Em breve, nas livrarias italianas, será lançado o livro “Da Bergoglio a Francesco: un pontificato nella storia” [De Bergoglio a Francisco: um pontificado na história] (Edizioni Studium), com contribuições de Ezio Bolis, Francesco Bonini, Rocco Buttiglione, Giorgio Chiosso, Massimo Faggioli, Rodrigo Guerra López, Austen Ivereigh, Angelo Maffeis, Alver Metalli, Matteo Negro, Fabio Pierangeli, Javier Restán, Andrea Riccardi, Andrea Tornielli.
Foto: divulgação
O blog Controluce, de Alver Metalli, 22-02-2022, publicou o prólogo do organizador da obra, Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral no Departamento de Filosofia, Ciências Humanas e Formação da Universidade de Perugia, na Itália. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nove anos se passaram desde o dia 13 de março de 2013, quando o cardeal Jorge Mario Bergoglio se tornou papa com o nome de Francisco. O pontífice latino-americano colheu uma herança difícil: a de uma Igreja curvada pelo escândalo mundial da pedofilia do clero, pelos desastres das finanças vaticanas, pelos tráficos do Vatileaks.
Em poucos anos, o papa conseguiu o milagre e modificou, aos olhos do mundo, a imagem de uma Igreja não confiável e corrupta. No entanto, isso não o poupou de críticas e incompreensões de consistentes setores do mundo católico. As acusações, especialmente de componentes da Igreja norte-americana e de grupos tradicionalistas e conservadores, dirigidas ao papa “modernista”, “progressista”, “peronista”, “socialista”, acompanharam a história do pontificado. Dado o seu peso midiático, contribuíram para deformar, aos olhos de muitos, o sentido verdadeiro e autêntico das palavras e dos gestos de Francisco.
Por isso, parece importante restituir a essas palavras o seu verdadeiro significado. O Papa Francisco não é um progressista que abandona a doutrina da Igreja, muito menos um conservador que esquece os passos dados pelo Concílio Vaticano II. É um papa missionário e social, que tem como desejo relançar a tensão polar entre evangelização e promoção humana, a mesma que estava no centro da Evangelli nuntiandi do “grande” Paulo VI e que a Igreja, ao longo das últimas décadas, redimensionou e atenuou no seu valor.
Como escreve o maior biógrafo do papa, Austen Ivereigh:
“O radicalismo de Bergoglio não deve ser confundido com a doutrina ou a ideologia progressistas. É uma atitude radical, porque ele é missionário e místico. Francisco é instintiva e visceralmente contrário aos ‘partidos’ na Igreja e está convencido de que o papado afunda as suas raízes no catolicismo tradicional do santo povo fiel de Deus, e em particular nos pobres. Ele nunca fará concessões às questões candentes que dividem a Igreja do Ocidente secular, uma lacuna que os progressistas adorariam preencher modernizando a doutrina. No entanto, ele também não é, como é igualmente evidente, um papa da direita católica: ele não usará o pontificado para combater batalhas políticas e culturais que ele considera que devem ser combatidas em nível diocesano, mas se servirá dele para atrair e ensinar. Ele também não considera necessário repetir ao infinito aquilo que já se sabe, pelo contrário, ele deseja enfatizar aquilo que foi em parte esquecido: a paterna bondade e a clemência misericordiosa de Deus. E, enquanto os católicos conservadores gostariam de falar mais de temas éticos do que sociais, ele fica feliz em fazer exatamente o contrário, ou seja, recuperar um catolicismo como ‘veste sem costuras’” (“The Great Reformer. Francis and the Making of a radical Pope”).
O que Ivereigh escreve nos permite situar corretamente a perspectiva do pontificado, uma perspectiva certamente diferente da de João Paulo II e de Bento XVI, mas não oposta. A oposição entre Francisco e os últimos papas, como se sabe, foi o carro-chefe de todos aqueles que, dentro da Igreja, se referiam a Wojtyla e a Ratzinger para criticar Bergoglio.
Trata-se, porém, de uma oposição “ideológica”, artisticamente construída. As diversidades, que sem dúvida existem entre os últimos papas, correspondem a sensibilidades e avaliações diferentes acerca do peso da secularização e da resposta conveniente por parte da Igreja. Não concernem à doutrina e à custódia da tradição da Igreja.
“Se o longo pontificado Wojtyła-Ratzinger se caracterizou pelo magistério da Igreja sobre as questões morais e sociais, por uma ênfase ‘antropológica’ decisiva ligada à ideia de ‘lei da natureza’, o Papa Bergoglio parece ser animado por uma visão mais histórico-cultural e alinhada com o ambiente teológico latino-americano de onde ele provém, e por uma visão mais espiritual do que teológica do ministério do pontificado romano. O pontificado de Bento XVI, ‘papa teólogo’ (no sentido do teólogo acadêmico), poderia permanecer uma exceção na história do catolicismo moderno. O deslocamento de ênfase com Bergoglio, do papado teológico ao espiritual, apresenta algumas incógnitas para as configurações futuras do catolicismo. Mas essa escolha alternativa à de Ratzinger não faz de Bergoglio um progressista ou um liberal (assim como Ratzinger não era um reacionário). Bergoglio é um ‘católico social’ com uma visão ambivalente e complexa da ‘modernidade’” (M. Faggioli, “Papa Francesco e la ‘chiesa-mondo’”]).
Tanto Ivereigh quanto Faggioli nos oferecem, desse modo, uma visão mais complexa e adequada do papa. Um pontífice, recordamos, nada fácil de decifrar, apesar da “simplicidade” da linguagem e do modo de se relacionar com o mundo. Francisco é o papa que vê a Igreja e o mundo a partir de uma visão “polifônica”, baseada na ideia de que a vida, pessoal-social-histórica, é compreensível a partir de uma perspectiva “antinômica”, polar.
É a concepção que Bergoglio focou e assimilou graças ao seu projeto de doutorado sobre a antropologia polar de Romano Guardini. A teoria dos opostos é uma teoria do debate e da síntese que se opõe à dialética amigo-inimigo que constitui a essência da teologia política de Carl Schmitt, dominante no cenário religioso contemporâneo. É a teoria que sustenta a estrutura teórica da Evangelii gaudium, da Laudato si’, da Fratelli tutti.
Na sua conversa com Austen Ivereigh e intitulada “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca), Francisco esclarece bem a dívida contraída com Guardini. Graças ao pensador ítalo-alemão, esclareceu-se para Bergoglio a forma de um pensamento nem irênico nem maniqueísta. Um pensamento “católico”, baseado na distinção entre “oposição” e “contradição”.
“Guardini me deu uma nova percepção dos conflitos, para abordá-los analisando a sua complexidade sem aceitar nenhum reducionismo simplificador. As diferenças de tensão existem, cada uma vai na sua própria direção, mas elas coexistem dentro de uma unidade mais ampla. Entender como as contradições aparentes podem ser resolvidas metafisicamente por meio do discernimento era o tema da minha tese sobre Guardini, sobre o qual eu pretendia pesquisar quando fui à Alemanha. Trabalhei nisso por alguns anos, mas nunca terminei de escrevê-la. Mas essa tese me ajudou muito, principalmente a gerir tensões e conflitos [...]. Um dos efeitos do conflito é ver como contradições aquelas que, com efeito, são contraposições, como eu gosto de chamá-las. Uma contraposição envolve dois polos em tensão, que divergem entre si: horizonte/limite, local/global, todo/parte e assim por diante. São contraposições porque são opostos que, no entanto, interagem em uma tensão fecunda e criativa. Como Guardini me ensinou, a criação está cheia dessas polaridades vivas ou Gegensätze. São elas que nos tornam vivos e dinâmicos. Em vez disso, as contradições (Widersprüche) exigem que escolhamos entre o certo e o errado (o bem e o mal nunca podem estar em contraposição, porque o mal não é a contrapartida do bem, mas sim a sua negação). O pensamento que vê as contraposições como contradições é um pensamento medíocre que nos afasta da realidade. O mau espírito – o espírito de conflito, que compromete o diálogo e a fraternidade – procura sempre transformar as contraposições em contradições, exigindo que escolhamos e reduzindo a realidade a simples pares de alternativas. É isso que fazem as ideologias e os políticos sem escrúpulos” [Papa Francisco, “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor. Em conversa com Austen Ivereigh”].
As afirmações de Francisco esclarecem bem não apenas a dívida ideal contraída com Guardini, mas também a oposição ao pontificado daqueles componentes do mundo católico que são permeados pelo maniqueísmo teológico-político que, depois do 11 de setembro de 2001, marcou profundamente o Ocidente e o mundo. Para esses componentes, que em sua maioria se opõem à Igreja do Concílio Vaticano II, o papa representaria um defensor decisivo do primado da Misericórdia sobre a Verdade, da práxis sobre a doutrina, do testemunho sobre o dogma. Um modernista, portanto, incapaz de sustentar o barco de Pedro diante do vento do relativismo desenfreado. Incapaz de posicionar a Igreja naquela dialética militante e não dialógica exigida pelas culture wars contra a sociedade secular.
O ponto de vista dos críticos, fortemente dicotômico, não lhes permite compreender como o caminho de Francisco não opõe a Misericórdia à Verdade, mas entende a Misericórdia como caminho para a Verdade, como a manifestação histórica e factual da Verdade de Cristo no tempo atual.
As incompreensões são muitas, portanto, e se afundam em um sentimento da vida e da história alimentado pela desconfiança e pelo ressentimento também das correntes populistas que dominaram nestes anos o cenário mundial. No entanto, elas não puderam impedir que o testemunho e a palavra do papa fossem ao encontro das expectativas de milhões de homens e mulheres, sinal claro de paz e de humanidade alimentado pela letra e pelo espírito do Evangelho.
Nos nove anos do seu pontificado, tempestuosos como poucos, o Papa Francisco levou o “invisível” de volta aos holofotes dos poderosos, visitou as nações periféricas, deu voz ao clamor dos pobres e dos oprimidos. Corrigiu um desvio pelo qual a Igreja, após a queda do comunismo, se retirou para os muros diante do avanço de uma globalização cada vez mais secularizante. Uma Igreja assustada que buscou a garantia da própria sobrevivência na aliança com os poderes de plantão. A ela, o papa indicou o caminho de Belém, o desafio do Natal, aquele pelo qual o grande se faz pequeno. Como disse Francisco na sua homilia natalícia de 24 de dezembro de 2021:
“O Evangelho insiste nesse contraste. Conta o nascimento de Jesus começando por César Augusto, que faz o censo de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo depois, nos leva para Belém, onde não há nada de grande: apenas um pobre menino envolto em faixas, com pastores ao seu redor. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce à pequenez. A pequenez é o caminho que ele escolheu para nos alcançar, para tocar o nosso coração, para nos salvar e para nos levar de volta àquilo que importa. Irmãos e irmãs, parando em frente ao presépio, olhemos para o centro: vamos além das luzes e das decorações, que são belas, e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus por inteiro. Reconheçamo-lo: ‘Menino, Tu és Deus, Deus-menino’. Deixemo-nos atravessar por esse escandaloso estupor. Aquele que abraça o universo precisa ser segurado nos braços. Ele, que fez o sol, deve ser aquecido. A ternura em pessoa precisa ser acarinhada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite leves batidas. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida deve ser alimentado. O criador do mundo é não tem um teto. Hoje, tudo se inverte: Deus vem ao mundo pequeno. A sua grandeza se oferece na pequenez” [Papa Francisco, homilia de Natal de 24 de dezembro de 2021].
Nessa dialética do grande e do pequeno, transborda a espiritualidade inaciana de Bergoglio, a sua teologia da ternura, que contém, no seu centro, a imagem paulina do Deus do universo que se faz homem até à morte, e morte de cruz.
No quadro que delineamos sumariamente, os ensaios que compõem o livro consistem em uma preciosa contribuição para a compreensão do pensamento e da visão do papa. Não uma contribuição “hagiográfica”, mas de substância.
Os textos são o fruto de alguns dos melhores especialistas no assunto, do Pe. Ezio Bolis a Francesco Bonini, Rocco Buttiglione, Giorgio Chiosso, Massimo Faggioli, Rodrigo Guerra López, Austen Ivereigh, Pe. Angelo Maffeis, Alver Metalli, Matteo Negro, Fabio Pierangeli, Javier Restán, Andrea Riccardi, Andrea Tornielli e Francesco Bonini.
Os temas abordados oferecem uma imagem polifônica, “poliédrica”, do pontificado. Abrangem assuntos que nem sempre receberam a devida atenção: das analogias de João XXIII, Paulo VI, João Paulo II com Francisco à sua visão da “sinodalidade”, à atenção às periferias e as villas miseria de Buenos Aires, às implicações filosóficas da Fratelli tutti, aos autores literários amados por Francisco, à figura de Alberto Methol Ferrè e às raízes latino-americanas do pensamento de Bergoglio, ao tema da paz e da política internacional, ao caminho da Misericórdia.
Trata-se de contribuições de claro interesse, que permitem penetrar no pensamento do papa e esclarecer a sua visão da Igreja e do mundo contemporâneo. O que está em jogo, para crentes e não crentes, é muito importante, e a correta leitura da perspectiva do Papa Francisco, diante das manipulações interessadas e do grande jogo de interesses em campo, parece ser um dever e uma necessária homenagem em relação à verdade.