Este é o tempo da fé ressuscitada. Artigo de Tomáš Halík

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05 Abril 2024

“A Igreja pode se isolar cada vez mais ou ir rumo a uma nova época, vespertina e madura.”

Tomáš Halík, teólogo ordenado padre clandestinamente em Praga durante o regime comunista e um dos conselheiros de Václav Havel, lança um livro no qual traça uma reforma da Igreja que a vê como interlocutora da cultura e da sociedade do nosso tempo, “Pomeriggio del cristianesimo” [Tarde do Cristianismo] (Ed. Vita e Pensiero), do qual o jornal Avvenire, 30-11-2022, antecipou um trecho. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

“Este tempo não é apenas uma época de mudança, mas uma mudança de época”, afirma o Papa Francisco. Mudam também as formas da religião e seu papel nas sociedades e culturas individuais. A secularização não causou o fim da religião, mas sua mudança. Enquanto algumas formas de religião estão passando por fortes choques, outras são tão vitais a ponto de terem transbordado de seus limites anteriores.

As instituições religiosas tradicionais perderam o monopólio sobre a religiosidade. A globalização, tendo chegado ao seu ápice, esbarra com algumas resistências: ganham força as manifestações de populismo, nacionalismo e fundamentalismo. O nosso mundo está cada vez mais interconectado e, ao mesmo tempo, dividido. A comunidade mundial de cristãos não está unida. Hoje, porém, as maiores diferenças não estão entre Igreja e Igreja, mas dentro de cada uma.

Diferenças nas doutrinas, nas posições religiosas e políticas muitas vezes têm raízes ocultas em estratificações profundas da vida psicológica e espiritual dos indivíduos. Às vezes, as pessoas que professam o mesmo credo no mesmo banco da igreja têm ideias muito diferentes sobre Deus. Entre as mudanças no atual cenário espiritual, está também a queda do muro entre “crentes” e “não crentes”: minorias barulhentas de crentes dogmáticos e de ateus militantes se deslocam para as margens, enquanto cresce o número daqueles em cujos pensamentos e em cujos corações a fé (no sentido de “convicção original”) e a incredulidade (no sentido de ceticismo duvidoso) se misturam.

Terminei de escrever este livro durante a pandemia do coronavírus: todos os dias ao meu redor muitíssimos doentes morriam em hospitais superlotados, e muitas pessoas ainda vivas e saudáveis enfrentavam problemas de subsistência. Essa experiência também abalou o nosso mundo: a perdurante crise das tradicionais certezas religiosas somou-se à crise das tradicionais certezas da secularização, em primeiro lugar da fé no domínio absoluto do ser humano sobre a natureza e sobre seu próprio destino.

O estado atual da Igreja Católica recorda em muitos aspectos a situação imediatamente anterior à Reforma. Quando vieram à tona os muitos e inconcebíveis casos de abusos sexuais e psicológicos, isso abalou a credibilidade da Igreja e abriu uma série de questões que dizem respeito a todo o sistema eclesiástico. Fechadas e vazias, as igrejas durante a pandemia me pareceram como um aviso profético: em breve, esse será o estado da Igreja, se ela não enfrentar a mudança.

Uma certa inspiração pode ser oferecida pela “reforma católica” levada a cabo por místicos corajosos como João da Cruz, Teresa d’Ávila, Inácio de Loyola e muitos outros que, com sua original experiência espiritual, enriqueceram tanto a reflexão teológica sobre a fé quanto a forma visível e a práxis da Igreja.

As mais recentes tentativas de reforma não podem se limitar a mudar algumas estruturas institucionais e alguns parágrafos do Catecismo, do Código de Direito Canônico e dos textos de moral. A fecundidade e a futura vitalidade da Igreja dependem da renovação da relação com a dimensão espiritual e existencial profunda da fé.

Considero a crise atual como uma encruzilhada, na qual se abre a possibilidade de se chegar a uma época nova, “vespertina” da história do cristianismo. Um cristianismo abalado pode – precisamente graças à sua experiência da dor – desenvolver, como um médico ferido, o potencial terapêutico da fé. Se as Igrejas resistirem à tentação do egocentrismo, do narcisismo coletivo, do clericalismo, do isolacionismo e do provincianismo, poderão contribuir para um ecumenismo mais amplo e profundo.

No novo ecumenismo, o que está em jogo é mais do que a mera unidade dos cristãos: a renovação da fé pode ser um passo rumo àquela “fraternidade universal” que é o grande tema do pontificado do Papa Francisco. Pode ajudar a família humana a tomar uma direção não de choque de civilizações, mas de criação da civitas oecumenica – uma cultura de comunicação, partilha e respeito pela diversidade.

Ao longo da história, Deus se mostra na fé, no amor e na esperança das pessoas, até mesmo daquelas pessoas que se encontram à margem das Igrejas e fora de suas fronteiras visíveis. A busca de Deus em todas as coisas e em todas as situações da história liberta a nossa vida da autorreferencialidade monológica e a transforma em abertura dialógica.

Vejo nisso um sinal dos tempos e uma luz de esperança também em uma época difícil. Este livro quer estar a serviço de tal esperança.

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