14 Dezembro 2022
“No atual modelo de consumo, em que os recursos naturais são explorados e os produtos são fabricados a milhares de quilômetros do local onde são consumidos, não só a energia está em perigo, mas também o acesso a outros direitos básicos, como a água e o saneamento, a alimentação, a saúde e a educação. A economia deve ser relocalizada, pensando na sustentabilidade social e ambiental de cada lugar”, defendem Arrate Zelaia Eizaguirre, Eva Perez-Pons Andrade, Nagore Cebrian Garcia e Irene Guerrero Diago, do Grupo de Energia do Mugarik Gabeko Ingenieritza Euskadi, em artigo publicado por El Salto, 13-12-2022. A tradução é do Cepat.
Ao longo da história houve três transições energéticas: em meados do século XVIII houve a passagem do uso da lenha para o carvão; depois, do carvão para o petróleo e seus derivados; e atualmente estamos na transição do petróleo e do gás para a energia renovável. A grande diferença entre as transições anteriores e a atual é que até agora vínhamos aumentando a disponibilidade de energia agregando recursos, mas atualmente estamos enfrentando sua redução. Utilizamos recursos energéticos finitos que estão chegando ao seu ápice, e não há alternativas que possam substituir os combustíveis fósseis com o atual modelo de consumo. Essa redução nos leva a uma luta pelos recursos que são fundamentais para as nossas vidas.
A energia, juntamente com a água e a terra, são recursos naturais fundamentais para a vida. São o motor da própria biosfera, alimentam as condições e processos que nos permitem viver (ciclo da água, clima, oxigenação da atmosfera, etc.), e ao mesmo tempo, são recursos necessários para a nossa própria subsistência (alimentação, abrigo, saúde, etc.). Isso os coloca como um elo fundamental na defesa da vida. Portanto, devemos considerar a energia como um bem de primeira necessidade, e nunca como uma mercadoria.
A inter-relação da energia com todos os aspectos da vida é complexa, e para entender a magnitude da mudança que estamos enfrentando, basta visualizar a dimensão gigantesca que a energia ocupa em nossas sociedades. A energia não se resume à eletricidade que consumimos nas casas, mesmo se somarmos a energia consumida nos serviços não chega nem perto de cobrir a magnitude da transição que devemos fazer. O maior consumo de energia ocorre na indústria, embora tenhamos o maior problema no setor de transporte, que é totalmente dependente dos combustíveis fósseis. A descarbonização, tão popular na transição energética, não decorre tanto das mudanças climáticas, mas do fato de ter ultrapassado o pico da extração do petróleo convencional (peak-oil), o que significa que as reservas de petróleo estão se esgotando.
Consumo absoluto de energia por setor (Fonte: BP Energy Outlook 2019 e 2020)
Portanto, no atual modelo de consumo, em que os recursos naturais são explorados e os produtos são fabricados a milhares de quilômetros do local onde são consumidos, não só a energia está em perigo, mas também o acesso a outros direitos básicos, como a água e o saneamento, a alimentação, a saúde e a educação. A economia deve ser relocalizada, pensando na sustentabilidade social e ambiental de cada lugar e não, como faz o modelo atual, apoiando-se em países, áreas ou regiões empobrecidas, ou em pessoas em situação de exclusão social — que constituem as periferias, ou o chamado “Sul Global”. A construção das infraestruturas materiais, sociais e econômicas necessárias para assegurá-los deve ser feita de forma participativa, dando voz a todas as condições de vida para que o acesso seja garantido a todas as pessoas. Além disso, para garantir uma mobilidade com maior autonomia dentro dos territórios, o transporte comunitário deve ser fortalecido criando uma rede que evite o isolamento das periferias. Portanto, a transição energética vai além da produção de eletricidade por meio de energias renováveis.
Outra conclusão direta da distribuição do consumo por setores está relacionada ao volume de consumo residencial; representa menos de um terço da energia total consumida, portanto, focar a transição nos edifícios não resolve o problema. Isso não significa que não se deva prestar atenção nele. Melhorar a eficiência do isolamento nas residências não resolveria a crise energética, mas melhoraria a qualidade de vida das pessoas ao reduzir suas contas de energia e obter temperaturas mais saudáveis nos seus interiores; algo essencial para aquelas pessoas que passam mais tempo em casa, aquelas “vulnerabilizadas” e suas cuidadoras. Esse tipo de inter-relação apresenta a energia como um elemento-chave para alcançar “vidas habitáveis” – com as necessidades básicas no centro – e é uma reflexão imprescindível se queremos uma transição socialmente justa e sensível para a interseção de raça, classe e gênero.
Para completar esta visualização, devemos analisar o contexto global a fim de constatar que o consumo mundial per capita é desigual. Os países do “Norte Global” têm um metabolismo social (consumo de energia e materiais) bem maior do que o “Sul Global”. As regiões que apresentam maior consumo per capita de energia são as do “Norte Global”, padrão que se repete há décadas. Mas esta imagem não representa o consumo real. O estilo de vida que usufruímos no “Norte Global” implica um grande consumo de energia que por vezes não é quantificado no próprio país; muitos dos processos industriais (e até a exploração dos recursos que utilizam) para obter o que consumimos (alimentos, roupas, etc.) são realizados no “Sul Global” aumentando seu consumo energético real, como mostra um estudo recente da UPH/EHU (Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea). Devemos dar-nos conta de que sendo um país do “Norte Global” os bens e serviços que usufruímos implicam um grande consumo de energia que é fornecido graças a uma estrutural desigualdade, permitindo-nos um desenvolvimento econômico superior.
Consumo de energia per capita (Fonte: Our World in Data e BP Statistical Review of World Energy 2021)
A contabilização irreal do consumo deve-se a um processo de transformação pelo qual o “Norte Global” externalizou a produção para o “Sul Global” (e a poluição associada). Além disso, são espoliados de seus recursos naturais (minas, cultivos intensivos...) para a fabricação desses produtos. A consequência é que o “Sul Global” se tornou um provedor de serviços que deixou altos níveis de contaminação e escassez para a população local. Essa externalização ocorreu não apenas em decorrência de leis pouco restritivas e punitivas no que diz respeito à gestão ambiental, mas também pela situação dos direitos trabalhistas. Estes, no “Sul Global”, são menos regulamentados ou são regulados através de Zonas Francas; áreas onde se projetam condições legais e fiscais vantajosas para as empresas. A essas práticas, promovidas pelos acordos comerciais, devemos acrescentar as patentes como ferramenta de subordinação; elas criam categorias de conhecimento definindo alguns como válidos e protegendo-os de serem usados através do pagamento de royalties. Devemos estar conscientes das implicações sociais e ambientais dessas práticas, pois elas erodem os meios de subsistência em outras partes do mundo, aprofundando o conflito capital-vida.
Diante do atual modelo energético, é fundamental uma transformação justa, em que as pessoas sejam responsáveis pela energia que consumem, tanto numa perspectiva local como numa perspectiva global. Essa transformação deve ser acompanhada por uma mudança cultural que promova a suficiência e coloque em primeiro lugar a redução do hiperconsumo em nossos territórios.
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Uma perspectiva global para fazer uma transição energética local - Instituto Humanitas Unisinos - IHU