Jeremias (Jr 7,23-28): a fé, o abandono de Deus e o crescimento dos evangélicos

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28 Março 2022

 

"Que o nosso Deus e o de Jeremias, Aquele que acolhe, cuida, defende, acompanha e integra, suscite, em nosso tempo, profetas e profetisas como Jeremias, os quais nos recoloquem no caminho do ouvir Deus e revigore a nossa fé libertária, em tempos de falsos profetas e messias", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Jeremias (Jr 7,23-28) desta quinta-feira, terceira semana da Quaresma

 

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze, sendo o último livro O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o artigo. 

 

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é tirado de Jr 7,23-28. Trata-se do lamento de Deus, na voz de Jeremias, em relação ao comportamento dos judeus que não ouviram a Sua voz, não aceitaram os profetas, perderam a fé e seguiram as perversidades de seus pensamentos. Estamos diante de três pontos: o não ouvir Deus, o profetismo e a fé. A nossa reflexão procurará relacionar a profecia de Jeremias com a fé, o abandono de Deus e o crescimento dos evangélicos no Brasil.

 

A voz profética de Jeremias ilumina o momento atual do Brasil, a partir da qual ousemos perguntar: Onde estão os bispos e padres profetas? Acabaram ou se aliaram ao poder? Por que evangélicos e católicos apoiam projetos políticos que não condizem com a Boa-Nova do evangelho? Como anda a nossa fé? Quais razões justificam o crescimento dos evangélicos no Brasil? A profecia, berço da Teologia da Libertação, acabou? Jeremias tem algo a nos dizer hoje?

 

Jeremias foi um profeta sensível ao sofrimento de seu povo, mas incompreendido por causa de sua visão além do tempo. Homem de profunda piedade e de crise, optou por não se casar para dedicar-se ao profetismo, entre os anos de 626 e 587 a.E.C., em Jerusalém. Cidade que ele viu ser invadida e destruída a mando de Nabucodonosor, rei da Babilônia. Viu lideranças da religião judaica serem levadas cativas para a Babilônia, atual Iraque. Por entender que o povo deveria passar por um momento de sofrimento para, então, retomar o caminho da fé e da aliança com Deus, Jeremias apoiou essa crueldade do opressor. Sua ação profética surtiu efeito. A religião judaica se refez das cinzas, nos cinquenta anos de exílio.

 

Jeremias recebeu de Deus a missão de destruir, arrancar e plantar a justiça divina (Jr 1,10). Como medo de ter que profetizar, Deus diz a Jeremias: “Não tenhas medo deles!” (Jr 1,17). Antes do exílio babilônico, Jeremias profetizou contra os tribunais com seus juízes corruptos que não tinham interesse pela causa do órfão, da viúva e do pobre (5,28); os comerciantes que se enriqueciam às custas dos pobres (5,27); e os sacerdotes que usavam a religião em proveito próprio (5,31), colaborando com a injustiça (8,4-9,25).2 Qualquer semelhança com a nossa realidade é mera coincidência!

 

Jeremias estava convicto de que essa situação era a prova cabal de que seu povo havia abandonado a fé no Deus que o tirou da escravidão do Egito e com ele fez uma aliança. Por isso, o exilio era um castigo merecido, pois “esta é a nação que não escutou a voz do Senhor seu Deus, e não aceitou correção. Sua fé morreu, foi eliminada de sua boca” (Jr 7,28).

 

Esse não ouvir Deus e os profeta, assim como a perda da fé dos conterrâneos de Jeremias têm muito a ver com o Brasil atual. Vejamos. Após o censo de 2010, publiquei um artigo intitulado: “Um Brasil menos católico” [2]. Éramos ainda 64,4% da população. O que dirá o censo de 2022? Estudiosos afirmam que em 2032, os evangélicos superarão os católicos. Não se trata de lamentar, mas de analisar esse fato a partir dos fatores social, religioso e político. Estamos assistindo a um acirramento político entre cristãos de esquerda, erroneamente taxados de comunistas, e os de direta. Invasão de templos religiosos, perseguição de religiosos etc.

 

A debandada católica para o pentecostalismo é por causa da ausência de profetismo? Não parece. Nesse sentido, é comum ouvir que a Teologia da Libertação, que apresentava um cristianismo profético morreu. Seria também por causa da pregação dos pastores? Também não. Essa migração se justifica pela ascensão social que ela confere aos pobres católicos que saíram das roças e foram parar nas periferias das cidades, onde não receberam e continuam não recebendo a atenção devida dos padres, que insistem, apesar dos apelos do Papa Francisco, em permanecer nas sacristias das catedrais. Por outro lado, se isso tivesse ocorrido o Brasil continuaria católico? Também não. A questão é mais econômica e social que religiosa. Está surgindo uma nova classe social brasileira a partir dos pobres, pretos e da periferia que compõem as igrejas evangélicas. Ser pastor ou participar de uma Igreja evangélica, na periferia abandonada, é ascensão social. [3]

 

Padres mediáticos que fazem sucesso são os que apregoam a espiritualidade devocional sem compromisso social libertador. A juventude católica é também devocional. O que motiva um católico a rezar a novena de São Miguel Arcanjo às 4h da manhã? Seria a ausência de espiritualidade que o cristianismo libertador de origem deixou escapar, mas que os evangélicos, entendendo a veia devocional do povo brasileiro, souberam reinventar? Parece que sim, mas nisso não tem nada de profetismo. Pastores políticos ocupam espaço em Brasília, mas a Igreja católica insiste em ser apolítica. Nas eleições passadas, enquanto os políticos nascidos no seio da Igreja da Libertação atacavam as lideranças evangélicas de mídia nacional, o outrora católico, ultraconservador e atual presidente do Brasil venceu as eleições com um jargão bíblico: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32), associado à defesa da família tradicional. Trata-se, no caso, de uma leitura fundamentalista da Bíblia com o objetivo manipular Deus em nome da fé e enganar os de boa fé. “Deus acima de todos!”, mas não é esse o Deus de Jeremias.

 

Que o nosso Deus e o de Jeremias, Aquele que acolhe, cuida, defende, acompanha e integra, suscite, em nosso tempo, profetas e profetisas como Jeremias, os quais nos recoloquem no caminho do ouvir Deus e revigore a nossa fé libertária, em tempos de falsos profetas e messias.

 

 

Notas:

 

[1] FARIA, Jacir de Freitas. Profetas e profetisas na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2002 p. 55.

[2] FARIA, Jacir de Freitas. Um Brasil menos católico. Disponível aqui. Acesso em 16 fev. 2022.

[3] SPYER Juliano. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração, 2020, p. 23.

 

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