04 Agosto 2022
A guerra na Ucrânia não marca apenas o retorno do papel central da guerra na política mundial. Traz também uma novidade: a possibilidade de muitas de suas vítimas ocorrerem em locais distantes do conflito.
A reportagem é de David Rief, publicada por Letras Libres, 01-08-2022. A tradução é do Cepat.
No clímax do obscuro western de Clint Eastwood Os Imperdoáveis (1992), Bill Gadget, o sádico xerife brilhantemente interpretado por Gene Hackman, percebe que o personagem de Eastwood, Bill Munny, um fora da lei tristemente célebre que estava aposentado, vai matá-lo. E, pouco antes de Munny atirar, o xerife diz: “Eu não mereço morrer assim. Eu estava construindo uma casa para mim”.
A resposta na América do Norte e na maioria dos países europeus à guerra entre a Rússia e a Ucrânia foi semelhante. Com certeza, o triunfalismo – que foi o modo padrão no Ocidente durante a primeira década após o colapso do império soviético – em grande parte se desfez. O jihadismo, a crise financeira de 2007-2008, a crescente conscientização de que a democracia parece dar lugar à autocracia em todo o mundo e, finalmente, a pandemia mais do que se encarregaram disso.
Mas mesmo em um Norte global onde as expectativas mais baixas se tornaram a norma – e onde a sombra das mudanças climáticas produziu uma geração mais jovem aleijada fisicamente por medos apocalípticos em relação ao futuro (justificados ou não) – praticamente ninguém esperava uma guerra em grande escala, e menos ainda na Europa.
Ao contrário, até a invasão russa da Ucrânia, e apesar das sucessivas guerras na ex-Iugoslávia na década de 1990, a visão dominante no Ocidente, embora obviamente sustentada de maneiras diferentes e com ênfases diferentes em todo o espectro ideológico, era que a guerra entre Estados é uma aberração nas relações internacionais. No futuro, supunha-se de maneira geral, as guerras ocorreriam sobretudo dentro dos Estados e não entre eles; seriam assimétricas tanto do ponto de vista tecnológico quanto ideológico, e o confronto de exércitos não seria seu principal componente.
E como disse uma das arquitetas intelectuais da chamada tese das novas guerras, a teórica política britânica Mary Kaldor: “a tendência interna desses conflitos não é a vitória ou a derrota, mas uma guerra permanente inconclusiva que se estende ao longo das fronteiras”. As guerras por opção em que os Estados Unidos participaram na década de 1990 e mais ainda o que no exército é chamado de Longa Guerra (contra o jihadismo) são exemplos desse tipo de conflito.
Em vez disso, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia parece-se muito com um retorno à norma de Clausewitz (supostamente banida). Sim, civis estão sendo mortos, como sempre acontece na guerra, antiga ou nova, mas em termos militares o centro de gravidade do horror mudou radicalmente. Esta é uma guerra tradicional no sentido de que o que será decisivo é qual exército derrota ou pelo menos incapacita o outro no campo de batalha. O que não é tradicional – aliás, o que parece inédito – é o desastre que a guerra está causando muito além do espaço de combate na Ucrânia e nos países europeus que a cercam. Certamente, as guerras sempre afetam outros países que não aqueles que lutam e seus aliados militares e econômicos.
Mas historicamente esses efeitos tenderam a ser regionais, não globais. A única exceção é a migração, mas mesmo nesse caso as guerras são apenas uma das razões que impulsionam a grande migração do Sul global para os países mais ricos do Sul global e, claro, para o Norte global, que ocorre e se intensificará nas próximas décadas.
Apesar das fantasias de neopacifistas de esquerda – como o estudioso de história jurídica de Yale Samuel Moyn –, que postulam que a paz pode de alguma forma se tornar um direito humano e que em boa medida, embora não totalmente, a guerra pode ser abolida, e apesar daqueles que subscrevem o que Hans Rosling chamou de maneira triunfal de “milagre secreto e silencioso do progresso humano” – que se encontra na obra do próprio Rosling e na de Steven Pinker –, a chamada “Longa Paz” da era pós-1945 chega ao fim: isto é, na medida em que chegou a existir em primeiro lugar.
Em termos históricos, não há nada de particularmente notável nisso. Mas a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é o primeiro conflito desse tipo que provavelmente causará danos colaterais globais. Com isso quero dizer que agora parece certo que haverá enormes perdas de vidas e também enormes danos econômicos em lugares do mundo que não têm conexão com as hostilidades.
Para ser claro, muitos conflitos tiveram efeitos letais longe do campo de batalha. Qualquer que seja a interpretação que você aceite, a Grande Fome de Bengala de 1943, que matou pelo menos três milhões de pessoas, foi causada pela decisão do governo britânico de desviar alimentos para suas forças de combate, ou foi o resultado da indiferença de Whitehall (e do Raj) em relação aos sofrimentos das pessoas que colonizaram. Mas a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é diferente.
Seus efeitos colaterais mais devastadores (fora da Ucrânia) provavelmente ocorrerão em grande parte do Oriente Médio e da África, que há muito tempo dependem das importações de trigo da Ucrânia e da Rússia. Somália e Benin obtêm 100% do seu suprimento de trigo de fontes russas e/ou ucranianas, Egito 82%, Sudão 75%, República Democrática do Congo 69%, Senegal 66% (isso ajuda a explicar a urgência do encontro do presidente senegalês Macky Sall com Vladimir Putin em Sochi em junho passado) e a Tanzânia 64%. Líbia, Madagascar e Iêmen também sofrem punições severas.
E, no entanto, pode-se dizer com suficiente certeza que, quando Putin decidiu invadir a Ucrânia e quando Volodymyr Zelensky decidiu repelir a invasão, nenhum deles pensou no efeito que o conflito teria sobre pessoas que vivem em países da África, já com pouca segurança no que diz respeito à alimentação e, em alguns casos, em regiões (partes da Somália e do Sudão provavelmente mais atingidas) à beira da fome.
E, embora nos piores casos as previsões sejam parcialmente corretas, o número de mortos será grande. Entre os dois, Ucrânia e Rússia respondem por mais de 30% das exportações mundiais de trigo. É inteiramente possível que, mesmo que um milhão de pessoas morram na guerra entre a Rússia e a Ucrânia, muitas mais morram de fome na África.
Neste momento, as Nações Unidas não são nem sombra do que eram, mas sim uma sombra da sombra do que foram. Dito isto, para seu crédito, é preciso assinalar que o secretário-geral António Guterres fez um grande esforço para alertar a opinião pública e os políticos do mundo para o perigo iminente, tanto por razões humanitárias como por razões de aumento das migrações – presumivelmente, este último é um alerta para os governos europeus cujos orçamentos já estão no limite devido ao dinheiro usado durante a pandemia e agora destinado para a Ucrânia.
Os jornalistas começaram a falar sobre as possíveis consequências. The Economist publicou um artigo sobre “A catástrofe alimentar vindoura”, onde adverte que “a guerra está empurrando um mundo já frágil para a fome em massa”. Até certo ponto é compreensível: assim como os funcionários da ONU e os trabalhadores humanitários, os jornalistas conscientes querem mobilizar o apoio público necessário na América do Norte e na Europa para pressionar os governos ricos do Ocidente. E não há dúvida de que a crise é real e de que os governos do mundo pobre, e particularmente da África, já estão economicamente de joelhos por causa da pandemia.
Por exemplo, um relatório recente do Banco Mundial sugere que os países em desenvolvimento serão sobrecarregados com pagamentos de juros mais altos já em andamento, à medida que as taxas de juros aumentam no mundo desenvolvido. É uma maneira eufemística de dizer que estes países enfrentam novamente uma grande crise de dívida, que se soma à insegurança alimentar, à guerra e ao aquecimento global, um fenômeno que, como se não tivessem bastante coisas para enfrentar, em geral apresenta efeitos muito mais nocivos no Sul global do que no Norte global.
Ao mesmo tempo, porém, manchetes assustadoras como a do The Economist deturpam o problema, já que podem levar o leitor desinformado a concluir que se trata de um problema de produção de trigo. Isso é falso. Porque não só a produção global de trigo ainda é alta, mas muitos países produtores de trigo – Estados Unidos, Canadá, Argentina (que acabou de aumentar suas cotas de exportação), Austrália (que já teve uma colheita recorde de trigo em 2021-2022) e Índia – poderiam facilmente aumentar a produção onde há mercado para mais trigo.
E tanto a Índia como os Estados Unidos têm grandes reservas domésticas de trigo que poderiam liberar, caso quisessem. Como apontou a agrônoma Sarah Taber: “A última coisa que você faz em uma crise alimentar é trazer notícias vagas e terríveis sobre fome para uma sala cheia de pessoas poderosas”.
O verdadeiro problema, como Taber e alguns não se cansam de explicar, está na distribuição e não na oferta. Por razões geográficas óbvias, era mais fácil e barato exportar trigo para o norte da África desde o Mar Negro do que da Austrália. Mas não é isso que vai acontecer, pelo menos no curto e, provavelmente, no médio prazo, a menos que as Nações Unidas e outros terceiros interessados consigam que a Rússia e a Ucrânia aceitem que seus grãos sejam exportados em meio a uma guerra brutal que está se tornando cada vez mais terrível e pode incluir em breve a tentativa russa de tomar Odessa e outros portos do Mar Negro.
A menos que um milagre aconteça, o desafio para aqueles que procuram evitar o pior em países que dependiam tanto da Rússia e da Ucrânia é dar crédito a seus governos para lidar com o cruel aumento dos preços dos grãos e fertilizantes – o que pode ser feito imediatamente, se a vontade política para isso existir – e mudar substancialmente as cadeias globais de suprimentos.
Deveria ser óbvio que essa mudança radical nas cadeias globais de suprimentos é necessária. O que pode ser menos óbvio é que é eminentemente viável. Basta olhar para a forma como a Europa está firmemente se desvinculando da energia russa, que, apesar de toda a má fé e dos duplos jogos envolvidos, especialmente por parte do governo alemão, leva o continente em uma direção que teria parecido inconcebível há um ano. Eppur si muove, disse Galileu. E ainda assim se move.
Claro, isso não significa que vai se mover. Apesar do meu pessimismo, suponho que se possa considerar um sinal de progresso moral a atenção que esses efeitos potencialmente catastróficos da guerra russo-ucraniana estão recebendo da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A guerra, afinal, começou há menos de quatro meses no momento em que escrevo estas linhas e nas capitais europeias e em Washington – que são na prática cobeligerantes contra Moscou da mesma forma que os Estados Unidos foram cobeligerantes com a Grã-Bretanha contra a Alemanha de Hitler muito antes de entrar na guerra – o foco na Ucrânia é compreensivelmente visto como primordial.
Talvez se houvesse um governo global, ou mesmo um sistema global digno desse nome, os efeitos colaterais da guerra entre a Rússia e a Ucrânia seriam considerados tão graves que potências externas interviriam para detê-la, como se esperava que fizessem em 1945 sob os estatutos das Nações Unidas. Mas não vivemos em tal mundo, e não há razões empíricas (embora haja esperança) para pensar que algum dia viveremos esse tempo.
Nas últimas semanas discute-se muito sobre se estamos entrando em um período de “desglobalização”, cujas causas são geralmente atribuídas à crescente tensão entre os Estados Unidos e a China, sobre se isso conta ou não como uma Segunda Guerra Fria, e sobre as lições extraídas da pandemia sobre a fragilidade e a excessiva dependência de longas cadeias de suprimentos globais.
No entanto, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia ensina uma lição diferente, que é que o retorno da guerra ao seu papel central na política e na história mundiais traz consigo algo novo: uma forma particularmente maligna de globalização, onde a guerra em um lugar que não poderia estar mais longe das suas preocupações, das preocupações da sua família ou da sua nação podem acabar fazendo você morrer de fome.
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A globalização dos danos colaterais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU