24 Junho 2022
Uma tarde escaldante de junho nas colinas do sul do Piemonte, depois de muitos meses de chuva zero e um inverno sem neve. Um habitante recorda os passeios ao lago de montanha de Ceresole que agora é uma pedreira. Falando sobre a seca com um pedreiro do norte da África, ele lhe pergunta: "Mas pelo menos lá na sua terra chove?" A resposta é um "não" desolado.
A reportagem é de Marinella Correggia, publicada por Il Manifesto, 23-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em plena década da ONU de ação para a água, os últimos sete anos foram desastrosos em todo o mundo, informa o último Estado do Clima Global da Organização Meteorológica Mundial (Omm). As mudanças climáticas antrópicas tornam o fenômeno da seca mais provável e grave, que é um dos motores da aridez dos solos, da fragilidade do ecossistema e da instabilidade social.
As águas doces poderão ser uma solução para nos salvar, mas sob certas condições. Reduzir as emissões que alteram o clima. Proteção dos ecossistemas e cuidado das bacias hidrográficas. Restauração do solo.
Melhores sistemas de cultivo e outro modelo alimentar. Reduzir, reutilizar, reciclar as águas nos usos civis. Coleta de água da chuva. Impõe-se um conjunto de normativas, tecnologias, escolhas de produção e consumo, comportamentos; para usos agrícolas, industriais, energéticos e civis.
Autor do ensaio "Sete" (Sede, em tradução livre, 1992), Giorgio Nebbia, ambientalista e cientista de commodities, foi claro: "Uma tonelada de água per capita por ano pode ser considerada indispensável para beber, lavar e cozinhar. Além desse volume, começa a discriminação entre as classes.” E entre os países. No Sahel, o presidente Thomas Sankara lutou para garantir "dez litros de água potável para cada pessoa por dia"; na Itália, a média nacional é superior a 200 litros - mas, dependendo da área, varia da penúria até as piscinas privadas e gramados anglófilos.
É possível uma "contração e convergência" em torno do consumo direto de 40-50 litros per capita por dia, um direito mínimo estabelecido pela ONU. E a seca leva ao revival dos eternos 3R's - reduzir, reutilizar, reciclar. O cuidado com a água, tarefa de todos, começa com a eliminação de usos inúteis e perdas, um enorme reservatório de onde buscar recurso.
De acordo com o relatório das Estatísticas do Istat sobre a água (2019-2021), mais de 36% da água introduzida na rede para uso civil é perdida; o resto se perpetua a jusante... mesmo com a ausência de bacias sob cada torneira, necessárias para o sagrado duplo uso.
Mas o consumo de água doce está escondido em todos os produtos. Em 1993, o geógrafo Tony Allan introduziu o conceito de "água virtual": aquela usada - e poluída - para produzir alimentos (a maior parte do consumo global) e outros bens de consumo, incluindo energia. Anos depois, Hoekstra e Mekonnen desenvolveram a ideia de uma “pegada hídrica” (articulada em três componentes: verde, azul, cinza dependendo da origem). E estimam em mais de 2.300 bilhões de metros cúbicos por ano os fluxos internacionais de água ligados ao comércio. Ao contar a água virtual, o consumo per capita dos italianos ultrapassa os 6.000 litros por dia.
A rede Water footprint network (“para um uso justo e inteligente da água no mundo”) disponibiliza vários estudos e um medidor - valores indicativos - para os produtos.
Exemplos: um kg de carne bovina requer até 15.000-20.000 litros de água, principalmente para produzir ração; um kg de carne de porco, 6.000 litros; um kg de trigo, 1.000 litros; um kg de açúcar, 1.700 litros; um kg de maçãs, 822 litros; um kg de queijo, 3.000 litros, um kg de chocolate, 17.000 litros. Uma xícara de café? 130 litros.
É uma questão de modelos agroalimentares e escolhas de consumo: o sindicato internacional La Via Campesina há muito está engajado na agroecologia que, como a agricultura natural, economiza água e não a polui. A par da conversão e das produções baseadas em plantas, cuja pegada hídrica é muito inferior, impõe o retorno a culturas que desde sempre dão bons resultados em climas áridos: milheto, sorgo, mandioca, leguminosas, amendoim...
Para economizar água: reutilizar os duráveis, deixar os descartáveis, economizar energia. A Water Foorprint Network também leva em conta o peso da água na produção de energia, incluindo os agrocombustíveis; mais uma razão para poupá-la - e o clima agradece. E os têxteis? Para produzir um jeans de algodão, cerca de 11.000 litros de água são necessários (irrigação, evaporação, diluição das águas residuais do processamento); uma camiseta de poucas centenas de gramas requer 2.700 litros. Uma tonelada de couros curtidos precisa de 800.000 litros de água (no ciclo completo). Mas aqui está: em todo o mundo, um depósito de roupas, tecidos e fios já prontos está esperando para voltar à vida na reciclagem e reaproveitamento; trabalho puro para ser bem remunerado, sem o ônus dos recursos físicos. A reciclagem também economiza água, basta pensar no papel.
Diante do paradoxo da água virtual necessária para produzir e transportar as inúteis garrafas plásticas ou vidro da água industrial, torna-se evidente que do desperdício de água atrelado a embalagens e mercadorias descartáveis se sai com uma revolução no modelo dos consumos. O desenvolvimento de tecnologias que não gastam água não é suficiente: abandonar o que não é essencial talvez seja uma escolha obrigatória para respeitar também a água invisível.
Indicadores e vítimas invisíveis da crise, os animais selvagens e a biodiversidade sofrem tanto como seres individuais, animais e plantas, quanto como espécie. Basta pensar nos organismos ligados às águas internas.
Andrea Agapito, biólogo e gerente da Rete e Oasi do WWF Italia explica: "A seca de muitas pequenas e grandes áreas úmidas, entre março e maio, impediu ou reduziu drasticamente a reprodução de várias espécies de anfíbios, algumas das quais em estado de conservação já crítico, como o Pelobate fosco insubrico, a Rana latastei ou o tritão de crista italiano”. Pior ainda para aqueles que vivem debaixo d'água: “Não os vemos, mas desaparecem. A tendência de extinção de espécies de água doce é quatro vezes maior do que a de espécies terrestres ou marinhas; a cada década, cerca de 4% desaparecem. Houve mortes de peixes em trechos de rios e pântanos que ficaram completamente secos."
Algumas espécies não nativas resistem melhor, em detrimento de espécies nativas como os mexilhões de água doce, que estão se tornando cada vez mais raros devido à degradação ambiental e sua condição de "filtradores".
Para disponibilizar água aos animais silvestres, uma ajudinha está ao alcance de todos, talvez na forma de recipientes de água colocados à sombra, presos com lastro próximo às áreas verdes. Para as aves, Marco Dinetti, responsável pela ecologia urbana da LIPU, sugere: “Disponibilizar um pouco de água nos períodos de seca serve às aves não só para beber, mas também para manter a sua plumagem em ordem em todas as estações. O mais simples é pegar um prato para vasos e colocar dois dedos de água com duas pedras”; tudo fora do alcance dos gatos, e trocar a água para não haver proliferação de mosquitos. As andorinhas, além disso, precisariam de um pouco de lama para construir os ninhos... O WWF está trabalhando no projeto One million ponds (Um milhão de lagoas): zonas úmidas para restaurar a biodiversidade, mas que também servem como poços de água para beber.
No Quênia, alguns anos atrás, no ápice da seca, o ativista Patrick Kilonzo começou a levar água para o parque Tsavo, onde as poças de abastecimento haviam secado; continua até hoje, também com projetos para melhorar a coexistência entre fauna local e comunidades humanas.
Com certeza, na África, cuidar da vida selvagem e da biodiversidade pode parecer um luxo. Num cenário complexo e atormentado, explica Isabella Pratesi que dirige o programa de conservação do WWF, “com o stress hídrico, além da sede e competição pela água entre animais domésticos e selvagens, aumenta a caça ilegal para fins de sobrevivência humana, e se agravam os conflitos". Mas, ao mesmo tempo, “onde os ecossistemas são recuperados e a biodiversidade é preservada, os recursos hídricos também são mantidos para as comunidades humanas”.
É necessária uma abordagem de cuidado: “Estamos a renaturalizando em muitas áreas: Tanzânia, Quênia, Bacia do Congo, Indonésia, Índia... A natureza ajuda, porque vive da água e por isso faz tudo para a conservar. Os ecossistemas florestais têm um efeito esponja. A natureza e as pessoas se pacificam. Mas é preciso agir a tempo, com paciência.”
Revitalizar as técnicas tradicionais de coleta de água é outra sabedoria paciente de que dão prova comunidades em muitas áreas áridas. Por exemplo, o indiano Anil Agarwal imaginava "uma aglomeração de democracias ecológicas coletoras de água da chuva". A essas técnicas em âmbitos rurais e urbanos, o Centre for Science and Environment (Cse) de Nova Délhi dedicou muitos projetos e pesquisas, além do belíssimo vídeo-spot Rainwater harvesting.
Enquanto isso, no árido Rajasthan, há anos o Barefoot College, especializado em energia solar, água e educação para as aldeias, colocou sistemas de armazenamento de água da chuva nos telhados de mais de mil escolas.
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Seca, a tragédia que nos obriga a repensar o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU