A luta de classes será geossocial. Artigo de Bruno Latour

Palafitas de Nha Trang, Vietnã. Foto: Unsplash

17 Outubro 2022


Referência mundial do pensamento ecológico, Bruno Latour aprofunda no texto a seguir o conceito de classe geossocial delineado em seu último ensaio, Onde estou? (Bazar do Tempo, 2021). O filósofo e antropólogo da modernidade desenha os contornos de uma nova classe ecológica que ele deseja ardentemente, e cuja preocupação não seria mais a de garantir apenas a produção econômica, mas as condições de reprodução da vida.

 

O artigo é de Bruno Latour, publicado por Socialter, 29-09-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

É uma anedota simples, mas que acho interessante. Eu me encontrava em um estúdio de TV para falar sobre um livro que escrevi recentemente sobre a “zona crítica”, essa diminuta camada do planeta Terra que a história da vida com V maiúsculo modificou ao longo de quatro bilhões de anos e dentro da qual nos encontramos confinados, e por assim dizer envoltos. Enquanto expressava sua admiração pelo meu livro, a jornalista havia me dado dez minutos e o resto do set estava levemente entediado parecendo dizer com sua atitude: “Esta zona crítica, mesmo assim não é de grande interesse”. E então, de maneira inesperada, a jornalista emendou a conversa com as três sondas que vários Estados estavam enviando naquela semana para o planeta Marte.

 

No entanto, isso é o mais surpreendente, esse contraste entre a chata Terra e o emocionante planeta Marte, ela não o havia elaborado para o maior benefício dos telespectadores. Ela não tinha criado nenhum truque para ridicularizar meu amigo e a mim. O óbvio se impôs: Marte interessa mais aos humanos do que a Terra. Se Marte aparece para alguns como o plano B depois que a Terra do nosso nascimento, o plano A, foi sacrificado, é porque nos acostumamos a comparar planetas entre si. No entanto, se é verdade que Marte é um planeta, esse não é mais o caso da Terra. Como disse naquela noite meu amigo geoquímico sem conseguir intrigar os jornalistas da televisão: “Marte não tem zona crítica!”

 

Com efeito, ali a vida não transformou as condições iniciais a ponto de criar um ambiente duradouramente favorável à continuação de sua experiência multifacetada. Para ser franco, Marte é apenas um planeta entre outros, enquanto a Terra tem, ou é, uma zona crítica. Marte é careca, a Terra é cabeluda. O que torna a anedota com a qual comecei engraçada é que a Terra parou de se comportar como um simples planeta há bilhões de anos. E é provavelmente por isso que Marte fascina tanto: parece o planeta ideal, sem vida, e revela de forma impressionante como aqueles que sonham em migrar para lá imaginam a Terra finalmente livre da lentidão, do peso e das complicações que a contínua interrupção dos seres vivos impõe a qualquer deslocamento. Assim como a Lua só recebe luz do Sol, é da Terra que se projeta sobre Marte esse desejo de um mundo inabitável onde tudo seria mais fácil porque os seres vivos não mais interfeririam com nenhum movimento.

 

 

Se a anedota do desejo mortífero de Marte me impressiona tanto, é porque sou obrigado a levar em conta a situação de extrema violência a que nos leva a falta de preparação do século XX. O grande historiador Adam Tooze, em um filme recente sobre a economia de guerra nazista, evocou o aterrorizante discurso de Goebbels em 18 de fevereiro de 1943, oferecendo ao povo alemão a escolha entre a capitulação e a “guerra total” ao perguntar: “Vocês querem uma guerra mais total e radical do que a que podemos imaginar hoje?” Enquanto todos sentiam que era uma loucura, que a guerra estava perdida, que estavam sob as bombas, vemos, ao contrário, a multidão entusiasmada aplaudir loucamente esse projeto da Totaler Krieg. No documentário, vemos inclusive Albert Speer, o operador dessa fuga para a frente, aplaudir freneticamente esse novo impulso para adiar por alguns meses a inevitável queda. Qualquer coisa menos capitular. Como os falidos na mesa de jogo que esperam “se recuperar”.

 

Temos tanta certeza hoje de que os povos amedrontados pela perda de seu ideal de modernidade não se levantariam com o mesmo entusiasmo que em 1943 pela “ produção total ” diante da pergunta: “ Vocês querem uma destruição planetária mais total e mais radical do que a que podemos imaginar até hoje?” A sugestão me faz estremecer. Especialmente porque, se acreditarmos nos historiadores da grande aceleração, não é exatamente a escolha dos vencedores de 1945 que se jogaram de cabeça na Totaler Produktion?

 

Aqueles que acreditaram ter vencido o mal absoluto, não se comprometeram a reproduzir em outro nível, em uma escala completamente diferente e às custas do planeta, o mesmo movimento de mobilização total, retomado de década em década com a mesma negação do abismo que se abria pouco a pouco debaixo dos seus pés? Como podemos imaginar que diante de uma crise tão mal preparada, o século XXI, sempre animado, inspirado, transportado pelo mesmo sentido da história, reagiria de forma diferente e, finalmente, escolheria, se não a capitulação, pelo menos algo como uma proposta pela paz, um armistício? Se a história faz sentido e caminha para a “retomada da produção”, então o pior parece inevitável. Aplausos unânimes, torcida fanática, certezas do desastre, aqui vamos nós para um empurrão final em direção à produção total, viva la muerte!

 

No entanto, o pior nem sempre é certo; felizmente, não é inteiramente certo que a história tenha um único sentido. Para pensar em outro seguimento da aventura moderna que não a “recuperação e a extensão da produção”, é preciso conseguir desprender o amálgama moderno que uniu a abundância, a liberdade e a unidirecionalidade da história universal. É possível reabrir este pacote tão bem amarrado e distribuir os elementos de forma diferente? Podemos preservar a aspiração à liberdade, o gosto pela abundância, sem por isso ligá-los à produção – produção cujo telos (finalidade) exige que se torne total e que preparemos o inevitável plano B de um exílio ou de uma expulsão para Marte? Em um livro de grande importância, apropriadamente intitulado Abundância e liberdade (Boitempo, 2021), Pierre Charbonnier fez muito para reabrir esse pacote de presentes que os Modernos pretendiam oferecer ao resto do mundo.

 

O que pode significar, de fato, apreciar a autonomia, se essa autonomia for obtida negando a presença de todos os seres, humanos e não humanos, que a tornam possível? No entanto, deve-se reconhecer que o “suporte em falso”, como diz Charbonnier, é uma lacuna, e em todos os níveis, individual e coletivo, entre o mundo em que vivemos e o mundo do qual vivemos. Há muito tempo que se denuncia a hipocrisia daqueles que falam de liberdade porque outros trabalham para eles. Os vários movimentos socialistas, feministas, terceiro-mundistas e decoloniais não cessaram de revelar a extensão desse suporte em falso. Nesse sentido, todo o movimento ecologista nada mais fez do que aumentar ainda mais a já muito longa lista de seres vivos de que dependem, sem o reconhecer, aqueles que afirmam estar em busca de autonomia.

 

 

O termo “suporte em falso” é importante porque não sublinha apenas a situação física de estar suspenso sobre o vazio, o abismo, mas também a situação cognitiva de pensar mal. Aqueles que falam de liberdade negando a existência do mundo em que vivem tendem a pensar erroneamente e, em particular, a não entender o sentido da sua história. Não é exagero dizer até que ponto a aventura moderna foi levada tão longe pelos amantes da liberdade e da emancipação que se enganaram seriamente sobre as condições materiais e sociais necessárias para essa emancipação. O que não significa necessariamente dizer que a aventura acabou, mas que devemos deslocar a emancipação para outro lugar, tentando dar-lhe outro significado.

 

Ora, começamos a ter uma ideia mais precisa desse “outro lugar”. Esse outro espaço e esse outro tempo é exatamente o que indiquei quando introduzi a noção de zona crítica ou de Gaia. A emancipação não é semantizada da mesma forma sobre o planeta Terra escapando para o espaço e sobre a zona crítica. A questão dos limites e da superação dos limites não se coloca da mesma forma. Como diz Charbonnier com tanta veemência, não basta se perguntar se podemos ser livres, mas é preciso explicar onde estamos para exigir ser livres. O que os Modernos acabaram esquecendo era que a liberdade depende de uma cosmologia. As diferentes noções da liberdade, negativas e positivas, compartilhavam uma determinada cosmologia, certamente, mas sem precisar dizê-lo, pois estava evidente: era a cosmologia da res extensa, inventada no século XVII para servir de palco para a movimento irrestrito dos corpos pesados. Eles tomavam a Terra por outro Marte. Como o espaço-tempo, hoje, na Terra, não é mais o mesmo, os valores mudam de direção e de intensidade.

 

Voltar a colocar a questão da busca da autonomia é, curiosamente, restaurar imediatamente algo como um sentido da história, em todo caso, um projeto político claramente orientado. Só que essa orientação, se me perdoem esse jogo de palavras, não tem mais nada a ver com uma ocidentalização. Orientar-se pela autonomia é dar-se a imensa tarefa de acabar com o suporte em falso. Faça-se por um segundo a pergunta do que você depende para sobreviver, tente na sua imaginação sobrepor o mundo do qual vivemos e o mundo em que vivemos, e perceberá que é preciso agir em todos os lugares e em todas as escalas para reduzir um pouco o abismo do suporte em falso. Imediatamente mil questões espinhosas se apresentam: a da escravidão passada, mas também as da colonização atual, a enorme desigualdade do comércio internacional, a ocupação do espaço, os hectares fantasmas que os Estados desenvolvidos estão adquirindo constantemente para “se libertar” dentro de suas fronteiras, das migrações, do direito internacional, até das questões de aparência local, como a fabricação do pão, o destino das sementes camponesas ou a permacultura.

 

 

É justamente a imensa variedade de tarefas que contrasta tão claramente com a unidirecionalidade da versão anterior. Existe uma orientação, mas é preciso ir a todos os lugares, em todas as direções, para recuperar a autonomia e fazer coincidir, o máximo possível, os dois mundos. Não vamos a um determinado lugar liderados por uma vanguarda; vamos nos espalhar em todas as direções para identificar o que nos impede de sermos livres. É de fato uma orientação, mas que consiste em sair da prisão da produção por todas as saídas possíveis. Há um sentido da história, vamos de uma situação a outra, mas atenção!, essa história não tem direção. Não é a flecha do tempo que a define, mas a atração universal do terrestre que a obriga a mudar aquilo que chamava de “ter um objetivo”, “avançar”, “ser resolutamente moderno”. Trata-se de fato de ser progressista, pois há progressão, mutação, metamorfose, mas sem ser capturado pela velha figura do progresso. Meço a dificuldade desse deslocamento dos afetos políticos pela dificuldade que tenho para encontrar a metáfora certa. O movimento dos estudantes de uma escola quando o sinal sonoro chama para o recreio talvez não esteja tão longe daquilo que estou tentando captar... Todos vocês conheceram esse movimento, os estudantes correm por toda parte e em todas as direções, soltando gritos de alegre libertação.

 

Enfatizei isso desde o início com a minha história no set de TV: Marte excita, a Terra entedia. Você não encontrará uma alternativa à produção total, ao sonho de Marte, até encontrar algo que tenha o mesmo apelo estético, moral, esportivo, a mesma emoção, a mesma atmosfera, a mesma sonoridade oferecida pela busca da liberdade e da emancipação. No entanto, encontramos algo dos esforços a serem feitos para nos emancipar, tão logo tentamos nos colocar a questão da retomada, sob uma nova forma, do conflito e da substituição daquilo que chamarei de “conflito de classes geossocial”. A expressão é um pouco pesada, mas a tomo por enquanto para combinar o significado muito particular que Norbert Elias dá à palavra classe com a mutação cosmológica que acabei de mencionar – e pela qual ele certamente não estava interessado.

 

 

Para mim, ela tem dois traços essenciais: os conflitos são detectados por variações, a princípio imperceptíveis depois cada vez mais visíveis, nas maneiras, no gosto e no desgosto por certas práticas, certos valores e atitudes; e, sobretudo, a classificação não depende primordialmente das relações de produção, mas da invenção ou da captação de um certo sentido da história. Não há nenhuma dúvida de que as variações atuais nas maneiras oferecem um repertório imensamente rico de maneiras de se argumentar sobre o uso do mundo. E também não há nenhuma dúvida de que é de fato a produção que está sendo questionada hoje e não apenas o seu aumento e a distribuição dos seus tesouros. Duas boas razões para abordar a questão dos conflitos de cultura geossocial na perspectiva de Elias.

 

Se você acompanhou meu argumento sobre a cegueira do século XX sobre si mesmo, percebeu que o que Bruno Karsenti, comentando Elias, chama de “classe pivô”, aquela que ele chamava de “racional” porque ela enxergava mais longe do que as outras e que ele assimilou à burguesia em sua análise da sociedade de corte, essa classe não apenas traiu a si mesma, mas traiu todos aqueles que ela pretendia conduzir em seu rastro no “processo civilizador”. Desde que a figura do Antropoceno apareceu sob a figura do desenvolvimento e da modernização, essa classe só pode ser considerada traidora de seu próprio projeto. Além disso, é essa traição, esse abandono, esse “escapismo” que explica o vasto processo de descivilização que estamos testemunhando por toda parte dentro e fora dos Estados-nação, na desordem internacional, bem como no chamado, em um nível mais modesto, abandono de todas as formas de civilidade – cívica ou acadêmica.

 

Essa velha classe “iluminada” continua incrédula a fazer os outros acreditarem que todos vão entrar no trem do progresso e do desenvolvimento – enquanto se preparam para escapar o mais rápido possível da magnitude da crise geral. É, por exemplo, o inevitável Elon Musk, fundador da SpaceX, se preparando para levar todos a Marte e, para maior segurança, também se preparando para se refugiar sozinho em um bunker de sobrevivência na Nova Zelândia. Mobilizar por um lado e rejeitar por outro; é essa atitude que explica a brutalização geral da vida pública. Eles nos pedem para que nos desenvolvamos um pouco mais, quando sentimos que, pelo contrário, devemos aterrar. O suficiente para enlouquecer as pessoas e, para usar um clichê, não contar-lhes toda a verdade.

 

Se tomarmos o processo de descivilização para classificar os grupos em luta, começaremos a inquirir se não existiria uma nova classe geossocial que pudesse servir de classe-pivô, agregando por sua vez, depois da burguesia e contra ela, uma forma superior de racionalidade. Este termo deve ser tomado no sentido vago e contingente que Elias lhe deu: não há nada de cognitivo ali, nada de racionalista à moda antiga, ele não apela ao Iluminismo, nada de teleológico em seu argumento, é uma série completamente contingente de eventos. Não, uma classe só pode reivindicar um pouco mais de racionalidade do que outra quando seu horizonte é um pouco mais amplo, um pouco mais consistente que o das outras, justamente porque se preocupa com o sentido da história de longo prazo e com o quadro cosmológico em que ocorrerá.

 

 

Aqueles que estão preocupados com a mudança cosmológica para definir o quadro em que as lutas ocorrerão agora têm o direito de acusar os outros de inconsequência e irracionalidade. E de repente, segundo Elias, é também o seu modo de vida que começam a destacar e a oferecer como modelos. Eles não estão mais a reboque das outras classes. Eles anseiam por dar um sentido. Coloca-se então a questão de saber se, em meio ao processo de descivilização, não se poderia discernir os contornos de um processo de recivilização, mas sobre outra base que distribuiria de outra maneira o que também se poderia chamar de classes geossociais de acordo com seu diferencial de “racionalidade”. A questão pode parecer bizarra, mas permite, na minha opinião, pensar de outra maneira a continuidade da aventura moderna.

 

No entanto, há de fato nos chamados movimentos ecológicos algo como o embrião de um novo agregado em luta contra aqueles que traíram e que tenderam a oferecer aos outros grupos um sentido da história. Querer sobrepor, em todas as escalas, o mundo do qual vivemos e o mundo em que vivemos, é, no final das contas, alongar o horizonte da ação coletiva, propor um projeto se não de desenvolvimento pelo menos de envolvimento. O espírito das lutas está aí, o objetivo é a autonomia e a libertação, mas o sentido da ação foi invertido. Só que não se trata de uma ascensão contínua em direção à liberdade à moda antiga, mas de uma descida, de uma aterrissagem, em uma nova forma de emancipação que obriga a lutar, pé a pé, contra qualquer coisa que ameace a habitabilidade da Terra. Não é a favor, mas contra a produção que as frentes de luta se organizam agora. O interesse em partir de Elias é que esse tipo de nova luta de classes cujos contornos percebemos nos conflitos de mundo, nos conflitos de planetas, não se baseia justamente nas relações de produção. Isso pode parecer uma fraqueza, e é assim que a tradição marxista considerou seu empreendimento.

 

Mas é também uma força, se é precisamente da produção em si como horizonte insuperável que se trata de sair! É porque a antiga luta de classes se concentrou apenas na produção – perguntando-se como ampliá-la e como melhor distribuir os frutos dessa riqueza –, que ela perdeu justamente o grande evento do Antropoceno. Sob, antes, atrás, abaixo, além disso, em torno da produção, surge a questão fundamental da reprodução dos seres que participam dessa produção – e, de fato, como podemos ver claramente em Marx, sempre fez a mesma pergunta. O que os movimentos ecológicos revelam é o quanto essa questão da reprodução não foi pensada, dentro da qual todo o sistema de produção está inserido, incrustado, embedded, como diríamos em inglês. Como mostram claramente Karl Polanyi, Charbonnier e muitos outros, o mundo da economia – liberal ou não, pouco importa – permaneceu dependente de um mundo material que não levava em consideração. Era um materialismo sem matéria. Em todo caso, sem matéria mantida de forma duradoura na existência. Adequado para um planeta comum como Marte, talvez, mas não à Terra tão especial.

 

 

E é aí que encontro meu pesadelo da “produção total”. De fato, a escolha agora é decidir se devemos estender a produção a tudo que a cerca e a permite, ou se é do próprio princípio de produção que devemos nos afastar. Podemos ver claramente nas discussões sobre os “serviços ecossistêmicos” que a “natureza” deveria dar; podemos imaginar a tentação de estender os princípios do cálculo econômico a montante da produção propriamente dita, enquanto os camponeses, os ativistas e os chamados povos indígenas procuram, ao contrário, diminuir o papel da produção a jusante daquilo que permite a reprodução dos seres vivos. Se a classe emergente da ecologia tem tanta dificuldade para se orientar, é porque há um conflito não apenas entre as classes, mas também um conflito sobre o tipo de classe e, portanto, de classificação, de localizações, de alianças, que se trataria de usar. Em um caso, buscamos nos colocar em continuidade com as classes definidas pelas relações de produção; em outro, a ecologia se define porque está em descontinuidade com as classes tradicionais sobre a questão-chave da produção.

 

Num caso, retoma a grande aventura iniciada com os socialismos para expandir a produção e distribuir seus bens da melhor maneira possível; situa-se, portanto, na aventura moderna; está situado entre a esquerda e a direita; mas tem algum outro resultado além da produção total? No outro caso, ela inventa sua própria posição; identifica seus próprios caminhos; define-se pelos limites impostos à produção; redistribui o vetor esquerda/direita, assim como o vetor progresso/atraso, e inventa a forma de racionalidade que pode servir de modelo para organizar o deslocamento das classes umas em relação às outras. Ela tem uma chance de escapar da tragédia da Totaler Produktion, mas deve encontrar uma maneira de como se dirigir àqueles que foram traídos, oferecendo-lhes outro destino, outra definição de abundância e identidade. Só a esse preço que ela poderá agregar em torno de si e ambicionar esse papel de pivô que desencadeará um processo de recivilização. À beira do abismo. Na urgência da mudança climática. Sem o longo processo de formação que Elias relata em seus livros sobre “a dinâmica do Ocidente”. Ah! Se você buscava paixões e interesses, uma história cheia de fúria, você a encontra ali, com certeza, em uma dinâmica de reorientação. Ainda temos que aprender a discernir seus campos e movimentos.

 

 

É neste ponto que pode começar o outro movimento de retomada da aventura moderna, não mais procurando um futuro para si, mas debruçando-se sobre o seu passado ou, mais precisamente, fazendo sua antropologia. Embora o projeto de uma antropologia dos Modernos tenha parecido bizarro quando o apresentei em 1979, a mutação ecológica à qual levou torna-o completamente evidente: “O que aconteceu? O que eles tinham em mente?” Desta vez, não é pelas operações classificatórias e identificando mudanças de tal forma que poderemos nos orientar, mas buscando entender por que os Modernos foram tão cegos em relação à sua própria história. A hipótese que venho perseguindo há quase quarenta anos diz respeito sobre a dificuldade do pluralismo. Por que os Modernos, como Eric Voegelin mostrou tão magnificamente bem, foram incapazes de alimentar e valorizar o pluralismo.

 

Não o pluralismo no sentido social ou “ multicultural” que as sociedades contemporâneas se gabam um pouco apressadamente de tolerar, mas o pluralismo dos modos de existência. Quando falamos de pluralismo, Isabelle Stengers mostrou desde os tempos de suas Cosmopolitiques, parece que temos uma mente ampla porque definimos de maneira muito estreita o mundo social e o tipo de seres que somos prontos a admitir. O inventário é feito rapidamente: objetos e temas. Como podemos esperar, com tal sistema de coordenadas, acomodar a diversidade dos modos de existência, a natureza das entidades que habitam a Terra, que povoam o céu, que agitam as mentes, que fundamentam as leis, que estabelecem os povos, que geram as ficções, que formam os valores? Os Modernos acreditavam estar em um mundo de ontologia extremamente simplificada. A mudança ecológica, este é basicamente o meu argumento, é a oportunidade perfeita para vir e complicar sua ontologia, pluralizar seus modos de verdade e, consequentemente, reabrir a história. A aventura não terminou, mas deve recomeçar sobre novas bases: uma outra cosmologia e uma outra antropologia.

 

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