19 Janeiro 2023
O povo Xerente da aldeia Kâkaka, localizada na divisa do município de Tocantínia com Pedro Afonso, em Tocantins, está há onze dias sem água potável e sem poder pescar devido à contaminação da água do rio Gorgulho por agrotóxico da produção do agronegócio no estado.
A reportagem é de Wérica Lima, publicada por Amazônia Real, 17-01-2023.
A aldeia fica localizada na Terra Indígena Xerente. Segundo os Xerente, a aldeia fica a apenas um quilômetro de plantações de monocultura de cana e soja, fora da terra indígena, como se atesta em fotos e vídeo enviados para a Amazônia Real.
O cacique Ranulfo Cursino Xerente, conhecido como Neca, divulgou um vídeo semana passada denunciando a contaminação às autoridades publicado pelo Instituto Indígena de Tocantins (Indtins) nas redes sociais. A organização indigena pede providências do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Na imprensa de Tocantins, a denúncia foi publicada primeiramente pelo site Gazeta do Cerrado.
“Eu queria que vocês [órgãos] fizessem o favor de vir o mais rápido possível tomar providência, eu estou pedindo ajuda, porque se não tomar providência aqui, o pessoal de perto de nós, a Funai, eu vou ter que comunicar Brasília, porque a gente tá precisando e a gente não está tendo esses apoios, da fiscalização nessa divisa da reserva com esse veneno brabo aí que está causando a morte dos peixes e até do ser humano”, diz o Cacique Neca no vídeo encaminhado ao Indtins.
Procurado pela Amazônia Real, o cacique Neca, morador na aldeia há 37 anos, contou que a vida de quatro famílias que vivem na aldeia e dos ribeirinhos estão em risco. Ele disse que a aldeia não possui saneamento básico, energia elétrica, nem poço artesiano, dependendo inteiramente da água do rio para seu sustento e sobrevivência.
Tudo depende dessa água, mora todo mundo perto. Fora aqui, tem os demais, né? Os vizinhos também, que não são indígenas. Mas a preocupação da gente é com todos”, relata. “Meus filhos, meus netos dependem de onde eu pegava o peixinho para se alimentar e hoje nós não temos mais esse peixe”, disse à agência.
Em ofício da Coordenação Regional Araguaia Tocantins, da Funai, o coordenador regional substituto do órgão, Marcus Vinicius Aniszewski e Silva, diz “que vem ocorrendo mortandade de peixe, que a água do córrego Gorgulho está imprópria para consumo humano, para os animais domésticos e silvestres”.
O cacique Neca relatou à Amazônia Real que uma área de plantação de soja e cana está a um quilômetro da Terra Indígena, e muito próxima dos cursos d´água, especialmente o rio Gorgulho. Ele não soube dizer de qual propriedade a contaminação veio.
“É próxima demais, não tem reservatório para segurar a água para o veneno dissolver na terra. Nós temos mais outras aldeias que ficam próximas dessa ‘cana’ que estão jogando veneno e a gente vem sentindo esses problemas”, explica ao dizer que a plantação abrange uns 29 quilômetros de uma área desmatada.
No ofício da Funai encaminhado ao Ibama, ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão do governo de Tocantins, e ao Ministério Público Federal (MPF-TO), a área afetada foi descrita como “abaixo do Proceder III”. Conforme apuração da Amazônia Real na internet, o “Proceder” é um “Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados, negociado entre o Brasil e Japão para produção de grãos”. A reportagem não encontrou contatos dos responsáveis pelo programa.
Apesar da Terra Indígena Xerente ser homologada, os indígenas de outra aldeia do território, a São José, denunciam as contaminações há 10 anos. Em 2014, eles já haviam alertado sobre as irregularidades das plantações de grãos nas extremidades da demarcação. A liderança indígena da aldeia, Eliete Xerente, disse à Amazônia Real que o agrotóxico se dispersa na divisa entre as plantações do agronegócio e alcança a terra indígena.
“Esses fazendeiros que vêm plantando soja jogam veneno, que ‘bate’ nas aldeias. Morrem muitas criações, morre galinha e até nós mesmo que somos hipertensos. Passamos mal, porque ela [fumaça de agrotóxico] vem no ar, vem despejado com avião, então o vento carrega e acontecem as consequências que eles vem fazendo ao redor das aldeias”, explica Eliete Xerente, que é artesã e assistente administrativa do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Palmas (TO).
Os sintomas de intoxicação por agrotóxicos já faziam-se presentes no cotidiano dos moradores da aldeia Kâkaka. O próprio cacique Neca chegou a ficar acamado dias antes da mortandade de peixes no rio Gorgulho. Dores de cabeça, náusea, cólicas abdominais e tontura estão entre os sintomas relatados pelos indígenas.
“Eu passei muito mal esses dias cansado, fiquei em coma sem saber o que fazer, faltando ar e até hoje eu sinto uma dor em cima dos meus peitos e a barriga no lado querendo empanturrar”, relata.
Trabalhando na roça próximo ao rio Gargalho, Neca bebia a água sem saber da contaminação e afirma que “acordou” para o que estava acontecendo somente após a morte dos peixes na última semana.
“Eu tenho um barracão muito próximo da água que é onde os indígenas vêm para pegar capim dourado e eles ‘arrancham’ [acomodam-se] na beira desse córrego, tomam água. Ficou complicado porque o indígena vive do capim dourado [planta usada no artesanato] aqui, é nossa alimentação para fazer o dinheirinho para comprar alguma coisa, um leitinho para os filhos”, acrescenta.
Ainda em 2022, o Cacique Neca chegou a perder os peixes que criava em tanques usando a água corrente do rio. Na época, ele não sabia a origem da mortandade e não sabia se era intoxicação ou outra doença. Com as percas, todos os três tanques que eram de criação de peixes estão vazios atualmente.
“Ano passado, eu levei um prejuízo. A água que cai nos tanques onde eu crio os peixes para a gente sobreviver vem do rio Gorgulho. Os peixes morreram, só que a gente não tinha conhecimento do que tinha acontecido. Agora que a gente acordou para o que houve, ficamos muito preocupados e agora aconteceu de novo no mesmo riacho, que fica mais ou menos uns 30 metros da minha casa, na beira do ribeirão onde todos meus filhos moram”, conta.
Enquanto a tomada de medidas emergenciais não chegam até a aldeia Kâkaka, Neca se vê obrigado a continuar tomando a água que ele acredita estar contaminada. “Eu estou pegando a água mais ou menos com a distância de um quilômetro para nós podermos beber, de um olho d’água, nós estamos pegando e ficamos nessa situação assim, sem saber o que fazer”, afirma.
Além da plantação, Neca cria outros animais que também estão em risco. “Eu crio um gadinho que bebe nesse gorgulho também e tive que isolar porque senão você perde. É muito prejuízo, a gente enquanto indígena é fraco de condição, de recurso, o conhecimento também é muito pouco”, explica o cacique.
Rafael Dakurke Xerente, filho do cacique Neca, alerta que é emergente que os agentes envolvidos na contaminação sejam responsabilizados, pois o “capitalismo enfraquece os direitos humanos”.
Ele é morador da Aldeia Brejo Comprido e secretário da Cooperativa Indígena Akwē Xerente (Coopiax), que trabalha com etno-agricultura e pecuária sustentáveis.
“A política tem que funcionar, tem que sancionar alguma lei que seja mais rígida com os agricultores. isso vai facilitar a qualidade de vida de todos que vivem na terra. Enquanto isso não acontecer, infelizmente nós, indígenas, mais cedo ou mais tarde não vai ter mais força para manter essa natureza que todos dependem dela para viver”, desabafa.
“O pessoal da Funai veio e vão ver com a Prefeitura se podem cavar um poço artesiano para nós usarmos essa água. Estão fazendo um estudo aqui para ver que que podem fazer, né? Enquanto isso, a gente está nessa preocupação”, diz Neca.
Procurada pela Amazônia Real, a Naturatins afirmou que “as amostras devem levar de 20 a 30 dias para ficarem prontas”. A respeito da frequência que ocorrem casos de intoxicação na região, o órgão disse que “não há uma periodicidade específica, pois depende de vários fatores, especialmente o volume de chuvas, vazão do curso hídrico etc”. A Amazônia Real solicitou um balanço das denúncias que acontecem relacionadas à intoxicação, mas o órgão não enviou.
“O primeiro passo foi a coleta de amostras da água e vistoria nas áreas próximas do local. Após a elaboração do parecer técnico com o resultado das diligências e resultados das análises, são adotadas as medidas cabíveis, conforme o caso”, afirma o órgão.
Ao ser procurado, o coordenador regional substituto da Funai, Marcus Vinicius Aniszewski e Silva, informou que aguarda um laudo da Naturatins sobre uma “possível” contaminação para poder tomar as medidas. “Foi oficializado a Naturatins, Ibama e Ministério Público Federal, estamos no aguardo da Naturatins de uma posição sobre a possível contaminação”, disse.
“Foi oficializado a Naturatins, Ibama e Ministério Público Federal, estamos no aguardo da Naturatins de uma posição sobre a possível contaminação”, disse.
A respeito de ações emergenciais imediatas relacionadas à comida e água potável para as pessoas afetadas, o coordenador não respondeu às perguntas.
A Amazônia Real procurou o Ministério Público Federal de Tocantins e a Funai de Brasília para obter informações a respeito das medidas tomadas pelos órgãos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
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