, como a tributária e a agrária. Histórico cessar-fogo com as guerrilhas e fim da guerra às drogas marcam sua estratégia de “paz total”. Ao lado de Lula, pode projetar uma América Latina soberana, escreve Álvaro Jiménez Millán em artigo publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por Outras Palavras, 01-03-2023. Tradução de Maurício Ayer.
O presidente Gustavo Petro fala à Convenção Nacional Camponesa, na Universidade: Reforma Agrária para enfrentar a mentalidade feudal, democratizar a propriedade e industrializar o país. Foto: Reprodução Outras Palavras.
Cinco meses após a chegada do ex-guerrilheiro, deputado e ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, à Casa de Nariño, sede do Poder Executivo, após uma histórica vitória eleitoral da esquerda colombiana, o país vive uma série de mudanças que seriam inimagináveis até pouco tempo atrás. Petro sabe que cada dia que passa é um dia a menos para o seu governo, e torna isso visível. O ritmo autoimposto desde o primeiro dia de seu governo, somado ao fato de colocar no centro de sua ação os interesses, a mobilização e a participação de indígenas, camponeses, cocaleiros, jovens, negros, ativistas sociais, defensores dos direitos humanos e ambientalistas, setores tradicionalmente excluídos do poder e da agenda dos governos do país, constroem uma nova gramática do poder na Colômbia do século XXI.
Mas, paralelamente, Petro e seu governo desenvolvem e incentivam o diálogo com aqueles que representam os velhos poderes, como pode ser observado no diálogo com seu principal adversário, o ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, e inclusive adotam algumas das antigas formas de exercício do governo e administração pública, o que lhes permitiu formar uma coalizão para garantir a maioria no Congresso. Petro incomoda seus críticos, mas também muitos dentro de seu próprio campo.
Desde 7 de agosto de 2022, o presidente colombiano avançou com sua agenda de “paz total” e com a reforma tributária, anunciou mudanças estruturais na legislação trabalhista, de saúde e educação e anunciou modificações no sistema previdenciário, que foram acompanhadas de um bem-sucedido acordo de salário mínimo com empresários e trabalhadores. Petro colocou a vida como eixo da política de segurança e defesa, instalou atores sociais em instâncias de poder e iniciou a aquisição de 3 milhões de hectares para promover a reforma agrária [1]; já havia legalizado, nos primeiros 100 dias de governo, títulos de propriedade de quase 700 mil hectares [2], avançando assim uma resposta a um dos maiores e mais anacrônicos problemas sem solução da história do país.
Por último, mas não menos importante, o novo governo está tentando deixar para trás o paradigma da guerra às drogas ao decidir não combater o cultivo de coca por pequenos agricultores e focar nos embarques de cocaína e na investigação de contas e investimentos de narcotraficantes. Nesse aspecto, promove-se um acordo com os Estados Unidos para estimular um debate regional sobre a migração e a questão das drogas.
Tudo isso em um contexto em que se observam na economia colombiana os efeitos de dinâmicas de ordem global, como a invasão russa da Ucrânia e as consequências ainda atuais da crise gerada pela pandemia de covid-19: a inflação de 13,12% no final de 2022 é a mais elevada das últimas duas décadas, o que reduz o valor real dos salários e poupanças dos cidadãos e soma-se à redução do investimento que vários analistas preveem para 2023, consequência da falta de experiência administrativa e liderança pública de alguns dos ministros nomeados para pastas importantes do governo. Este é o cenário de ameaças que enfrentará o chamado “governo da mudança” em 2023, que pretende transformar a Colômbia em uma “potência mundial da vida”.
Os objetivos de Petro são ambiciosos em um contexto cheio de dificuldades, mas podem ser transformados em oportunidades para mostrar que o primeiro governo de esquerda da Colômbia não é fogo de palha, mas o início de um profundo processo de democratização do poder nacional, que transforma o país em uma referência positiva para a região e o mundo.
Em 31 de dezembro, Petro conquistou a agenda pública ao anunciar um acordo de cessar-fogo bilateral com os cinco grupos armados não estatais que mais afetam a vida das comunidades em territórios que o Estado colombiano não conseguiu controlar em seus mais de dois séculos de existência.
O anúncio da cessação das hostilidades inclui o Exército de Libertação Nacional (ELN); o chamado Estado-Maior Central e o segundo Marquetalia, ambos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC); as Autodefesas Gaitanistas da Colômbia (ou Clã do Golfo) – poderosos herdeiros dos grupos paramilitares do norte do país, senhores da fronteira terrestre e marítima com o Panamá no estratégico Golfo de Urabá – e os Conquistadores Forças de Autodefesa da Serra Nevada. Um anúncio desse tipo não tem precedentes na história da Colômbia.
As diferentes organizações armadas reagiram aceitando o cessar-fogo, exceto o ELN, que manifestou sua vontade de discutir o assunto imediatamente em uma mesa de negociações que teria sua sede em algum lugar do território mexicano. Com isso, e apesar das críticas do governo pelo apuro no anúncio, o cessar-fogo se instalou como tarefa imediata na estratégia de “paz total” com a qual o Petro busca estender os Acordos de Paz de 2016 com as FARC, que enfrentou forte rejeição da direita e foram derrotados no plebiscito daquele ano, sendo reativados após algumas modificações.
Petro também conseguiu, nesses cinco meses de governo, modificar a política internacional: por um lado, decidiu reabrir a fronteira com a Venezuela e restabelecer com ela as relações diplomáticas e de cooperação rompidas por sete anos e, por outro, reorientou e estreitou as relações diplomáticas com os Estados Unidos, num exercício interessante de aproveitar o atual contexto geopolítico, que obriga Washington a adotar uma política cuidadosa para a América Latina, com o objetivo de não ceder espaço e vantagens à China, que sobretudo nas últimas duas décadas aumentou sua presença na região, e também na Colômbia.
O governo de Petro se caracteriza por uma sequência ininterrupta de decisões que alimenta as expectativas de sua base popular, enquanto as históricas elites colombianas, que detinham o poder desde os tempos coloniais, não conseguem construir uma estratégia de oposição ao primeiro presidente de esquerda da história nacional, ex-guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (m-19). Essas elites, na verdade, não estão apenas divididas, mas sim fraturadas. Suas pontes de comunicação estão quebradas em muitos casos, e reinam as desconfianças e desavenças, que se aprofundaram na última década. Elas expressam antigos confrontos entre as elites de Bogotá e as elites regionais; diferentes concepções de gestão do Estado entre elites urbanas e rurais; e também um confronto entre velhas potências econômicas e setores econômicos emergentes, cujas origens estão em circuitos derivados da lavagem de dinheiro do narcotráfico e outros mercados ilícitos (ouro, tráfico humano, combustível, madeira, carvão, coltan, etc.). Nesse cenário de fratura das elites, Petro obtém grandes percentuais de aceitação popular: o grupo de cidadãos que acham que as coisas no país estão melhorando aumentou de 64% para 66% entre outubro e dezembro de 20223.
Na Colômbia atual, os atores sociais e comunitários se converteram ao poder, transformando a face institucional do país e causando furor entre os velhos poderes e seus antigos representantes. A juventude – especialmente nos setores populares, mas também entre as classes médias – é abertamente a favor da mudança. Regiões historicamente afetadas pela violência armada participam ativamente de processos de diálogo em busca de novas perspectivas para suas vidas, e camponeses, incluindo cocaleiros, já são interlocutores válidos para os funcionários do governo no setor agrário, para discutir a transição de cultivos ilícitos para produções legais e incentivos à formação de pequenas unidades produtivas camponesas para garantir a soberania alimentar [4]. Numerosos grupos aspiram a se beneficiar de um acordo impensável meses atrás: aquele que está sendo negociado entre o governo e a entidade que reúne pecuaristas em todo o território nacional, a poderosa Federação Nacional dos Pecuaristas (opositora ao governo e acusada de ter apoiado grupos paramilitares por mais de quatro décadas), para a referida compra e distribuição de terras pelo Estado.
As mudanças estão em processo, iniciam sua marcha após os anúncios presidenciais e o trabalho que vem realizando a coalizão legislativa que no Congresso favorece as iniciativas apresentadas pelo Poder Executivo.
Cabe destacar que, por não ter maioria parlamentar, o governo Petro teve de formar uma coligação com várias forças de centro-direita, como os partidos Conservador, Liberal e U, bem como de centro-esquerda e esquerda. Essa coalizão é liderada pelos presidentes do Senado, Roy Barreras, e da Câmara dos Deputados, David Racero. Enquanto Racero é um jovem do campo de Petro, Barreras é um operador político experiente, que fez parte da equipe de negociação com as FARC em Cuba e vem do campo político do ex-presidente Juan Manuel Santos, que expressou seu apoio a Petro na busca por “paz total” [5]. Apenas o Centro Democrático, liderado pelo ex-presidente Uribe, e a Liga dos Governantes Anticorrupção, liderada pelo ex-candidato à presidência Rodolfo Hernández, permanecem na oposição, com pouca representação parlamentar [6]. A oposição a Petro é hoje muito fraca e alimentada pelo medo de setores da classe média urbana, que os faz oscilar entre a desconfiança no futuro e a ambição de que as mudanças tragam estabilidade à economia.
Essa ampla coalizão parlamentar permitiu ao novo governo realizar a reforma tributária promovida pelo ministro da Economia, José Antonio Ocampo. Esta reforma, com a qual o governo espera arrecadar mais US$ 4,14 bilhões em 2023, faz parte do discurso oficial em torno da melhoria da equidade social. “Aprovar uma reforma tributária não é fácil, nunca foi; como deputado, participei de umas 15 que sempre giraram em torno dos mesmos eixos, que consistiam em estender o IVA [imposto sobre valor agregado] à cesta básica, fazendo com que as reformas tributárias nunca melhorassem as circunstâncias de desigualdade social na Colômbia”, disse Petro na Casa de Nariño ao promulgar a lei [7]. Embora a reforma tenha sido negociada, suas linhas básicas foram mantidas, vinculadas ao discurso social e ambiental do novo presidente, que tem como um de seus eixos a transição energética para superar os combustíveis fósseis.
Entre outros pontos, foi estabelecida uma sobretaxa para a extração de carvão e petróleo que dependerá dos preços internacionais [8]. A reforma, como o próprio Petro admitiu, deve ser implementada em meio às turbulências econômicas globais que se projetam para o próximo ano. Em contraste com esta reforma, a de seu antecessor, Iván Duque, considerada regressiva, havia provocado uma onda de protestos em todo o país.
Nessa onda de profundas mudanças nos primeiros cinco meses do governo Petro, vale destacar também a mudança de paradigma e missão nas Forças Armadas, focadas por mais de seis décadas na tarefa de destruir o inimigo interno: as insurgências armadas. Hoje, Petro propõe a essas Forças Armadas o desenvolvimento de ações de proteção à comunidade como sua principal tarefa, usando como indicador o número de vidas protegidas e salvas, e não o número de baixas ou neutralizações, eufemismo usado para indicar números de inimigos mortos. Da mesma forma, Petro pediu que o Ministério da Defesa aproveite as capacidades militares e policiais, meios logísticos e tecnologias em uma nova abordagem que permita defender a Amazônia da depredação ilegal e desenvolver a infraestrutura rodoviária e de transporte fluvial necessária em áreas onde o conflito armado este presente por mais de meio século, como os departamentos de Chocó, Nariño e Putumayo. A estes objetivos da autoridade presidencial soma-se ainda a exigência de maior disciplina, do combate à corrupção e de disposições que visem à melhoria da qualidade de vida e dignidade dos militares, policiais e suas famílias.
Quanto à nova concepção institucional implementada para os cultivos de coca e o tráfico de cocaína, Petro pediu à comunidade internacional que assuma uma nova visão em relação a este mercado e a fracassada “guerra às drogas”. Da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente colombiano lançou um apelo enfático e perguntou desafiadoramente: “O que é mais venenoso para a humanidade, a cocaína, o carvão ou o petróleo?” Ele destacou que “a decisão do poder tem ordenado que a cocaína é o veneno e deve ser perseguida, mesmo que cause apenas um número mínimo de mortes por overdose, e sobretudo por conta das misturas em consequência de sua clandestinidade, mas, em vez disso, carvão e petróleo devem ser protegidos, para que seu uso possa extinguir toda a humanidade”. E responsabilizou os países consumidores: “Nós servimos como desculpa para o vazio e a solidão de suas sociedades que as levam a viver em meio às bolhas das drogas. Servimos para ocultar os próprios problemas que se negam a encarar.” Ele insistiu na necessidade de mudar o paradigma da luta contra as drogas, “que nos últimos 40 anos deixou milhões de mortos na América Latina, sem grandes êxitos visíveis” [9].
A aposta do Petro é construir uma visão regional, uma liderança enquanto região perante o mundo e, claro, uma nova forma de relacionamento com as diversas potências, principalmente os EUA e a Europa. A volta ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil configura o cenário desejado pelo presidente colombiano. A defesa da Amazônia pode unir energias, já que Lula da Silva fez dela um dos eixos que diferencia sua gestão da de Jair Bolsonaro e seu negacionismo climático. A nova ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, pode ser uma aliada das políticas ambientais de Petro; será preciso ver como isso se articula com os interesses da estatal brasileira Petrobras e os objetivos da transição ecológica. Com o apoio de novas gerações de jovens, que fazem sua a causa ambiental, Petro busca transformar sua liderança pessoal em uma liderança da Colômbia na região.
Como será tratada essa disputa de liderança com um Lula e um Brasil que querem ressurgir na região e no debate global? Tudo indica que dependerá muito da estabilidade interna alcançada pelo presidente brasileiro, em meio à polarização política e à radicalização de um setor do bolsonarismo.
No caso de Petro e do Pacto Histórico, sua força política será posta à prova nas eleições regionais de outubro de 2023. Até agora, o presidente colombiano tem mostrado habilidade e audácia política. Com um governo diverso do ponto de vista ideológico, Petro se depara diariamente com a cobrança por resultados de uma opinião pública que até agora tem apoiado majoritariamente sua gestão. Nesses cinco meses, conseguiu dominar a discussão nacional, mostrar resultados e se projetar fora da Colômbia. Os Estados Unidos e a Europa apoiam plenamente sua política de paz e se mostram abertos a novas visões na discussão de temas como drogas, migração e crise na Venezuela.
No entanto, os indicadores de redução da violência interna é que mostrarão as possibilidades de continuidade de seu projeto de governo, em um país onde a reeleição foi proibida. Petro tem mais três anos e meio no governo para garantir que isso não acabe na gestão do atual presidente, mas que a paz se consolide, a democracia se aprofunde e, como diz Francia Márquez, a carismática vice-presidente e chefe do recém-criado Ministério da Igualdade, a “dignidade se torne um costume”.
1. “Hubo acuerdo: ganaderos venderán 3 millones de hectáreas al gobierno Petro” em El Colombiano, 6/12/2022.
2. María Camila Ramírez Cañón y Julián Ríos Monroy: «La tierra en los 100 días de Petro: una reforma agraria en marcha con preguntas por resolver» em El Espectador, 23/11/2022.
3. “Encuesta Invamer: aprobación de Petro se mantiene estable” em El Espectador, 14/12/2022.
4. Natalia Romero Peñuela: “Petro acepta que campesinos continúen con coca hasta que la sustitución sea eficaz” em El Espectador, 16/12/2022.
5. Jan Martínez Ahrens e Juan Esteban Lewin: “Juan Manuel Santos: ‘El Gobierno de Petro está bien orientado pero le falta rigor y método, y también afinar las narrativas’” em El País, 18/9/2022.
6. Juan Miguel Hernández Bonilla: “Petro sella una sólida coalición en el Congreso con el apoyo de los partidos tradicionales” em El País, 8/9/2022.
7. “Petro sanciona ley de la reforma tributaria que hace énfasis en la equidad” em Swissinfo.ch, 14/12/2022.
8. “El presidente Petro sanciona hoy la reforma tributaria” em El Tiempo, 13/12/2022.
9. Discurso disponível no YouTube.
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Na Colômbia: uma nova gramática do poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU