Silenciar o nome é amordaçar uma identidade. Páginas e páginas de textos literários, históricos, sagrados, nos quais as mulheres parecem não existir. Parecem não fazer parte da história. Como se a história fosse feita prescindindo das mulheres e sem elas.
A reflexão é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior “Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle Stiviere, Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 08-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Estes são os nomes dos filhos de Israel que entraram no Egito” (Ex 1,1).
O livro do Êxodo – em hebraico Shemot, “nomes” – abre-se no sinal de um exercício de nomeação que, ligando o novo percurso narrativo às páginas finais do Gênesis dedicadas à história de José e de seus irmãos, delineia com traço firme as linhas de referência do itinerário geográfico e humano que estás prestes a se abrir.
O Egito é a terra a partir de onde começa o ex-odós: José já se encontrava no Egito, os outros 11 filhos de Jacó entraram no Egito, cada um com a sua família. A situação inicial aborda a presença em terras egípcias de um total de 70 pessoas descendentes de Jacó.
Dessas 70 pessoas, apenas 13 são nomeadas. Trata-se de Jacó e dos seus 12 filhos homens, chefes das 12 tribos de Israel: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zabulon, Benjamim, Dã, Neftali, Gad, Aser e José.
Os nomes das quatro mães, Lia, Raquel, Bila, Zilpa, e o nome da irmã Dina, que também haviam sido protagonistas de algumas intensas páginas do Gênesis, não são nem mencionados nem referidos. Lia, Raquel, Bila, Zilpa, Dina, as 12 esposas dos 12 filhos de Jacó, são, no início do Êxodo, presenças anônimas, que não importam e não devem importar.
Os nomes que importam, os nomes que não devem ser esquecidos, dignos de serem lembrados e transmitidos, são apenas nomes masculinos. O livro dos Números irá reiterar isso claramente: “Fazei o recenseamento de toda a comunidade dos israelitas por famílias e por casas patriarcais, contando um por um os nomes de todos os indivíduos do sexo masculino, da idade de vinte anos para cima” [1].
No limiar do Êxodo, a história de Israel nos é entregue inequivocamente marcada pelo gênero masculino. As presenças femininas são entregues a um coletivo indistinto que sela o seu anonimato e invisibilidade.
Silenciar o nome é amordaçar uma identidade. Páginas e páginas de textos literários, históricos, sagrados, nos quais as mulheres parecem não existir. Parecem não fazer parte da história. Como se a história fosse feita prescindindo das mulheres e sem elas.
Em uma famosíssima passagem do historiador grego Tucídides, Péricles, homem político e orador ateniense, tece o elogio dos valores democráticos da sua cidade, celebrando os antepassados que a fundaram, os pais que a conservaram, os filhos que a engrandeceram. Em páginas memoráveis e exaltantes, Atenas é celebrada como modelo de igualdade e de tolerância recíproca entre concidadãos, forja de sabedoria e de beleza, verdadeira escola da Hélade.
No encerramento do discurso, depois de 10 capítulos muito densos, Péricles parece se dar conta de que não existem apenas homens no mundo. Mas lhe bastam quatro linhas para resolver a questão. Se é realmente necessário lembrar também as virtudes das mulheres, diz ele, em poucas palavras, pode-se dizer tudo: uma mulher será tão maior quanto menos se falar dela, para o bem ou para o mal. Simples e democrático.
A maior honra para uma mulher coincide com o silêncio. Não só a nomeação, mas também a própria onomástica feminina é um problema.
No mundo romano, o sistema onomástico se baseava em uma estrutura muito precisa, que previa que os cidadãos do sexo masculino livres fossem identificados com base no sistema chamado de “tria nomina”.
A pedra angular do sistema onomástico era o nomen gentilício, que identificava a gens, ou seja, a estirpe, equivalente ao nosso sobrenome; ao nomen era posposto o cognomen, que identificava o ramo familiar particular de pertencimento, e anteposto o praenomen, correspondente ao nosso nome próprio: Marcus Tullius Cicero.
Mas, para as mulheres, a situação era completamente diferente. As mulheres não recebiam um nome próprio, isto é, um praenomen individual. Quando nascia uma filha, não se levantava a questão da escolha do nome: o nome da filha feminina coincidia simplesmente com o nome da gens declinada no feminino. Para que fique claro, a filha de Cícero só poderia se chamar Tullia. Se, depois, nascia mais de uma filha, para evitar homonímias, ela era distinguida com um numeral com base na ordem de nascimento: Tullia Maior, Tullia Minor, Tertia, Quarta o Quartilla, Quinta o Quintilla.
Não é por acaso que a onomástica romana feminina foi definida como “onomástica”: paradoxalmente, pode-se dizer que, mais do que um ónoma, um nome, o das mulheres romanas é um oú-noma, um não nome [2]. Mulier sine nomine. O nome da mulher é tabu e não deve ser pronunciado. Sobre o nome, deve cair o silêncio, como um véu que encobre, sela e encerra.
Dar um nome no feminino. Escavar no silêncio dos textos, no não dito, no subentendido. Trazer novamente à tona nomes, rostos, histórias, gestos. Dar nome, dar rosto. Porque no nome está o rosto, e o nome é como o rosto. Revelador.
Recordar, ao lado de Jacó, as quatro mulheres – Lia, Raquel, Bila, Zilpa – que geraram os seus 12 filhos.
Recordar as mulheres que, com confiança na vida, geraram filhos na terra do Egito permitindo que o povo de Israel se tornasse numeroso e muito forte: “Os filhos de Israel foram fecundos e se multiplicaram; tornaram-se tão numerosos e tão fortes que aquela região ficou repleta deles” [Ex 1,7]. Os egípcios ficaram com medo e começaram a oprimir os Hebreus com trabalhos forçados: “Mas quanto mais oprimiam o povo, mais ele crescia e se multiplicava” [Ex 1,12].
Recordar as mulheres que, nos momentos mais duros da história, deram prova de extraordinária resiliência, continuando a acreditar na força da vida e da maternidade. A vida se torna difícil, mas as mulheres ainda dão filhos ao mundo. Nascem meninos e meninas. E a vida segue em frente.
Recordar Sefra e Fua, Esplendor e Beleza, mulheres especialistas na arte da medicina. Talvez elas também, assim como a egípcia Peseshet [3], a primeira médica da história, tivessem um status profissional bem definido: graças à sua formação científica, ocupavam lugares de destaque dentro da corte, cuidavam das mulheres da família do faraó e tinham tarefas de responsabilidade.
O faraó acreditou que poderia curvá-las aos seus próprios projetos de morte e ordenou-lhes que matassem todos os meninos hebreus que viessem ao mundo. Mas Sefra e Fua não obedecem e escolhem a vida. A sua objeção de consciência é desobediência que joga com astúcia, conseguindo zombar do poder que alonga seus músculos e quer se impor com a violência: “As mulheres hebreias não são como as egípcias; elas são cheias de vida e, antes que a parteira chegue, já dão à luz!” [Ex 1,19]. Além das leis dos homens, a lei de Deus.
Recordar a corrente de solidariedade feminina que tornou possível a história de Moisés. Na origem, há um homem e uma mulher. “A mulher concebeu e deu à luz um filho; viu que era belo” [Ex 2,2]. Quando uma mãe segura seu filho recém-nascido em seus braços, ela tem em seus braços o mundo, e esse mundo é beleza a ser conservada e admirada.
A mãe de Moisés consegue manter o bebê escondido por apenas três meses. Depois, com amor infinito, prepara-lhe outro útero, um cesto de papiro untado com betume e piche, coloca o bebê nela com ternura e o confia às águas do Nilo. Ser mãe é conceber, dar à luz, alegrar-se com a beleza do filho, mantê-lo entre os próprios braços. E depois deixá-lo ir. Moisés fez a sua primeira travessia nas águas do Nilo no cesto preparado pela sua mãe.
O menino não está abandonado e sozinho. A irmã Miriam segue de longe o balanço tranquilo do cesto de vime entre os juncos. O seu olhar guarda a vida. A filha do faraó vê o cesto; no seu olhar não há indiferença, mas participação, acolhida. Imediatamente manda a escrava pegá-la. O cesto-ventre é aberto: uma criança chora, e naquele choro a vida se entrega na sua total fragilidade. Imediatamente a filha do faraó sente compaixão, e nessa sua compaixão está a raiz fecunda de uma nova maternidade.
A irmã do menino, uma pequena menininha hebreia, aproxima-se da filha do grande faraó egípcio e lhe pergunta: “Queres que eu vá procurar entre as mulheres hebreias uma ama-de-leite para que amamente o menino por ti?”. Nesse ponto, abre-se um jogo de olhares que vai além das palavras trocadas, uma piscadela elusiva, mas poderosa, que fala de compreensão recíproca e cumplicidade. Uma cumplicidade que, ultrapassando as barreiras sociais, geracionais e étnicas, elude a muscularidade da lei imposta com violência, para salvar, nutrir e proteger a vida.
A mãe do menino pode manter o filho consigo, pode amamentá-lo, pode vê-lo crescer. A filha do faraó cuida não só da vida do menino, mas também da vida da irmã e da mãe, a quem garante um salário, um sustento financeiro. Depois, quando o menino cresce, pela segunda vez a mãe aceita deixá-lo ir e o leva à princesa egípcia. E “ele foi para ela como um filho e lhe deu o nome de Moisés, dizendo: ‘Eu o tirei das águas!’” [Ex 2,10].
“Eu o tirei das águas!”: exercício de nomeação no sinal de uma aliança feminina pela vida.
No limiar do Êxodo, a história de Israel nos parece iniciar no sinal de um exercício de nomeação marcado inequivocamente pelo gênero masculino. Mas, se aprendermos a ler nos silêncios, nos subentendidos e no implícito não dito, podemos descobrir que Mãe é o nome feminino de Deus.
1. Números 1,2-3.
2. Paolo Marpicati, “Note sull’onomastica femminile nella letteratura latina”, em “L’onomastica di Roma. Ventotto secoli di nomi”, Anais do congresso, Roma, 19-21 de abril de 2007. Disponível aqui.
3. Disponível aqui.