14 Junho 2022
O mundo está rapidamente se tornando um supermercado global de armas. O dado mais claro é fornecido pelo relatório anual recém-publicado pelo Sipri (Stockholm International Peace Research Institute), segundo o qual em 2021 os gastos militares mundiais ultrapassaram amplamente o limite de dois trilhões de dólares (2.113 bilhões) e marcaram - em anos de Covid, onde tudo estava imóvel e era preciso cavar nos cofres estatais e transnacionais para encontrar fundos para as vacinas e a recuperação econômica - um crescimento de 0,7% em relação a 2020 e um aumento de 12% na última década.
Quem paga a conta são, acima de tudo, os países que já estão sobrecarregados por situações de subdesenvolvimento e instabilidade, em que armamentos de todos os tipos são descarregados em aterradora abundância. O Iêmen é um deles.
A reportagem é de Luca Attanasio, publicada por Confronti, junho de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde que, em março de 2015, uma coalizão liderada pela Arábia Saudita com o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido, na qual os Emirados Árabes Unidos, Egito, Marrocos, Jordânia, Bahrein, Sudão e Kuwait foram gradualmente tomando parte, inicia a operação Decisive Storm para derrotar os houthis – a facção pró-iraniana e xiita que no meio tempo tinha tomado posse de Sana'a, a capital -, contrapor a crescente influência iraniana na área e restabelecer o governo do presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi. O país mergulhou em uma espiral de guerra que durante anos o tornou uma das principais emergências humanitárias do mundo, mas ao mesmo tempo uma crise negligenciada, se não completamente esquecida.
Arábia Saudita (Fonte: Wikimedia Commons)
Se a situação é tão grave, é devido a uma série de fatores decisivos. Em primeiro lugar, o fato de a Arábia Saudita ser o maior importador de armas do mundo. Em 2020, atingiu seu recorde ao gastar US$ 57,5 bilhões, 8,4% de seu PIB, em armas e estruturas bélicas, além de manter um dos exércitos mais poderosos da região. Entre os países que as vendem, em primeiro lugar estão os Estados Unidos, que fornecem à Arábia Saudita 79% das suas armas. Segue-se o Reino Unido, 9% e a França 4%. O apoio militar e político, o envio de armas e tecnologia, o fornecimento de treinamento e outras assistências do Irã e até do Hezbollah libanês aos houthis, por outro lado, desempenharam um papel decisivo e fizeram do confronto uma guerra total com resultados catastróficos.
Segundo as Nações Unidas, o conflito iemenita já matou 377.000 pessoas (que, na ausência de acordos, poderia chegar a 1,3 milhão), dos quais cerca de 9.000 civis, direta e indiretamente por fome e doenças.
Um grande percentual de mortos são crianças, algumas das quais, calcula-se cerca de 2.000, foram recrutadas por rebeldes houthis para lutar. Dos 30 milhões de habitantes, além disso, 20 precisam de assistência humanitária urgente, 14,5 não têm alimento suficiente e 4 milhões estão “deslocados” internos ou externos. Quase metade das crianças menores de cinco anos (47,5%) sofre de desnutrição crônica. O balanço é particularmente atroz quando se acrescenta o detalhe que com o Iêmen, basicamente, ninguém se importa muito e a crise prossegue já há mais de sete anos na total indiferença.
Foto: Felton Davis | Flickr CC
Enquanto isso, o país se dividiu em dois com o grupo rebelde dos houthis, que assumiu o controle de uma grande área ao redor da capital Sana'a desde 2014. Sete anos após o lançamento da campanha liderada pelos sauditas, a maioria das terras altas do norte do Iêmen, assim como a própria Sana’a, permanecem firmemente sob a liderança dos pró-iranianos. Inútil dizer que vários grupos armados se inseriram no vácuo de poder estável e no caos, entre os quais a Al-Qaeda ou o Conselho de Transição Sul (Stc), uma milícia apoiada pelos Emirados Árabes Unidos.
Por outro lado, do sul onde se ergue a importante cidade portuária de Aden, sede temporária do governo internacionalmente reconhecido do Iêmen, a leste até a fronteira com o Omã, o país está sob o controle ou influência do governo.
Iêmen, com Sana’a ao norte e Aden ao sul (Fonte: Google Maps)
Segundo dados do Yemen Data Project, a coalizão liderada pela Arábia Saudita realizou mais de 24.000 ataques aéreos desde 2015. Os houthis, por sua vez, também intensificaram os ataques na fronteira. Como relata o Atlante Treccani, em 17 de janeiro a cidade dos Emirados Abu Dhabi foi atingida por um ataque reivindicado pelo grupo rebelde xiita Ansarullah, muitas vezes associado aos houthis.
Abu Dhabi (Fonte: Wikimedia Commons)
Trata-se de um perigoso precedente de invasão direta nos Emirados Árabes Unidos, que gera temores de um alargamento e que se soma aos contínuos ataques de mísseis a fontes energéticas e militares em território saudita. O ataque em Abu Dhabi, no entanto, com três mortos e uma dúzia de feridos, confirma a intenção dos rebeldes de ampliar seu raio de ação: conforme relatado pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), o número de ataques houthis contra alvos predominantemente civis na Arábia Saudita dobrou nos primeiros nove meses de 2021 em comparação com o mesmo período de 2020.
O estado de tensão latente, as incursões e invasões, os combates contínuos em várias zonas do país, colocam em perigo o processo de negociação que tinha aberto brechas de paz mais credíveis.
Entre os sinais destinados a criar uma maior distensão estava a escolha do presidente Joe Biden em fevereiro de 2021 para remover os houthis das fileiras dos grupos terroristas - manobra que irritou os Emirados que estão pedindo que o presidente dos EUA reconsidere, especialmente após o ataque de Abu Dhabi – assim como a do presidente do Iêmen, Abd-Rabbu Mansour Hadi, do início de abril passado, para demitir seu controverso vice, Ali Mohsen al-Ahmar, provavelmente a pedido das Nações Unidas preocupadas com as negociações paralisadas, um alto oficial sunita conhecido por sua dura conduta anti-houthi em campanhas militares contra seus postos avançados. Hadi depois criou um conselho presidencial que assumiu em abril e lhe confiou a tarefa de mediar uma solução.
A ação de Hadi segue a trégua de dois meses acordada entre os houthis e as forças da Coalizão Internacional liderada pela Arábia Saudita e em operação desde 2 de abril. O cessar-fogo reacendeu imediatamente as esperanças da população exausta, porque é o primeiro desde 2016.
Marib (Fonte: Wikimedia Commons)
Infelizmente, algumas semanas depois, a trégua sofreu alguns choques e fontes relatam repetidos ataques na área de Marib pelos houthis. Na cidade, a cem quilômetros a leste de Sana'a, os rebeldes intensificaram as incursões para atacar um posto estratégico do governo por causa das jazidas energéticas. Comparados aos ataques anteriores, estes de Marib felizmente têm um nível de intensidade muito menor.
Igualmente despertam perplexidade sobre as reais intenções do grupo pró-iraniano.
Fontes dentro das Nações Unidas, no entanto, permanecem otimistas e se dizem positivas sobre o processo de paz desencadeado desta vez. A trégua, conforme relatado pela Al Jazeera, vigora na maior parte do país e o Conselho Presidencial acredita na solução diplomática.
No entanto, é preciso agir rapidamente. Além de todos os infinitos problemas aos quais se soma uma miséria endêmica que faz do Iêmen um dos estados mais pobres do mundo, devem ser consideradas também as inúmeras emergências sanitárias que o afetam. De fato, está lutando contra uma quarta onda de Covid e, em decorrência ao conflito, registrou o ressurgimento de doenças fáceis de prevenir, mas que infelizmente semeiam vítimas como poliomielite, sarampo e difteria. O bloqueio de combustível decidido pela coalizão liderada pela Arábia Saudita está criando mais problemas e paralisando o já frágil sistema de saúde do Iêmen.
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Iêmen. A guerra esquecida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU