14 Dezembro 2022
"Uma boa hermenêutica permite olhar para além da narrativa. Para entender que os povos, como os indivíduos, não nascem todos com a mesma condição inicial. A tarefa do ser humano é tentar levar igualdade e paz, ternura e justiça a todos e a cada um", escreve Gabriella Caramore, escritora, apresentadora e doutora honoris Causa em Teologia, pela Faculdade Valdense de Teologia, em Roma. O artigo foi publicado pela revista italiana Jesus, edição de janeiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre os tantos nascimentos narrados pela Bíblia, pouquíssimos têm um percurso linear. Mães estéreis, estrangeiras, virgens, pais adúlteros ou assassinos. Nem mesmo aquele do menino Jesus é exceção, tendo nascido, segundo os relatos de Mateus e Lucas, de uma linhagem não totalmente exemplar: filho de mãe virgem e pai não biológico, nasceu no frio num abrigo improvisado, acolhido por pobres e pastores que se maravilham diante do recém-nascido como diante de um Deus visível na terra.
Esse é o nascimento que os fiéis daquela criança que se tornou homem e profeta inaudito celebram na festa do solstício de inverno, sabendo que nos panos que o cobriam já se esconde o sudário que acolherá o seu corpo lanhado pelo poder e pela infâmia.
Mas nestes dias o meu pensamento volta-se também para outro nascimento bíblico, aquele do primeiro filho de Abraão, Ismael, também porque à figura da mãe, Agar, a concubina que deu à luz a um filho de Abraão num período em que Sara ainda era estéril, Giulia Lo Porto dedicou um belo livro: Agar. Ho visto il vivente che mi vede (Agar. Eu vi o vivente que me vê, em tradução livre, ed. San Paolo).
Ismael, narrado em apenas dois capítulos, pode parecer como um aparte na história da salvação. De rosto moreno como a sua mãe egípcia, o Anjo logo marca o seu destino: “será como um jumento bravo: sua mão se levantará contra todos e a mão de todos contra ele, e levantará sua tenda defronte de todos os seus irmãos” (Gn 16:12).
Jogado no deserto com a mãe por uma pérfida Sara e um inepto Abraão, a criança está prestes a morrer pela sede e pela areia. Só o desespero de Agar move a piedade do Senhor Deus que o salva com um jorro de água e uma promessa: dele também nascerá uma grande nação. O que, no entanto, permanecerá inquietantemente obscuro até os nossos dias. Esse não é, evidentemente, um relato edificante.
Mas uma boa hermenêutica permite olhar para além da narrativa. Para entender que os povos, como os indivíduos, não nascem todos com a mesma condição inicial. A tarefa do ser humano é tentar levar igualdade e paz, ternura e justiça a todos e a cada um.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Natal do filho “bravo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU