"Apesar destes obstáculos internos, é possível o Brasil superar este momento amargo da sua história e retomar o caminho de construção da sua soberania demarcando seu lugar dentro deste novo mundo multipolar e agressivo que está se configurando à nossa frente", escreve José Luís Fiori.
José Luís Fiori é professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
“Durante um século a dinâmica da sociedade moderna foi governada por um “duplo movimento”: o mercado se expandia continuamente, mas esse movimento era enfrentado por um contramovimento que cerceava essa expansão em direções definidas. Embora tal contramovimento fosse vital para a proteção da sociedade, ele era, em última análise incompatível com a auto-regulação do mercado e, portanto, com o próprio sistema de mercado”.
– Polanyi, K. “A Grande Transformação” Editora Campus, Rio de Janeiro. 1980, p: 137.
Em 1944, o cientista social austro-húngaro, Karl Polanyi (1886-1964), formulou uma hipótese extremamente instigante sobre a evolução das sociedades liberais e das economias de mercado que se formaram na Europa nos séculos XVIII e XIX. Para Polanyi, estas sociedades são movidas por duas grandes forças que atuam de forma simultânea e contraditória apontando a um só tempo, na direção da abertura, desregulação e internacionalização dos seus mercados e dos seus capitais, e na direção da proteção, regulação estatal e nacionalização destes mesmos mercados.
Karl Polanyi nunca disse que se tratava de um movimento pendular ou cíclico, nem tampouco de uma lei de sucessão universal e obrigatória da história do capitalismo. Mesmo assim, este “duplo movimento” parece manifestar-se quase sempre na forma de uma sucessão temporal, onde os “surtos internacionalizantes” do capitalismo promovem o aumento simultâneo da desigualdade entre os povos e as nações e acabam provocando uma “reversão protecionista” das economias, sociedades, da natureza e dos estados nacionais que reforçam nestes períodos sua luta pela soberania e independência com relação aos demais estados do sistema, e em particular, com relação ao poder imperial ou hegemônico das Grandes Potências.
Pelo menos foi isto que aconteceu na Europa no fim do século XIX e início do século XX: um grande movimento de internacionalização liberal do capitalismo foi sucedido por infinitas revoltas sociais e uma violenta reversão nacionalista. E nesta terceira década do século XXI, já ninguém mais tem dúvida que está em curso em todo o mundo capitalista uma nova “inflexão nacionalista”, e uma universalização de revoltas sociais que se propagam por todos os lados exigindo a intervenção dos estados e de suas políticas públicas para reverter a catástrofe social provocada pela globalização neoliberal das décadas anteriores.
Nunca se sabe de antemão qual é a causa imediata e o momento preciso em que começam estas ondas, seja numa direção seja na outra. Mas neste início do Século XXI, não há dúvida que os sinos começaram a dobrar anunciando a “morte da globalização” no momento em que os Estados Unidos desencadearam suas “guerras sem fim”, logo no início do novo século, e mais ainda, no momento em que explodiu a grande crise econômico-financeira de 2008, cujos efeitos sociais e ecológicos adversos foram exponenciados pelas políticas anticíclicas dos próprios norte-americanos e seus principais sócios do G7.
E foi sobre este pano de fundo já instalado que repercutiram os efeitos multiplicadores da pandemia do Covid-19, e da recente Guerra da Ucrânia, completando a ruptura das cadeias globais de produção e comércio – sobretudo, de energia, grãos e tecnologias de ponta – acelerando a chegada da nova “era nacionalista”. O que surpreendeu muitos analistas foi o fato de que tenham sido os próprios Estados Unidos que assumiram a partir de 2017 – em particular durante o governo de Donald Trump - a liderança mundial da reação nacionalista contra o movimento internacionalizante que eles mesmos desencadearam e lideraram a partir da década de 70 do século passado.
Depois de Trump, o governo de Joe Biden se propôs retomar o caminho do liberal-internacionalismo mas ele mesmo percebeu rapidamente que esta proposta já havia esgotado seu potencial expansivo e que não lhe restava outro caminho que não fosse o do “nacionalismo econômico” e da proteção social da população americana por cima de qualquer outro objetivo internacionalista que não seja o das suas próprias guerras imperiais ao redor do mundo. Apesar disto, e a menos de uma guerra atômica que seria catastrófica para toda a humanidade, o mais provável é que os Estados Unidos mantenham sua presença militar e sua centralidade global durante o século XXI. Apesar de que seja visível e notória a sua perda de liderança fora do seu círculo de aliados e vassalos mais próximos, zona onde se situa tradicionalmente a América Latina, e de forma muito particular, o Brasil que sempre operou como ponto de lança dos Estados Unidos dentro do continente latino.
Mesmo assim, a América Latina é hoje um dos poucos lugares do mundo onde a revolta social contra o fracasso da globalização neoliberal vem sendo capitalizada pelas forças progressistas e por coalizões de governo com participação de partidos de esquerda. Serão grandes os desafios e as dificuldades que enfrentarão esses novos governos de esquerda, num contexto internacional de crise econômica e de guerra entre as grandes potências.
Mas ao mesmo tempo – segundo a hipótese de Karl Polanyi - este momento poderá se transformar numa oportunidade extraordinária para América Latina avançar na luta, conquista e consolidação de sua soberania dentro do sistema internacional. Os Estados Unidos estão enfrentando grandes desafios, em vários planos e regiões do do planeta e têm aumentado a pressão pelo alinhamento da América Latina, mas sua liderança regional também é declinante, como se pôde observar na última Cúpula das Américas promovida pelos Estados Unidos, e realizada na cidade dos Los Angeles, em 2022. Na verdade, os norte-americanos estão sem disposição real e sem recursos suficientes para envolver-se simultaneamente na Europa Central, na Ásia, no Oriente Médio, e ainda na América Latina. Uma boa hora, portanto, para renegociar os termos da relação do continente com os Estados Unidos, sem medo nem bravatas. E neste momento, a política externa e a liderança brasileira serão absolutamente fundamentais.
O Brasil é o país latino-americano onde se pode identificar uma “flutuação histórica” mais parecida com a do “duplo movimento” de que fala Karl Polanyi. Em particular nas três ou quatro últimas décadas em que o país viveu uma sucessão de pequenos ciclos de abertura e internacionalização, seguidos por contramovimentos protecionistas, como aconteceu nos anos 90 e no início do século XXI, e voltou a acontecer depois do golpe de estado de 2015/2016. E agora de novo, tudo indica que esta última onda de abertura, desregulação e privatizações que foram responsáveis pelo aumento da desigualdade, da miséria e da fome no país está chegando ao fim, e o Brasil poderá então retomar o caminho interrompido da reconquista dos direitos sociais e trabalhistas de sua população, de proteção da sua natureza, e de expansão de seus graus de soberania internacional.
O Brasil tem a seu favor, nesta conjuntura mundial de guerra entre as grandes potências, e de crise energética, alimentar e hídrica em quase todo o mundo, a sua própria autossuficiência em fontes de energia, em grãos, e em disponibilidade de águas. Seu maior problema não está deste lado, está na forma desigual em que esta riqueza está distribuída e a grande resistência de sua classe dominante à qualquer tipo de política redistributiva. E neste ponto não há como enganar-se: é impossível avançar no plano da soberania externa do país sem avançar na luta contra a sua desigualdade social interna, o que exigirá do novo governo brasileiro a declaração de uma verdadeira guerra interna contra a miséria e a desigualdade de sua população.
A raiz última deste problema remonta sem dúvida aos 350 anos de escravidão que ainda pesarão por muito tempo sobre as costas da sociedade brasileira, somando-se às consequências sociais deletérias da longa ditadura militar do século passado. Período em que os militares dividiram ainda mais os brasileiros ao criar a figura do “inimigo interno” do país formado por seus próprios compatriotas que foram combatidos com as armas do próprio estado brasileiro. Uma aberração histórica, que também pesará ainda por muito tempo sobre o país, e que foi imposta ao Brasil pela vassalagem internacional dos seus militares. Neste sentido, também não haverá como avançar na luta pela soberania do país sem fazer uma revisão radical da posição interna e externa das FFAA brasileiras.
A resistência será enorme e virá de uma coalisão de forças que se consolidou nos últimos anos dentro do país à sombra do fanatismo ideológico e religiosos de uma “nova direita” que somou seu fascismo caboclo ao ultraliberalismo econômico da “velha direita” primário-exportadora e financeira, que agora é liderada pelo agrobusiness do centro-oeste, formando uma coalisão de poder “líbero-teológico-sertanejo” que financia a sua “vanguarda miliciana carioca” e inclui também os militares brasileiros que voltaram à cena aliados à direita, como sempre, mas agora convertidos ao catecismo econômico neoliberal.
Assim mesmo, apesar destes obstáculos internos, é possível o Brasil superar este momento amargo da sua história e retomar o caminho de construção da sua soberania demarcando seu lugar dentro deste novo mundo multipolar e agressivo que está se configurando à nossa frente. O Brasil não tem inimigos na América Latina, e seria um absurdo ou loucura iniciar uma corrida armamentista com nossos vizinhos, ou mesmo submeter-se à corrida militar de outros países dentro do continente latino-americano. Pelo contrário, o Brasil deve procurar ocupar no futuro o lugar de uma “grande potência pacificadora” dentro do sistema no seu próprio continente e dentro do sistema internacional.
Assim mesmo, uma coisa é certa, se o Brasil quiser redesenhar sua estratégia internacional e assumir esta nova posição continental e internacional “não há dúvida que terá que desenvolver um trabalho extremamente complexo de administração de suas relações de complementariedade e competição permanente com os Estados Unidos, sobretudo, e também – ainda que seja em menor grau - com as outras grandes potências do sistema interestatal. Caminhando através de uma trilha muito estreita e durante um tempo que pode prologar-se por várias décadas. Além disto, para liderar a integração da América do Sul e o continente latino-americano dentro do sistema mundial, o Brasil terá que inventar uma nova forma de expansão continental e mundial que não repita a “expansão missionária” e o “imperialismo bélico” dos europeus e dos norte-americanos”[1].
[1] Fiori, J.L. “A inserção internacional do Brasil e da América do Sul”, publicado aqui, 11/02/2010.