07 Março 2022
A invasão de nação “cristãs” pelos outros e a inabilidade dos líderes da Igreja de fazer algo sobre isso.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 04-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Muitos anos atrás, um grande amigo meu, um frei dominicano do México chamado Oscar, passou os quarenta dias da Quaresma no Vicariato de Burundi-Ruanda da sua ordem religiosa.
Ele esteve lá liderando seus confrades africanos em um longo retiro espiritual.
Ele esteve lá no final dos anos 1990, poucos anos depois do fim do genocídio de Ruanda, a guerra entre Tutsis e Hutus, dois povos (tribos étnicas) da região.
Oscar, que estava nos seus quarenta anos naquele tempo, era coordenador de comunicações da Ordem dos Pregadores e viveu em Roma na Cúria Geral dos Dominicanos.
Quando ele retornou do tempo quaresmal na África oriental, ele nos encontrou em Roma numa trattoria no bairro Testaccio, onde, durante um longo e demorado jantar, ele contou entusiasticamente sobre a experiência africana.
Apesar do fato do vicariato incluir freis de ambos grupos étnicos, Oscar estava convencido de que sua presença entre eles durante aquelas muitas semanas ajudou a promover o longo e doloroso processo de cura e reconciliação que começou no final da guerra.
De fato, ele estava tão certo de que ele poderia fazer a diferença, que ele pediu ao então Mestre da Ordem, Timothy Radcliffe, se ele poderia se juntar ao Vicariato de Burundi-Ruanda.
Se não me falha a memória, Timothy não estava tão entusiasmado quanto Oscar. Aliás, lembro-me que ele era muito contra! “Mas será evangelização e acompanhamento Sul-Sul”, disse Oscar, tentando defender seu caso.
O vicariato havia sido estabelecido na década de 1960 pelos dominicanos do Canadá, e ele tinha certeza de que a acolhida calorosa que os frades lhe haviam dado durante seu tempo lá era, pelo menos em parte, porque ele também era do Sul Global.
Timothy, no entanto, estava muito preocupado que a avaliação da situação feita por Oscar pudesse ter sido muito otimista e excessivamente romantizada. Mas, eventualmente, ele relutantemente permitiu que seu irmão mexicano se transferisse para a comunidade na África.
Infelizmente, os temores de Timothy eram justificados. A experiência marcou muito Oscar.
Pouco tempo depois que ele chegou para se estabelecer, ficou claro para ele que a população local – incluindo seus confrades no Vicariato de Burundi-Ruanda – havia sido muito cuidadosa em esconder suas tensões étnicas e animosidades ainda não resolvidas entre eles do período anterior.
Depois de vários meses, ele retornou a Roma e depois voltou para sua província natal em Chiapas, o estado do sul do México que faz fronteira com a Guatemala.
“Alguns deles eram mais hutus ou tutsis do que dominicanos ou mesmo cristãos”, ele me disse com grande tristeza e descrença antes de partir para o México.
Ele ficou profundamente escandalizado e gravemente ferido. Ele era, de fato, um homem traumatizado e machucado que nunca se recuperou da depressão e desânimo que foram desencadeados pelo que ele havia experimentado.
Oscar era um verdadeiro cristão e um amigo maravilhoso. Ele adorava ser dominicano e apreciava as profundas amizades que compartilhava com seus irmãos (e irmãs) da Ordem.
Ele também estava muito orgulhoso de sua herança mexicana. Mas ele era antes de tudo um cristão e um dominicano.
Era difícil para ele ver como alguém poderia permitir que a identidade étnica ou tribal criasse uma barreira entre eles e outros irmãos ou irmãs batizados, muito menos membros da mesma ordem religiosa.
A invasão russa da Ucrânia trouxe-me de volta as memórias de Oscar e sua experiência de irmãos cristãos e dominicanos que se permitiram sucumbir a sentimentos fratricidas e conflitos.
Obviamente, as duas situações são muito diferentes em muitos aspectos.
Mas ambos envolvem pessoas em conflito e até guerra que, de cada lado, professam ser cristãs.
O ataque russo à Ucrânia é ainda mais horrível porque os cristãos dos dois países pertencem ao mesmo ramo da Igreja Ortodoxa Oriental que se originou no século X – como ambos os lados afirmam – da mesma pia batismal em Kiev.
Sim, esta Igreja – que fez parte do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla até o século XVII – fraturou-se ainda mais, especialmente após o colapso da União Soviética e o chamado renascimento do cristianismo ortodoxo na região.
O conflito é pior que fratricida.
Soldados de uma nação chamada “cristã” atacaram seus vizinhos que são irmãos e irmãs na fé. E os líderes religiosos – particularmente o patriarca Kirill de Moscou e todos os russos – foram impotentes para deter os líderes políticos (e militares).
Os hierarcas – de todas as denominações, incluindo o catolicismo – continuam a insistir que não se pode culpar o cristianismo pela guerra.
Mas, como o genocídio de Ruanda e outros conflitos, o aspecto mais triste e escandaloso do que está acontecendo na Ucrânia agora é que o cristianismo obviamente não teve nenhum impacto em impedir os batizados de serem perpetradores de guerra e destruição.
E isso é apenas mais um sinal de que o Cristianismo do Velho Mundo continua sendo uma religião primitiva que continua se afastando do Evangelho, e que, se isso não mudar, todas as Igrejas continuarão a se tornar cada vez mais irrelevantes.
E isso também deixará muitos escandalizados e machucados.
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Ucrânia. Contratestemunho do cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU