20 Novembro 2014
A perspectiva mais plausível para responder à pergunta sobre a origem do mal é a mesma que sabe responder à origem do bem, isto é, aquela que remete à mistura original de logos + caos, que constitui o mundo na sua concreta efetuabilidade e que impõe um novo modo de pensar Deus.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 19-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Umberto Veronesi [oncologista italiano] explicou por que não crê em Deus: a perda da fé por causa da presença do mal sobre a qual ele falou neste jornal é uma experiência comum a muitos, descrita em inúmeras obras filosóficas e literárias do passado e fonte de perene inquietação para cristãos.
Trata-se, de fato, de uma experiência peculiar do mundo ocidental formado pelo cristianismo, porque, nos termos contados por Veronesi, ela não poderia acontecer nem no Islã, nem no hinduísmo, nem em nenhuma outra tradição religiosa.
Para negar Deus, tal ateísmo se alimenta do argumento do bem, no sentido de que a presença do mal no mundo está, por isso, em aberto contraste com um Deus cuja essência é pensada como inteiramente boa, como amor, assim como onipotência.
Se Deus é totalmente bom e nos ama, e se, ao mesmo tempo, é onipotente, o mal no mundo não deveria existir; mas, visto que o mal existe, quem não existe é o Deus bom e onipotente de que fala o cristianismo: eis a conclusão de Veronesi e de muitos ocidentais antes dele.
Ao invés, para as perspectivas nas quais Deus, além de ser bem, é também capacidade de mal, a presença do mal não contradiz de modo algum a sua existência: no máximo, é apenas uma das múltiplas manifestações de uma suma e inescrutável onipotência à qual é preciso se conformar. Portanto, não é por acaso que o ateísmo como fenômeno de massa surgiu no Ocidente e não em outros lugares.
Escrevia Simone Weil, uma das mais afiadas inteligências místicas do nosso tempo, no fim de 1942: "Sinto uma dilaceração, tanto na inteligência, quanto no centro do coração, que vai se agravando sem parar por causa da incapacidade de pensar junto, na verdade, a desventura dos homens, a perfeição de Deus e o vínculo entre a uma e outra".
Essa é a verdadeira aporia de que sofre o cristianismo. Que, aliás, não demonstra que o cristianismo é falso, porque o que é aporético e contraditório é a própria existência, de modo que todo credo religioso ou filosófico que atesta a contradição serve à vida, enquanto aqueles sistemas que buscam, em primeiro lugar, a coerência lógica são apenas doutrinas e ideologias artificiosas.
Escreveu o jovem Hegel: "Contradictio est regula veri, non contradictio falsi", a contradição é a regra do verdadeiro; a não contradição, do falso.
O ponto é que há dois dados de fato, ambos verdadeiros, mas inconciliáveis com o estado atual da mente humana (um pouco como a teoria da relatividade e a mecânica quântica, ambas experimentadas inúmeras vezes, mas teoricamente inconciliáveis uma com a outra): a existência efetiva do mal, tanto físico, quanto moral; e a existência efetiva do bem, tanto físico, quanto moral.
Trata-se de pensar juntos os dois dados, não só um deles. Era o que fazia Boécio na sua cela de Pavia antes que Teodorico o executasse: "Se Deus existe, de onde vêm os males? E de onde vêm os males, se Deus não existe?" (Consolação da Filosofia I, 4).
Se Deus existe e é aquele amor onipotente de que fala o cristianismo, por que, citando Veronesi, "uma criança é invadida por células malignas que a consomem dia após dia?". Mas, se Deus não existe, de onde vêm as mãos do médico que a tratam, a ciência que guia a sua mente e a paixão moral que o leva a operar?
Alguns poderiam responder "do homem e da sua razão", e diria bem, mas não seria um argumento conclusivo, porque resta a explicar de onde vêm o homem e a sua razão. Se considerarmos o ponto de partida do percurso cósmico como 13,82 bilhões anos atrás, e o ponto em que chegamos hoje em termos de acúmulo de organização e complexidade, é muito difícil atribuir tudo a uma mera sucessão de felizes casualidades, tão enormes são as probabilidades contrárias ao surgimento da vida e da inteligência no cosmos: tal atribuição requer um investimento de energia mental ao menos igual ao que pensa Deus como hipótese.
A realidade é que, diante do dado da vida (que é: câncer + mãos que tratam, caos + logos), parecem insustentáveis ambos os dogmatismos: o daqueles que negam toda forma de lógica ao governo do mundo e o daqueles que veem tal lógica em todos os eventos, como faz o atual Catecismo católico, ao dizer que "Deus permite que os males aconteçam para deles tirar um bem maior" (art. 412), apresentando um sofisma do ponto de vista teórico e uma indignidade do ponto de vista moral.
A perspectiva mais plausível para responder à pergunta sobre a origem do mal exclui que a resposta possa ser Deus, no sentido de que Deus queira diretamente ou permita indiretamente os eventos negativos individuais; exclui que possa ser o homem como autor do chamado pecado original, porque o homem é a primeira vítima da indeterminação do ser que produz o mal, não o autor; e exclui, por fim, que possa ser uma natureza totalmente desprovida de um fim (como desejaria o materialismo ateu), porque a natureza, além do câncer, também produz a mente e as mãos que tendem para o bem.
A perspectiva mais plausível para responder à pergunta sobre a origem do mal é a mesma que sabe responder à origem do bem, isto é, aquela que remete à mistura original de logos + caos, que constitui o mundo na sua concreta efetuabilidade e que impõe um novo modo de pensar Deus.
Com base nisso, é preciso superar os baixios da dogmática tradicional destinados inevitavelmente a levar muitas pessoas ao ateísmo, sem cair, com isso, no niilismo que vê a natureza apenas como força cega desprovida qualquer direção e que, portanto, se vê incapaz de fundamentar a ética do cuidado na base da medicina e, em geral, do viver social.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Umberto Veronesi e o mal que faz perder a fé em Deus. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU