"Empresas e empresários colaboraram com a ditadura brasileira em troca de benefícios econômicos." Entrevista com Edson Teles

10 Agosto 2022

 

A cumplicidade civil com o terrorismo de estado no Brasil

 

No Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, Edson Teles coordena a investigação da participação empresarial em crimes contra a humanidade durante a ditadura. Em diálogo com Página|12, analisa o processo de memória, verdade e justiça no Brasil, seus desafios e os obstáculos que ainda enfrenta.

 

A reportagem é de Ailin Bullentini, publicada por Página/12, 09-08-2022. 

 

Já se sabe que a luta pela memória, verdade e justiça na Argentina é reconhecida mundialmente. Que as organizações que iniciaram a jornada e as instituições que o processo deu origem são o espelho no qual processos de outros lugares também querem se enxergar. No Brasil, um grupo de pesquisadores, alguns ligados às vítimas da ditadura que devastou aquele país por 20 anos, procurou a Equipe Argentina de Antropologia Forense para forjar o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) e trabalhar na identificação de restos mortais de cerca de 1.100 pessoas que foram sequestradas, assassinadas e enterradas na vala comum de Perus, e agora quer mais. Apesar de no Brasil a possibilidade de processar criminalmente os responsáveis ​​por crimes contra a humanidade permanecer fechada pela mais alta autoridade judiciária, os integrantes do CAAF trabalham em uma investigação sobre as empresas que foram cúmplices e colaboraram com o regime que encabeçou Humberto de Alencar Castelo Branco.

 

Edson Teles é professor universitário de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo e sobrevivente da ditadura que governou seu país entre 1964 e 1985. Em dezembro de 1972, ele e sua irmã foram sequestrados junto com a mãe e o pai, Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles, militantes do Partido Comunista, e levados consigo para a cadeia, onde foram submetidos a sessões de tortura. Sua história o levou a trabalhar na academia sobre o processo ditatorial de seu país e região, os crimes que ocorreram então, os processos de memória. Ele é, hoje, coordenador da investigação que a CAAF realiza sobre as empresas cúmplices da ditadura de que foi vítima.

 

Eis a entrevista. 

 

Como surgiu a CAAF e a ideia de investigar as ações empresariais nos crimes da ditadura?

 

O CAAF depende da Universidade Federal de São Paulo e surgiu em 2014, inspirado na Equipe Argentina de Antropologia Forense. Foi criado para receber os restos ósseos da cova clandestina de Perus, com cerca de 1.100 indivíduos enterrados na mesma cova durante a ditadura (1964-1985). Com o desenvolvimento do trabalho de identificação que foi realizado naquela sepultura, a CAAF ganhou experiência para a análise forense de graves violações de direitos humanos, especialmente aquelas ocorridas nesse período ditatorial. Com financiamento do Ministério Público, a CAAF criou um projeto para apurar a responsabilidade de empresas em violações de direitos durante a ditadura, no qual estamos trabalhando.

 

De acordo com sua descrição formal, o projeto de pesquisa busca “reunir informações, depoimentos e análises” para “desvendar a articulação entre organizações políticas de repressão e empresas” durante a ditadura. Entre as bases sobre as quais se baseia a iniciativa de avançar está o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, que foi realizado há uma década no país vizinho, com Dilma Rousseff na presidência. “O processo repressivo inclui a coleta e transmissão de informações sobre a atividade sindical dos trabalhadores, a contribuição logística e material para o aparato repressivo e a instalação de centros clandestinos de detenção e tortura, inclusive nas dependências das empresas”, descreve a CAAF em documento no qual indica que a iniciativa “entende que as características dessas violações configuram cumplicidade com o terrorismo de Estado e, consequentemente, com crimes contra a humanidade, com impacto que ultrapassa as vítimas diretas, e que continuam a ter consequências até hoje se suas várias dimensões não são compreendidas”.

 

Qual foi o nível de cumplicidade das empresas com a ditadura e os crimes contra a humanidade no Brasil?

 

O nível era amplo, complexo e profundo. O próprio golpe de 1964, com o qual as Forças Armadas assumiram o governo, foi planejado e financiado por diversas empresas e indústrias. Nos anos seguintes, empresas e empresários colaboraram financeiramente e com apoio logístico para a montagem do aparato repressivo do regime militar, os centros de tortura. Além disso, eles financiaram e promoveram, por meio de seus departamentos de segurança institucional, a repressão aos trabalhadores e sindicatos. Eles foram cúmplices de mortes e desaparecimentos ao colaborar com a polícia política do regime. Em troca, recebiam benefícios econômicos.

 

Na Argentina há obstáculos para avançar no julgamento de crimes contra a humanidade pelos quais funcionários e empresários foram cúmplices ou responsáveis, mas alguns foram condenados, como os ex-executivos do caso Ford. No Brasil isso não foi possível. Por quê? Até que ponto essa situação impõe desafios à sua tarefa?

 

No Brasil convivemos com a interpretação do Supremo Tribunal Federal de que a Lei de Anistia de 1979 tornou os indivíduos envolvidos na violência estatal da ditadura imunes a processos. Até o momento, nenhum dos envolvidos foi julgado e condenado criminalmente. Isso obriga nosso trabalho a focar nas empresas e não nos empreendedores. Como já experimentamos no caso da indenização paga pela Volkswagen do Brasil por sua colaboração com a ditadura, a estratégia atual é expor à opinião pública o envolvimento das empresas para incentivá-las a realizar atos de reparação e compensação. Os limites deste momento são o bloqueio dos atos de justiça criminal.

 

O quanto o governo de Jair Bolsonaro complicou essa tarefa?

 

Com o governo Bolsonaro, tivemos pelo menos duas grandes complicações. Por um lado, o governo e a extrema direita passaram a promover uma espécie de política de memória reversa, tentando reverter os valores do período da ditadura, negando seus aspectos violentos e justificando parte do ocorrido revivendo a lógica da guerra contra o "inimigo do país". Para se ter uma ideia mais completa, nosso atual presidente tem como herói, disse várias vezes, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi comandante do maior centro de tortura da ditadura, responsável por dezenas de assassinatos e desaparecimentos, além de centenas dos milhares de casos de tortura. A segunda complicação foi a aplicação de uma política de desmantelamento de direitos e políticas de memória.

 

Extinguiu os órgãos e grupos de trabalho, como o Grupo de Trabalho Perus, que buscou analisar e identificar os desaparecidos políticos entre os restos mortais do túmulo clandestino de Perus, ou o Grupo de Trabalho Araguaia, que teve como objetivo localizar os restos mortais dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. Recentemente, houve uma tentativa de fechamento da Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos Políticos (CEMDP), o que provocou uma reação dos movimentos de direitos humanos, impedindo o fato. A segunda estratégia foi destruir as políticas de memória por dentro, seja colocando os defensores da ditadura em cargos gerenciais, seja desmobilizando os aparatos necessários para seu funcionamento.

 

Nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff foi diferente, houve avanços? Espera-se que se Lula vencer as eleições haverá progresso no processo de julgamento desses crimes?

 

Durante os dois mandatos de Lula da Silva houve pouco avanço no processo judicial e ele funcionou como um governo de conciliação da esquerda com a direita e dos militares. Assim, políticas de memória foram implementadas com a recuperação da história das vítimas, mas não foram tomadas providências pelo Poder Executivo para atos de justiça. Mais tarde, e após décadas de atraso, o governo de Dilma Rousseff pressionou o Congresso Nacional pela criação da Comissão Nacional da Verdade. Embora os objetivos dessa instituição não fossem promover a repressão dos crimes da ditadura, suas investigações incentivaram uma maior organização da sociedade em torno dessa luta, mobilizando diversos grupos e instituições e promovendo dezenas de pedidos de julgamento por parte do Ministério Público. Hoje, por uma maior articulação da sociedade em torno do direito à memória e à verdade, mas também à justiça, acredito que um terceiro mandato de Lula, apesar de manter sua política de não promover justiça para os crimes da ditadura, seria um poderosa abertura democrática para os setores organizados da sociedade.

 

Volkswagen: o primeiro passo

 

Qual foi o papel da Volkswagen no cometimento de graves violações de direitos humanos durante a última ditadura no Brasil?

 

A sede brasileira da Volkswagen organizou um departamento de segurança institucional, criando listas de trabalhadores que lutaram por seus direitos, entregando seus referentes às forças de segurança política da ditadura e promovendo a tortura física e psicológica deles dentro da fábrica. A denúncia contra a empresa foi apresentada pelo movimento sindical e organizações de memória das vítimas e foi acatada pelo Ministério Público, que finalmente registrou a denúncia contra a empresa na Justiça. Assim, foram os próprios trabalhadores que iniciaram as investigações, elaborando e reunindo os primeiros documentos que credenciavam as infrações cometidas pela Volkswagen.

 

Em que situação se encontra essa empresa perante a Justiça?

 

Antecipando a possibilidade de condenação, a Volkswagen participou do que no Brasil chamamos de TAC, Termo de Ajustamento de Conduta (que ocorreu há dois anos): um acordo entre a Justiça, o Ministério Público Federal e a empresa para o pagamento de cerca de R$ 36 milhões destinados à reparação individual das vítimas e seus familiares, além de uma parte destinada a projetos de memória e reparação. Dois milhões de reais dessa indenização foram destinados ao nosso projeto de pesquisa em outras dez empresas, que têm fortes indícios de participação na repressão política durante a ditadura. Este acordo refere-se às práticas repressivas e persecutórias contra os trabalhadores dentro da fábrica da montadora em São Bernardo do Campo, onde o movimento sindical metalúrgico promoveu importantes protestos no final dos anos 1980, quando foi presidido por Lula. Atualmente, foi aberto um segundo procedimento de investigação contra a Volkswagen pelo uso de trabalho escravo em fazendas que possui na região norte do país.

 

Existem outras empresas na mesma situação?

 

Como réus no campo da Justiça, ainda não há outra empresa na mesma situação da Volkswagen. No entanto, muitas das empresas que estamos investigando atualmente se encontrarão na mesma situação nos próximos anos. Entre os investigados estão Paranapanema, Josapar, Aracruz e Itaipu (binacional, Brasil e Paraguai) especialmente por violações contra populações tradicionais (povos indígenas, quilombolas e camponeses); FIAT e Cobrasma, pela perseguição e repressão aos trabalhadores em luta; Folha de São Paulo pela perseguição e apoio ao aparelho repressivo; CSN para a repressão dos trabalhadores e da população local utilizando as Forças Armadas; Companhia Docas do Porto de Santos por perseguição generalizada e benefícios econômicos; Petrobras, por perseguição e repressão aos trabalhadores, crimes ambientais e benefícios econômicos. 

 

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