11 Outubro 2022
"O único preço que o cristianismo exige de nós para ser vivido e compreendido em profundidade é aquele do amor; aquele amor do qual cânone, regra, forma é o amor de Cristo. Crer e esperar a ressurreição é uma questão de amor, porque só o amor provocou a ressurreição de Jesus. Forte como a morte é só amor, mais forte que a morte foi o amor vivido por Jesus Cristo: é isso que nós cristãos deveríamos anunciar, com humildade e discrição, a todos", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, outubro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“É falso ao limite do absurdo ver numa ‘crença’ o sinal distintivo do cristão: somente a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, somente isso é cristão. [...] Ainda hoje uma vida assim é possível, para alguns homens é até necessária: o cristianismo autêntico, originário, será possível em todos os tempos. [...] Não uma fé, mas um fazer, sobretudo um não-fazer-muitas-coisas, um ser de outro modo (O anticristo, Adelphi).
Essas palavras de Friedrich Nietzsche constituem um bom ponto de partida para nos perguntarmos o que é essencial à fé cristã e sobre a singularidade do cristianismo.
Em nossos dias, somos constantemente alcançados pela mensagem de que o cristianismo é um monoteísmo, ao lado do judaísmo e do islamismo. Se isso é uma verdade, é importante que nós cristãos entendamos a diferença irredutível da nossa fé em relação àquela dos crentes judeus e dos crentes islâmicos. Se, porém, o cristianismo é um monoteísmo, o é em maneira muito particular: é um monoteísmo no qual Deus se fez homem e no qual um homem concreto e real, Jesus de Nazaré, nos revelou o rosto de Deus. No final do Prólogo do quarto Evangelho encontramos uma verdadeira e própria síntese da fé cristã: " Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito o revelou (exéghésato)" (Jo 1,18).
Pois bem, a humanidade sempre buscou tateando Deus, mas não podia conhecê-lo, permanecia na ignorância; precisamente por isso Deus levantou o véu sobre si, escolheu revelar-se aos homens desde Abraão em diante, colocando-se em aliança com Israel e empenhando-se com ele por meio de promessas. E assim "Deus falou por meio dos profetas", de Abraão a João Batista; finalmente o fez por meio de Jesus, que se revelou a última e definitiva palavra de Deus aos homens.
A fé em Deus não é, portanto, condição de acesso ao Evangelho, mas é conhecendo a existência humana de Jesus que podemos ser conduzidos ao próprio Deus e ter acesso ao Deus vivo e verdadeiro. Trata-se de uma inversão muito importante, que nestes dois milênios de cristianismo ainda não assumimos realmente: dentro da catequese se continua a iniciar o discurso de Deus para chegar a Jesus somente em um momento posterior.
Deus: palavra decisiva e, no entanto, uma palavra que se prestou e se presta a usos religiosos, sociais, políticos e morais disparatados. Deus é uma palavra que pode conter muitas projeções humanas, fruto de uma reflexão intelectual, resultado de uma busca de sentido feita pelo ser humano. Assim como a fé de Israel em Deus foi gerada por eventos da história, assim também a fé dos cristãos nasce da vida humana de Jesus: Deus, de fato, atuou na história de um povo e, finalmente, completamente, na vida de um homem (cf. Hb 1, 1-2).
Portanto, se existe um Deus, para nós cristãos é o Deus que deve ser conhecido, lido e "visto" na existência humana de Jesus de Nazaré. Por isso o cristianismo exige que Jesus seja conhecido por meio de sua vida narrada e testemunhada nos Evangelhos. Somente através desse conhecimento poderemos também crer nele a ponto de amá-lo, a ponto de confessá-lo como "Senhor", "filho de Deus", "Salvador", e assim chegar à fé em Deus, ao conhecimento do Deus vivo e verdadeiro. É por isso que acredito ser um grave risco "deificar" Jesus antes de conhecer a concreta existência humana.
Em Jesus a humanidade é sempre transparente: o divino está velado, mas na profundidade de sua humanidade Deus se revelou.
No homem Jesus a condição de Deus sofreu uma kénosis, um esvaziamento: aquele que estava na forma de Deus foi despojado de sua igualdade com Deus, e isso aconteceu de tal maneira que na vida de Jesus nada se via senão sua humanidade, humanidade na condição de servo "até a morte, aliás, à morte de cruz" (Fl 2, 8)! Jesus foi homem, homem como nós, despotencializado do divino e sujeito à nossa limitada condição mortal.
É preciso, por fim, refletir sobre o que sempre foi percebido como o proprium por excelência do cristianismo: a ressurreição dos mortos, uma possibilidade inédita aberta a todos os humanos pela ressurreição de Jesus, "o primogênito de muitos irmãos" (Rm 8, 29). Também nesse caso é oportuno nos questionarmos com franqueza: por que Jesus ressuscitou dos mortos? Seria muito superficial dizer que ressuscitou porque era filho de Deus. Partindo da realidade da morte, gostaria de esboçar uma meditação que permita compreender em que sentido a ressurreição de Jesus é o evento determinante da fé cristã.
É aqui que entra em jogo a reflexão que todo homem e mulher desde sempre fazem e em todas as culturas: viver é amar. Nossa vida só encontra sentido na experiência de amar e ser amado, e todos nós buscamos um amor com os traços da eternidade. Ora, a graça de um livro como o Cântico dos Cânticos, colocado no coração da Bíblia, consiste precisamente no fato que nele se fala de amor do princípio ao fim, do amor humano entre um rapaz e uma moça que se torna símbolo de cada amor.
Na conclusão do Cântico lemos uma afirmação extraordinária: “Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes labaredas” (Ct 8,6-7).
Aqui se alcança uma consciência presente em numerosas culturas, que sempre perceberam uma ligação entre amor e morte (pense-se apenas no famoso binômio grego éros-thànatos). A Escritura, por sua vez, mostra-nos que o amor e a morte são os dois inimigos por excelência: não a vida e a morte, mas o amor e a morte! E a morte, que tudo devora, que vence até a vida, encontra no amor um inimigo capaz de resistir a ela, até derrotá-la.
Com esse horizonte, podemos voltar à pergunta: por que Jesus ressuscitou da morte? Uma leitura inteligente dos Evangelhos e depois de todo o Novo Testamento leva-nos a concluir que ele ressuscitou porque a sua vida foi ágape, foi amor vivido pelos homens e por Deus até o extremo. Em outras palavras, se Jesus foi o amor, como poderia ser contido na tumba?
É nesta perspectiva que podemos compreender o caminho histórico dos discípulos para chegar à fé em Jesus ressuscitado e Senhor. Algumas mulheres e alguns homens discípulos de Jesus foram ao sepulcro e o encontraram vazio: ainda perturbados por essa novidade sem precedentes, tiveram um encontro na fé com o Ressuscitado, perto do túmulo, na estrada entre Jerusalém e Emaús, nas margens do Mar da Galileia... E é significativo que Jesus não tenha aparecido a eles ofuscante de luz, mas tenha se apresentado com feições muito humanas: um jardineiro, um viajante, um pescador.
Os discípulos depois refizeram o caminho ao contrário, o que os levou a lembrar, contar e, finalmente, colocar por escrito nos Evangelhos a vida de Jesus nas estradas da Galileia e da Judeia. Compreenderam que Jesus havia narrado o amor de Deus com suas palavras, com seu modo de ser entre os outros, de encontrar os doentes e os marginalizados...
O único preço que o cristianismo exige de nós para ser vivido e compreendido em profundidade é aquele do amor; aquele amor do qual cânone, regra, forma é o amor de Cristo. Crer e esperar a ressurreição é uma questão de amor, porque só o amor provocou a ressurreição de Jesus. Forte como a morte é só amor, mais forte que a morte foi o amor vivido por Jesus Cristo: é isso que nós cristãos deveríamos anunciar, com humildade e discrição, a todos.
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A singularidade do cristianismo. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU