A parábola do filho pródigo na tradição bizantina: “Dá-me a tua primigênia beleza”

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23 Março 2022

 

"A parábola do filho pródigo, com a imagem do 'caminho de afastamento-retorno' indica este fio condutor da Quaresma e da própria vida cristã: da separação ao retorno, do pecado à graça do perdão, do paraíso do qual fomos expulsos ao paraíso ao qual o próprio Senhor nos leva de volta pela mão na noite da Páscoa".

 

O comentário é de Dom Manuel Nin, exarca apostólico da Igreja Católica Bizantina Grega, em artigo publicado por Il Sismografo, 14-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A tradição litúrgica bizantina ao longo do período quaresmal tem muitos tropários que contemplam e cantam a parábola do filho pródigo no seu caminho de retorno ao pai e que têm quase como que um refrão a frase: “... também a mim, assim como ao filho pródigo...”. A perícope da parábola de Lucas 15 já foi lida no segundo domingo pré-quaresmal, quase indicando aquele que será o fio condutor de todo o percurso quaresmal, isto é, um caminho de retorno a Deus.

 

Como indicávamos em um artigo anterior, no início da Quaresma a liturgia bizantina contempla a expulsão de Adão do paraíso, e, portanto, todo o período dos 40 dias é visto como um retorno ao paraíso perdido.

 

A parábola do filho pródigo, então, com a imagem do “caminho de afastamento-retorno” indica este fio condutor da Quaresma e da própria vida cristã: da separação ao retorno, do pecado à graça do perdão, do paraíso do qual fomos expulsos ao paraíso ao qual o próprio Senhor nos leva de volta pela mão na noite da Páscoa.

 

O cânone – poesia litúrgica – das Laudes do segundo domingo da Quaresma é um poema dedicado justamente à parábola do filho pródigo. É obra de José, o Hinógrafo, autor que viveu entre 812 e 886, natural da Sicília e que se tornou monge em Tessalônica. Exilado na Crimeia durante o cisma de Fócio, ao voltar à capital de Bizâncio, pôs-se a serviço da escola poética do mosteiro de Studios. Morreu em Constantinopla. É o autor de diversos cânones que entraram na liturgia bizantina.

 

Quero destacar três imagens que percorrem persistente e repetidamente todo o poema: o retorno ao pai como imagem do retorno a Deus; depois o distanciamento, o afastamento do filho pródigo, visto como sinônimo do afastamento de Deus devido ao pecado; e, por fim, o retorno a Deus apresentado não só como arrependimento e reconciliação, mas também como uma verdadeira ressurreição e recriação, uma passagem da morte para a vida no rastro da própria narrativa da parábola evangélica: “... porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,24).

 

Retorno ao pai, retorno a Deus. Os tropários do poema retomam esse aspecto quase como um refrão que marca todo o texto: “... Acolhe-me no meu retorno, ó Pai, como a um dos teus mercenários, ó Salvador... como outrora o filho pródigo que voltava para ti…”. Esta última frase, como indicávamos, repete-se em muitos dos tropários da oficiatura bizantina: “...como o filho pródigo...”.

 

O texto também destaca que, nesse encontro entre o filho e o pai, é este que corre ao encontro, é este quem sempre acolhe: “Ó Pai piedoso e misericordioso, acolhe-me como o filho pródigo, ó meu Salvador, e não me rejeites agora que retorno com ardor, mas corre ao meu encontro e me abraça... E vem ao meu encontro, acolhe-me e salva-me, porque tu és o pastor de quem com fé em ti se refugia... Eis que Deus que quer que todos sejam salvos abre os braços para ti…”.

 

A imagem de sair, de correr ao encontro, leva o autor a aproximar essa parábola evangélica à do bom pastor: “... acolhe-me e salva-me, porque tu és o pastor de quem com fé em ti se refugia”. O pai que acolhe o filho pródigo é também o bom pastor que acolhe, toma em seus braços a ovelha perdida.

 

Um segundo aspecto que encontramos no texto é a fuga, a ida a uma terra estrangeira. Esse afastamento, esse tornar-se estrangeiro, é um tema que encontramos na tradição monástica primitiva e também ali tem um sentido positivo, pois é visto como um deixar e abandonar tudo e se tornar alguém que não tem vínculos nem laços senão com Aquele que o sustenta, o próprio Senhor.

 

No nosso texto, por sua vez, o distanciamento do filho pródigo é visto como um afastamento do próprio Deus: “Afastando o meu pensamento de toda ação santa, fui embora para uma região distante, tornando-me escravo de cidadãos estrangeiros... mas agora grito a ti: acolhe-me no meu retorno, ó Pai, como a um dos teus mercenários, ó Salvador”.

 

O texto litúrgico sublinha sobretudo o afastamento em relação a Deus no fundo do coração: “Afastando o meu pensamento de toda ação santa...”.

 

Um terceiro aspecto evidenciado no poema é o do retorno a Deus ou, melhor, do fato de ser acolhido por Deus, e isso como ressurreição e nova criação e, portanto, uma redescoberta da beleza da criação primigênia: “Na tua piedade, acolhe-me, ó Salvador, enquanto acorro com fé, como outrora o filho pródigo, e concede-me a libertação dos meus males, ó Cristo: faz-me digno de recuperar com pureza a beleza primigênia, celebrando, ó Salvador, a tua inefável compaixão…”.

 

O texto, com uma passagem cristológica a ser destacada, indica o próprio Cristo como Aquele que acolhe, que redime, que recria, que salva: “... ó Cristo: faz-me digno de recuperar com pureza a beleza primigênia...”. Diversas vezes o texto usa a imagem do ato de se revestir da beleza com que o Senhor criou o ser humano: “Senhor compassivo, Pai de toda piedade, acolhe como filho quem retorna de caminhos de maldade, dando-me a beleza com as vestes da impassibilidade... ó Pai, adorna-me com vestes sagradas e faz-me partícipe dos teus bens... Faz resplandecer para mim, ao jazer nas trevas da perdição, um raio de arrependimento, Senhor, e torna-me resplandecente com as vestes das ações virtuosas, para que eu seja digno do tálamo espiritual, contado entre os filhos do reino...”.

 

E mais uma vez encontramos o próprio Cristo como aquele que acolhe o filho pródigo arrependido: “Somente contra ti pequei, somente tu, bom por natureza, tu, ó Verbo, provoquei à indignação: tu que és rico de toda a compaixão, acolhe-me arrependido de novo: porque somente tu, ó compassivo, és bom e rico em misericórdia... Ó Cristo, soberano, agora venho a ti no arrependimento...”.

 

O poema litúrgico alterna as estrofes dirigidas ao Pai e as dirigidas a Cristo: “Salvador piedoso, abre também para mim os teus braços, como outrora os abriste a quem voltava de caminhos de toda maldade… ó Verbo, e dá-me a beleza primigênia…”.

 

É preciso ressaltar ainda o paralelo entre Cristo que se fez pobre na sua encarnação, pobre como Adão, e o filho pródigo empobrecido ao se fazer estrangeiro: “De ti, ó Mãe de Deus, o Cristo assumiu a carne, revestindo-se da pobreza de Adão: roga para enriquecer com os dons divinos, ó Toda Imaculada, aquele que a ti louva com fé, agora que me tornei pobre de todo bem, como outrora o filho prodígio”.

 

Assim, também encontramos evidenciado no poema litúrgico o papel de Maria como intercessora junto a seu Filho que acolhe aquele que a Ele retorna a seus braços, a seus braços abertos na cruz: “Imaculada Mãe do Emanuel, implora-lhe, ó pura, como mãe sua, para que, como o filho pródigo, também acolha a mim, que me afastei do caminho de Deus... para que eu me apresente puro Àquele que nasceu no teu ventre abençoado, ó pura, ó esposa de Deus”.

 

O amor e o perdão compassivos de Deus manifestados na Encarnação do Verbo impelem o ser humano ao arrependimento e ao retorno aos braços de Deus: “Tu que não queres que nenhum homem se perca, faz-me voltar, ó Verbo, porque me desviei do teu reto caminho e, como o filho pródigo, caí no pecado: assim engrandecerei o teu amor pelos homens”.

 

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