26 Abril 2022
Raquel Rolnik é uma professora, arquiteta e urbanista brasileira que luta há décadas para tornar a moradia um direito e não uma mercadoria. Rolnik promoveu importantes políticas de habitação popular no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil. Entre 2003 e 2007, foi secretária nacional dos programas urbanos do Ministério das Cidades. E em maio de 2008, em plena crise financeira, o Conselho de Direitos Humanos da ONU a nomeou Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada.
Em conversa com o Página/12, Rolnik defende a garantia de “acesso a uma moradia como porta de entrada para a educação, saúde e cultura”. A professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo denuncia que “todo o marco de flexibilização no mundo do trabalho está dialogando com um marco de flexibilização no mundo das moradias” e reivindica a tomada de terras como “libertação da submissão colonial ao capital”.
A entrevista é de Guido Vassallo, publicada por Página/12, 25-04-2022. A tradução é do Cepat.
Em seu último livro, ‘Guerra dos Lugares’, utiliza o conceito de “colonialidade do poder”. Como o problema da moradia está relacionado ao colonialismo?
Penso que podemos considerar esse assunto a partir de dois pontos de vista. O primeiro é entendendo a colonização como ocupação do espaço, entendendo o espaço como algo do qual se obtém renda, mercantiliza-se como ativo financeiro. Mas na América Latina também formamos uma visão de cidade e de modelo de cidade a partir de um paradigma cultural e da experiência de vida europeia, branca, norte-americana, baseada em certos modelos de organização do espaço, de relação entre o construído e a natureza.
A forma como nós humanos nos relacionamos uns com os outros e com a natureza é a melhor forma de proteger e promover a vida? A experiência da pandemia nos mostrou que não, absolutamente não, e que então é preciso abrir o leque de quais são os modelos, quais são as relações com o território que outras culturas já produziram e experimentaram.
Frente a essa condição mercantilista da moradia, você defende que a ocupação de terras é uma ação de resistência.
Sim. Quando falo em abrir espaços na cidade, espaços não financeirizados, falo sobre tentar abrir territórios, pedaços da cidade onde a lógica de organização e vínculo entre as pessoas e o território seja definida a partir das necessidades da vida e não das necessidades de rentabilidade do capital.
A ideia é que podemos experimentar outros modelos de organização da cidade que não sejam apenas a propriedade individual registrada na distribuição de um apartamento que é sala, cozinha, quarto da filha e quarto do filho. Uma fórmula arquitetônica que, na verdade, responde pouco às necessidades das pessoas.
Penso que a partir do feminismo, das lutas antirracistas, existe toda uma formulação para repensar esses modelos de cidade. Cada tomada e cada ocupação é absolutamente importante porque é uma experimentação concreta de outras formas de fazer cidade e fazer vida, mas, ao mesmo tempo, é uma ocupação do território que o liberta da submissão colonial ao capital.
Na Argentina, principalmente na cidade de Buenos Aires, grande parte da população não tem outro remédio a não ser alugar. Isso está relacionado à sua concepção do aluguel como “a nova fronteira de financeirização da moradia”?
A crise financeira hipotecária de 2008 foi o resultado da financeirização da moradia, foi produto da transformação da moradia com um bem social em mercadoria e ativo financeiro. Após a crise financeira hipotecária, o mesmo setor de fundos de investimento e pensão que se envolveu na promoção em massa de crédito imobiliário para moradia e produziu a crise, tornou-se o que a literatura chama de corporate landlords: fundos de investimento que compraram conjuntos habitacionais em grande escala, cujas hipotecas foram executadas, e implementaram um setor corporativo de aluguel digitalizado capaz de gerenciar estoques de aluguel. Este setor corporativo está transformando a moradia em uma mercadoria e um serviço. E a gestão desse serviço é o novo negócio.
Na Argentina, está sendo promovido um imposto sobre moradias ociosas para lutar contra a especulação. Existe algo semelhante no Brasil?
A Constituição de 1988 estabelece a ideia de que todas as construções e propriedades urbanas devem ter uma função social e as que não a cumpram podem sofrer sanções. Isto foi formulado de um modo muito geral, em 1988, e dependia de uma legislação federal nacional para ser aplicada pelas cidades. Só em 2001 pôde se tornar lei. A sanção seria progressiva em termos de uma notificação com prazo para que a propriedade pudesse ser utilizada, depois um imposto predial progressivo ao longo do tempo, e em seguida, finalmente, a desapropriação com pagamento em títulos da dívida.
O que aconteceu com esse mecanismo? Na verdade, pouquíssimas cidades o introduziram. São Paulo começou a implementá-lo em 2014. Só neste ano aconteceriam as primeiras desapropriações com pagamento em dívida. São Paulo notificou cerca de mil imóveis que não estavam cumprindo sua função, mas a grande maioria se transformou em condomínios de luxo e em comércios.
A problemática da moradia é um tema importante nesta campanha eleitoral no Brasil?
Penso que há uma crise habitacional muito clara no Brasil, quase uma situação de emergência habitacional. Se você circula pelas grandes cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, o número de pessoas vivendo nas ruas é algo absolutamente impressionante.
Menos visível, mas presente e já com um perfil de pessoa vivendo na rua muito diferente daquele que podemos chamar de “tradicional”, que é predominantemente masculino e solteiro, agora, são vistas famílias inteiras, mulheres, crianças na rua, em pequenos barracos. Isso se dá em massa e é a fase mais visível da crise habitacional, uma expansão dos assentamentos precários nas periferias da cidade.
Essa problemática não está muito presente no debate eleitoral que está apenas começando. Penso que isso será muito mais forte nos próximos meses e espero sinceramente que surja uma proposta emergencial a partir da alternativa que Lula representa.
Você menciona o caso do Uruguai como um exemplo de sucesso na região.
Penso que a experiência da FUCVAM (Cooperativas de Habitação por Ajuda Mútua) é muito importante e muito significativa para a América Latina e o mundo, porque o Uruguai, há mais de 30 anos, impulsiona e fomenta um modelo cooperativo de moradia.
A diferença entre o modelo cooperativo de moradia e um modelo de crédito hipotecário para a propriedade individual é que o modelo cooperativo é muito mais protegido e bloqueado à financeirização, porque é muito mais complexo para o capital circular, entrar e sair pela terra e as construções quando temos um controle social mais amplo e mais complexo do espaço construído.
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O setor corporativo está transformando a moradia em uma mercadoria. Entrevista com Raquel Rolnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU