03 Janeiro 2022
"Que mudança de perspectiva. O futuro às nossas costas, enquanto, diante dos nossos olhos, em ritmo de dança, toda a graça do tempo vivido vem ao nosso encontro. Essa é a postura do Te Deum, o hino de agradecimento que fazemos ressoar em nossas igrejas na noite de 31 de dezembro. É a postura do agradecimento. Obrigado por tudo e para sempre. Sem ansiedades, sem a preocupação de vasculhar o horizonte para captar previsões sobre o que está por vir, sem expectativas ansiosas ou dilaceradas", escreve Anita Prati, em artigo publicado por Settimana News, 02-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Havia antigamente calendários de parede, aqueles com as folhinhas brancas que, dia após dia, tinham que ser arrancadas de um bloco que ficava cada vez mais fino à medida que a gente se aproximava do final do ano. Ainda hoje acontece, às vezes, ver algum desses. São artigos vintage: na parte superior o nome do mês e na parte inferior o dia da semana, em letras pretas; bem grandes, em uma posição central, o número vermelho da data.
Pensando nisso, o gesto de tirar do bloco, todas as manhãs, a folhinha com a data do dia anterior está longe de ser isento de significado simbólico: traduz, de fato, em evidência tangível, a ideia de que o tempo é, simplesmente, algo destinado a se desgastar com o uso. Algo que, uma vez usado, só merece ser amassado e jogado na cesta de papéis sob a mesa. Afinal, o passado é passado, como se costuma dizer. E se é passado, podemos muito bem jogá-lo às nossas costas.
Desde que a historiografia começou a dar seus primeiros passos, em torno do século V a.C., no pensamento ocidental a concepção de tempo foi sendo irreversivelmente estruturada de acordo com os parâmetros da linearidade, de modo que qualquer acontecimento encontra seu lugar em uma linha reta que de um antes leva para um depois, do ontem leva ao amanhã, do passado leva ao futuro.
Habituamo-nos a pensar o tempo como um rio que corre, sem jamais parar, inexoravelmente, segundo um fluxo incessante que pode ser medido e quantificado de forma cada vez mais precisa por relógios cada vez mais sofisticados e cada vez mais acessíveis: a função “cronômetro” e a medição de centésimos de segundo, agora, todo celular disponibiliza.
O tempo linear parece ter prevalecido sobre o tempo cíclico e qualquer outra representação do tempo que possamos vislumbrar na riqueza lexical de línguas como o grego ou o latim; que até poucas décadas atrás o trabalho no campo ou as atividades domésticas eram marcadas pela lua ou pela renovação das estações, e que o badalar dos sinos modulava as atividades cotidianas de um pôr do sol para o outro, soa agora como algo arcaico e ultrapassado. O mesmo sentido de celebração como tempo outro, parece ter-se perdido completamente, hoje, na sucessão inercial e repetitiva de dias que, diferentes apenas em seus nomes, resultam completamente iguais entre si em termos de essência e consistência.
Imaginamos o tempo como linear - que pode ser representado na “linha do tempo”, justamente; mas também como objetivo e absoluto: basta digitar as duas palavras “hora exata” em um mecanismo de busca, e podemos saber imediatamente, com precisão milésima, que horas são, naquele determinado momento, em qualquer lugar ou cidade do mundo.
O processo que nos conduziu a esta ideia comum e partilhada de um tempo linear, objetivo e absoluto, desdobrou-se ao longo de muitos séculos, antes de encontrar aquela definição que hoje nos parece óbvia.
Uma transição decisiva ocorreu em 1884, com a identificação do meridiano de Greenwich como o meridiano fundamental, a consequente sincronização dos relógios em todo o planeta e a eliminação das diferenças entre as preexistentes, inumeráveis, horas locais.
Enquanto isso, o progresso tecnológico levou à criação de sistemas de medição do tempo cada vez mais precisos: do relógio de bolso ao relógio de pulso, do relógio mecânico ao relógio de quartzo e digital.
Mas exatamente quando a noção de tempo como absoluto objetivo começava a se estabelecer na vida cotidiana de milhões - bilhões - de pessoas, justamente naquele mesmo período, entre o final do século XIX e o início do século XX, a física, a filosofia e a literatura contemplavam, como possíveis, outras representações: por caminhos distintos, mas interligados, Einstein, Bergson, Joyce, Virginia Woolf, na Itália Italo Svevo, trilharam caminhos que os levaram a pensar e descrever o tempo na perspectiva da relatividade, ao invés do absoluto. O tempo tornou-se um tempo magmático, indiferentemente imbuído de passado, presente e futuro; tempo de consciência, de sonhos e de interioridade; tempo libertado dos paradigmas cognitivos que, naquele momento, estavam padronizando o pensamento comum. Naqueles caminhos, continuaram se abrindo e se entrelaçando questões fascinantes, de um significado fortemente desestabilizador em relação ao conceito de tempo que agora naturalizamos no nosso quotidiano:
“Por que é que lembramos o passado e não o futuro? Existimos no tempo ou o tempo existe em nós? O que realmente significa que o tempo "flui"? O que liga o tempo à nossa natureza de sujeitos? O que escuto quando escuto o passar do tempo?” [1].
O Natal chegou e, depois do Natal, os dias correm rapidamente para o final do ano. É tempo de fechar as somas, equilibrar as contas, fechar um balanço e abrir um novo. É hora de colocar outra pasta no arquivo. É tempo de dar uma última olhada rápida na folhinha branca com as palavras “31 de dezembro” antes de amassá-la e jogá-la no lixo. Alguns arrependimentos pelo que passou, por como passou, um olhar esperançoso para o novo calendário que será inaugurado no dia 1º de janeiro. Só isso.
Só isso? Estamos acostumados a considerar o passado como algo que deixamos para trás. Parece-nos natural pensar-nos imersos nas águas do "tempo" do rio que, com a sua corrente, nos conduz para o futuro. O futuro diante de nossos olhos, o passado atrás das costas.
Mas, temos certeza de que essa é exatamente a perspectiva correta? Temos certeza de que é o passado que ficou às nossas costas e que, à nossa frente, está o futuro? Se fizermos o esforço de para sair das categorias com as quais costumamos considerar o tempo, se tentarmos mudar de posição e de ponto de vista, eis que podemos perceber que, no fluir do tempo, no rio da vida, diante de nossos olhos, visível e conhecível, não está o futuro, mas o passado: podemos ver e conhecer o passado, enquanto não podemos ver e não podemos conhecer o futuro. O futuro está, bem escondido e invisível, escondido, atrás das nossas costas.
O futuro às nossas costas. Que mudança de perspectiva. O futuro às nossas costas, enquanto, diante dos nossos olhos, em ritmo de dança, toda a graça do tempo vivido vem ao nosso encontro. Essa é a postura do Te Deum, o hino de agradecimento que fazemos ressoar em nossas igrejas na noite de 31 de dezembro. É a postura do agradecimento. Obrigado por tudo e para sempre. Sem ansiedades, sem a preocupação de vasculhar o horizonte para captar previsões sobre o que está por vir, sem expectativas ansiosas ou dilaceradas. Atrás das costas o futuro, diante dos olhos o passado. O futuro como Mistério, no signo da confiança. O passado como Presença de graça e reconhecimento infinito.
Addii
Ho visto lacrime doloranti –
oltre ogni ragionevole cronometro –
sul volto di un uomo anziano
che piangeva la morte
della suocera centenaria.
E lì ho capito la qualità
del tempo e dell'amore.
Adeus
Vi lágrimas doloridas –
para além de qualquer razoável cronômetro –
no rosto de um homem idoso
que chorava a morte
da sogra centenária.
E aí entendi a qualidade
do tempo e do amor.
[1] C. Rovelli, L'ordine del tempo, Adelphi, Milano 2017, p. 14.
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O futuro às nossas costas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU