24 Agosto 2022
“Nós, os povos da Terra, que no curso das últimas gerações acumulamos armas mortíferas capazes de destruir várias vezes a humanidade, devastamos o meio ambiente natural e colocamos em perigo, com nossas atividades industriais, a habitabilidade da Terra (...), promovemos um processo constituinte da Federação da Terra (...) para firmar este pacto de convivência e de solidariedade.”
É assim que começa o preâmbulo da Constituição proposta pelo professor emérito de Filosofia do Direito, da Università Roma Tre, Luigi Ferrajoli, um dos constitucionalistas mais citados do mundo, que publicou recentemente um livro no qual alerta para um momento sem retorno da humanidade. Um momento que só pode ser revertido, em sua opinião, com a refundação de um pacto de convivência global.
Ferrajoli propõe uma nova organização mundial, uma federação de estados subordinada a instituições globais com verdadeiro poder e orçamento que fixem “limites” reais aos poderes transbordados dos mercados, mas também, diz, dos Estados. “Pode soar utópico, mas a verdadeira utopia é que possamos continuar como estamos”, argumenta.
A entrevista é de Alberto Ortiz, publicada por El Diario, 20-08-2022. A tradução é do Cepat.
Como pode um texto legal solucionar ou ajudar a resolver problemas tão globais como a crise climática, as guerras e as ameaças nucleares?
A finalidade desta proposta é mostrar que uma alternativa é possível e necessária. Uma Constituição da Terra pode soar utópica, mas a verdadeira utopia é que o mundo possa continuar assim. O mundo não pode continuar sem fazer nada contra esses desafios e catástrofes inevitáveis.
Vimos a pandemia, agora a guerra, mas também a mudança climática, a morte todos os anos por falta de alimentos e medicamentos, a crescente desigualdade, centenas de milhares de migrantes que fogem desses problemas não resolvidos. São problemas globais que não fazem parte da agenda política dos governos nacionais, embora a sobrevivência da humanidade dependa de sua solução.
Eu não acredito que não existam alternativas realistas que não passem por um salto de qualidade. Ou seja, impor limites e vínculos aos poderes selvagens dos Estados mais poderosos e dos mercados. E isso só pode ser feito com uma constituição rígida à qual esses poderes estejam subordinados. Devemos estar conscientes de que somente uma constituição global pode resolver esses problemas.
Sua ideia de uma constituição mundial vem de antes, mas a pandemia a reafirmou em suas teorias?
A pandemia foi uma confirmação dessa necessidade. O vírus não conhece fronteiras. O que acontece na China é relevante para a Europa. Isto requer uma resposta global, coordenada. A ausência de uma Organização Mundial da Saúde à altura de tais desafios se traduziu na falta de previsão e na incapacidade de controlar os contágios.
Somente uma organização global pode adotar soluções homogêneas em todo o mundo. Penso que as falhas desta instituição são responsáveis pelas milhares de mortes provocadas pela pandemia. Também a guerra. Hoje, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, temos o perigo real da deflagração de um conflito nuclear. Quando se diz que Putin é o novo Hitler, esta afirmação deveria ser uma preocupação.
Em um dos artigos de sua constituição, você propõe a abolição dos exércitos nacionais, a criação de um Estado-Maior da Defesa Mundial que vá desarmando as tropas de cada país. Justamente quando os países voltam a se blindar.
É a velha ideia de Thomas Hobbes dessa natureza selvagem dos homens. Hoje, a situação é muito mais perigosa. É uma sociedade não de lobos naturais, como os homens, mas de lobos artificiais, como os Estados e os mercados, que são dotados de uma capacidade destrutiva incomparável à capacidade destrutiva dos homens no século XVII, quando Hobbes desenvolveu suas ideias.
E sobretudo das catástrofes, a mudança climática, o risco de um conflito nuclear. São catástrofes irreversíveis. Isto significa que seria urgente e necessário, não somente possível, uma refundação destes pactos, porque existe o risco de que não haja tempo para algo novo nunca mais.
Em que se materializam os limites aos poderes privados e estatais que você menciona?
Em nossa tradição filosófica, jurídica e política, a ideia fundamental é que o poder deve residir somente no Estado e o mercado é um lugar apenas para as liberdades. Aqui, existe um equívoco que remonta a [John] Locke: a identificação de propriedade, de iniciativa econômica e de liberdade.
Naturalmente, a iniciativa econômica é um direito fundamental. No entanto, é um direito que também é um poder. Não podemos considerar o mercado apenas como um lugar de liberdade. É também um lugar de poder.
O problema é dramático porque o mercado é global e a política ainda é, sobretudo, local. Esta assimetria entre o caráter global dos mercados e o caráter local dos Estados produziu uma inversão da porta entre política e economia.
Não são os Estados que governam a economia, garantindo a concorrência entre as empresas, mas, ao contrário, a política que se subordinou à economia, que é quem gere a concorrência entre os Estados, para ver quem propicia as melhores condições para explorar os trabalhadores, não pagar impostos, devastar o meio ambiente ou se curvar à corrupção.
O mesmo acontece com o rearmamento: é provocado pelo lobby das armas, que corrompeu governos como os Estados Unidos, onde o comércio de armas não pode ser regulamentado. A produção de armas é uma das atividades mais criminosas e eu acredito que somente uma constituição global pode identificar e perseguir ilícitos.
Temos que voltar à ideia de Hobbes do monopólio público da força, não para criar bombas atômicas ou mísseis. Trata-se simplesmente de manter a força necessária para a atividade das unidades de investigação da Polícia, da segurança.
Antes, você falava sobre a necessidade de uma OMS capaz de gerenciar catástrofes. No livro, de alguma forma você consagra instituições econômicas como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), que levaram não poucos países no mundo à ruína. Você não as retificaria?
O papel dessas instituições deveria ser, como propunha [John Maynard] Keynes, o desenvolvimento e a estabilidade econômica dos países mais pobres. No entanto, somente os Estados Unidos têm poder de veto, e isso as transformou em instituições que funcionam sob a lógica neoliberal, da ausência de limites aos mercados.
Só uma redefinição dos estatutos destas instituições, que é formulada no texto da constituição que proponho, pode reformá-las e reorientá-las para um desenvolvimento econômico compatível com a preservação do meio ambiente, com a igualdade, com a garantia da sobrevivência de todos. Somente uma Constituição da Terra pode reformar estas instituições de garantias e colocar limites e vínculos aos mercados.
Os mercados são globais e só instituições de garantias globais podem limitar e realizar o paradigma do Estado de Direito, a submissão do mercado ao direito.
Que outros elementos econômicos seriam regulamentados por esta Constituição?
Bens comuns como a água potável, o ar, os grandes espaços naturais. Em segundo lugar, a proibição de fontes de energias não renováveis e a emissão de gases. Uma proibição que deveria ser gradual, naturalmente. No começo, com uma forte imposição tributária, com a taxação dessas atividades, mas depois sua proibição.
Também uma garantia universal do trabalho. Hoje, existe uma concorrência sobre o trabalho. Ou seja, as empresas podem se transferir para países onde os trabalhadores podem ser explorados. Mas também na Espanha, na Europa, o direito do trabalho está em crise devido à necessidade de defender os empregos contra esta deslocalização das empresas.
Esta é uma deslocalização que deveria ser proibida através do direito de veto. Há um artigo na Constituição que prevê que essas decisões também devem ser aprovadas pelos trabalhadores, os autônomos. É necessária uma garantia universal por meio de uma homogênea concessão de um salário mínimo universal e também, sobretudo, instituições de garantias de caráter universal.
Muitas vezes, propus uma reformulação da separação de poderes formulada por Montesquieu. É necessário separar as instituições de governo, que devem ser representativas nos estados nacionais das instituições de garantias, que devem controlar as ameaças de caráter global: as violações de direitos humanos, de bens fundamentais.
Trata-se de criar instituições de garantias, como a OMS, a UNESCO e a FAO, mas com capacidade real de garantir alimentos para todos, de proteger o meio ambiente, garantir a paz através do monopólio da força da ONU. Não passa tanto por uma mudança de seus estatutos, mas por sua reafirmação por todos os Estados.
A única tentativa de uma Constituição supranacional foi a da União Europeia e fracassou. Como pretende colocar países com sensibilidades tão diferentes em acordo?
Penso que o processo de unificação europeia foi o fato mais importante da história do pós-guerra. No entanto, foi um processo enormemente lento, incompleto. O verdadeiro inimigo dessa perspectiva é a ideia de soberania dos Estados. A soberania é um conceito antijurídico.
Existem duas categorias: a soberania e a cidadania. A cidadania é uma diferença por motivo de nascimento que contradiz o princípio da igualdade. Penso que os verdadeiros adversários desta perspectiva são, por um lado, o sujeito político dos Estados nacionais, que defendem de forma míope o poder dos Estados com base na ideia de soberania. E, por outro lado, os poderes econômicos, os mercados, que naturalmente não querem uma esfera pública global ao seu nível.
Corrigir isto é improvável. Não se deve, no entanto, confundir improbabilidade com impossibilidade. Eu sou, acredito que como quase todos, muito, muito pessimista sobre o futuro da humanidade. No entanto, este livro tem como finalidade contrastar as teses repetidas por todos os governantes de que não há alternativas ao atual status quo, que não há alternativa à destruição do planeta, à dissolução da humanidade.
É uma tese realista. Eu acredito que quando essas catástrofes se tornarem mais visíveis, será possível pensar em um redesenho da razão e a política pode voltar a ser progressista.
Mesmo com o crescimento da extrema direita, nos países democráticos, o acirramento da Rússia e a relevância econômica de uma ditadura como a China?
É necessária uma batalha cultural. Uma luta que consiste em levar a sério o que ninguém, tampouco a direita, tem a coragem de negar: o princípio da igual dignidade de todos os seres humanos, dos direitos fundamentais de todos. Estes princípios deixarão de ser retórica vazia quando forem levados a sério e garantidos.
É uma batalha cultural que é do interesse de todos. Este é o único planeta que temos. Temos perigos gravíssimos para a sobrevivência da humanidade. Existem bens vitais que devem ser protegidos.
A direita é sempre o efeito de um vazio de política progressista, que supõe um desafio aos princípios estabelecidos em nossas constituições. Isto é sempre o sintoma de uma crise da democracia e da política.
Nesse sentido, acredito que a hipótese da Constituição da Terra, com todas essas indicações, também tem o papel de refundar uma política progressista, uma política do interesse de todos.
Haveria partidos globais?
Obviamente. Devemos estar conscientes de que o mundo está muito mais conectado hoje do que em qualquer época do passado. Quando eu tinha 20 anos, o mundo tinha 2 bilhões de pessoas. Hoje, somos quatro vezes mais: mais de 8 bilhões. E, no entanto, está muito mais conectado.
Mas, sobretudo, estamos expostos aos mesmos perigos, aos mesmos desafios globais. Nesse sentido, penso que também é possível falar de um povo da terra. É uma batalha cultural que deve ser empreendida, naturalmente.
Isto implica a necessidade de uma mobilização, no mínimo, dos juristas. Não acredito nos atuais partidos políticos interessados em manter sua pequena parcela de poder, com interesses sempre ligados às eleições locais.
No entanto, penso que essa proposta, sim, faria sentido se pensássemos, por exemplo, em movimentos como Fridays For Future, em Greta Thunberg. Movimentos ambientalistas, pacifistas, que não se limitem a protestar, a denunciar o que todos nós sabemos. Esta denúncia deve ser acompanhada por uma proposta política. Esse é precisamente o objetivo da Constituição da Terra.
Se conseguisse fazer todos os países entrarem em acordo, proporia organizá-los em um sistema federal.
Naturalmente. Proponho um estado federal baseado na máxima autonomia das funções de governo dos Estados federados e o caráter federal sobretudo das instituições de garantia que mencionava, mas pensadas, insisto, como limites à força, à violência e ao arbítrio.
E aposta, logicamente, em uma Justiça universal, que está em franco declínio no mundo.
Eu proponho ampliar o Tribunal Penal Internacional, obrigatório para todos os estados. Que as justiças nacionais estejam subordinadas a esta instância. Mas, sobretudo, proponho ampliá-la às violações de liberdades como as que vemos, por exemplo, na Turquia, no Egito, na Rússia. Além disso, haveria um Tribunal Constitucional Global ao qual estariam subordinadas as demais instituições de garantia.
Tudo pode parecer um sonho ou uma utopia. No entanto, eu acredito que temos a responsabilidade de elaborar uma teoria da democracia à altura dos verdadeiros problemas do mundo, é uma questão de sobrevivência.
Existe o risco de que a humanidade se autodestrua com o aquecimento global, com as armas nucleares, com o crescimento da desigualdade. Existe uma responsabilidade da cultura e da teoria jurídica em propor, mostrar, que a única alternativa é uma reformulação da ONU.
Em geral, são coisas óbvias que, no entanto, contrastam com o senso comum atual baseado na defesa idiota da soberania, da nacionalidade. Penso que existem dois significados para nacionalismo: o nacionalismo agressivo, excludente, que representa o fascismo, e a ideia de nacionalidade como guardiã da identidade cultural de todos os povos, baseada no respeito às diferenças nacionais dos outros. Esta não é negada, é garantida na Constituição da Terra. A nacionalidade faz parte da identidade de uma pessoa e precisa ser garantida, assim como o respeito igual a todas as diferenças.
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“A direita é o efeito de um vazio de política progressista.” Entrevista com Luigi Ferrajoli, que propõe uma Constituição da Terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU