08 Outubro 2022
A determinação da Ucrânia em recuperar manu militari os territórios ocupados pelo Exército russo abre um terrível cenário de violência bélica semelhante ao da Primeira Guerra Mundial, com a diferença de que, na época, ainda não existiam armas nucleares.
A artigo é de Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 13-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 5 de outubro, com a assinatura de Putin da ratificação dos tratados de anexação das regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporizhzhia e Kherson, ocorreu um fato novo que muda profundamente a natureza do conflito.
Graças a um artifício jurídico, a Rússia transformou os territórios ocupados pelas suas tropas no território da Federação Russa. Em outras palavras, modificou unilateralmente suas fronteiras, inclusive na Rússia dos territórios ainda formalmente sujeitos à soberania da Ucrânia.
É evidente que nos encontramos diante de uma flagrante violação do direito internacional, em relação à qual não pode subsistir nenhuma dúvida sobre a ilegalidade da anexação desses territórios à Federação Russa.
A comunidade internacional não pode reconhecer uma modificação das fronteiras realizada com a violência bélica, mas isso não significa que as velhas fronteiras devam ser restauradas pela força.
A comunidade internacional sempre se recusou a reconhecer a anexação de fato realizada por Israel da Cisjordânia após a Guerra dos Seis Dias (1967). Várias vezes o Conselho de Segurança da ONU qualificou Israel como potência ocupante, desconhecendo também a anexação de Jerusalém Oriental, mas ninguém jamais pensou em pressionar a Jordânia ou a Síria para retomarem os territórios roubados por Israel com a guerra, para restituir as fronteiras violadas.
Também é verdade que a Ucrânia sempre pode invocar o direito natural de autoproteção previsto no artigo 51 da Carta da ONU, mas a medida de Putin faz com que, pelo menos no front interno, o governo russo possa invocar o mesmo princípio e transformar a “operação militar especial” em uma espécie de guerra santa pela defesa da pátria.
Daí o risco iminente de que, diante do perigo de desmembramento, a Rússia possa recorrer às armas nucleares, como prevê sua doutrina militar.
Com essa virada, é como se a Rússia tivesse cavado uma trincheira “política” ao longo das linhas dos territórios ocupados, avisando o inimigo que não se moverá daquelas linhas, custe o que custar.
Aproxima-se uma nova fase da guerra, semelhante à guerra de desgaste que foi travada em vários teatros europeus ao longo da Primeira Guerra Mundial. Somente na Batalha de Verdun (fevereiro-dezembro de 1916), houve mais de 700.000 mortes nos dois lados. Em todo o conflito, a França teve mais de 1.300.000 mortes (700.000 na Itália).
Diante de tal catástrofe, fazia sentido perguntar quem tinha começado ou quem tinha vencido? A guerra se resolveu em um mal absoluto. A reanexação à França das terras fronteiriças da Alsácia e da Lorena certamente não podia justificar ou mitigar as terríveis devastações provocadas pela guerra e a perda de milhões de vidas humanas.
Nessa nova situação, a determinação da Ucrânia em recuperar manu militari os territórios ocupados pelo Exército russo abre um terrível cenário de violência bélica semelhante ao da Primeira Guerra Mundial, com a diferença de que, na época, ainda não existiam armas nucleares.
Apenas para não levantar equívocos sobre suas intenções, o presidente Zelensky, depois de ter pedido para também ser formalmente admitido na Otan, emitiu um decreto que proíbe a abertura de qualquer negociação com a Rússia. A possibilidade de a Rússia, quando encurralada, recorrer ao uso de armas nucleares táticas implicaria a automática extensão da guerra a todos os 30 países da Otan, pois, como nos havia advertido por último o general Petraeus, os Estados Unidos, junto com os aliados da Otan, “eliminariam” as forças russas na Ucrânia e destruiriam a frota russa no Mar Negro.
Nenhum Parlamento poderia piscar, e a Itália, assim como os outros países da Otan, se encontraria envolvida em uma tempestade de fogo com a Rússia, tendo como pano de fundo um holocausto nuclear. Vimos que os Estados Unidos têm todo o interesse na continuação de uma guerra que sangra a Rússia e prejudica apenas a Europa, mas é possível que todos os Estados europeus continuem apoiando com financiamentos e suprimentos militares essa aspiração da Ucrânia de ir ao confronto final com a Rússia?
Diante dessas terríveis perspectivas, a única esperança é que o último apelo sincero do Papa Francisco ao cessar-fogo seja ouvido: “O que ainda deve acontecer? Quanto sangue ainda deve correr para que entendamos que a guerra nunca é uma solução, mas apenas destruição? Em nome de Deus e em nome do senso de humanidade que habita em cada coração, renovo o meu apelo para que se chegue logo ao cessar-fogo”.
Felizmente, a entrevista de [Giuseppe] Conte [ex-primeiro-ministro italiano] ao jornal Avvenire demonstra que se abriu uma séria brecha no muro da indiferença da política.
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Paz: só a solução do papa faz sentido. Artigo de Domenico Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU