O amor é forte, é como a morte, uma faísca de Deus! (Ct 8, 6-7)

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17 Fevereiro 2022

 

"Cântico é uma poesia de amor às avessas para a sua época. Enquanto Gn 3,16 sentencia que o desejo da mulher a levaria em direção ao marido que a dominaria, a mulher livre de Cânticos declama: “Eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim” (7,11). Cânticos é o retrato de um amor puro e desejoso, que se expressa até em sonho erótico (5,2-6)", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Livro de Cântico dos Cânticos (Ct 8, 6-7).

 

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze.

 

Eis o comentário.

 

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é tirado de um livro pouco conhecido e muito apreciado como poesia bíblica. Trata-se de Cântico dos Cânticos, o mais belo dos cânticos de amor. Vamos tomar a passagem de Ct 8,6-7. Essa leitura é utilizada na celebração da memória de Santa Escolástica, italiana, fundadora da vida monástica beneditina e morta em 10 de fevereiro de 543.

 

Há muitos modos de interpretar Cântico dos Cânticos. Infelizmente, algumas leituras piedosas, litúrgicas e alegóricas tiraram o real sentido de suas palavras poéticas, desconcertantes e prazerosas. Cânticos dos Cânticos é o grito de mulheres que querem ter o direito de amar de forma livre, de não serem escolhidas ou desprezadas por homens machistas e misóginos. A leitura de gênero de Cânticos, isto é, a partir da relação de poder entre homens e mulheres, é um grande desafio para a interpretação bíblica.

 

Cântico dos Cânticos foi escrito, provavelmente, por mãos de mulheres que rejeitaram a reforma religiosa do escriba Esdras, quando o povo voltou do exílio da Babilônia, em 536 a.E.C. Enviado para Jerusalém, em 457 a.E.C., Esdras elaborou um projeto de reorganização do povo a partir da lei de raça pura. Israel é um povo puro e devia estar separado de outros povos, ensinava Esdras. Ele exigiu que os homens que haviam se casado com mulheres estrangeiras que a repudiassem. Assim foi feito em praça pública (Esd 9—10). Era uma tarde chuvosa, num choro coletivo, em nome de Deus, mulheres estrangeiras foram desprezadas. Imagine o drama e sofrimento delas.

 

Em oposição a Esdras, foram escritos, por exemplo, o livro de Rute, com o objetivo de demonstrar que o santo rei Davi teve como avó a estrangeira Rute (Mt 1,5-6); assim como Cântico dos Cânticos, sendo ele o grito de resistência de mulheres contra o poder dos homens, e tendo como princípio a afirmativa de que a relação amorosa de um homem com uma mulher não é somente para gerar filhos e multiplicar a raça de Israel, como rezava a máxima de o livro de Gênesis, com o seu crescer e multiplicar (Gn 1,28), mas é também para o prazer. Além disso, a mulher não é mero objeto do homem, mas protagonista. Pena que o modo de pensar de Esdras ainda continua vivo no meio de nós.

 

Cântico é um diálogo, um jogral de amor entre o amado e a amada. A mulher abre o livro de Cânticos convidando seu amado a beijá-la com os beijos de sua boca e dizendo-lhe que seus peitos são melhores que o vinho (Ct 1,2-3). O convite para o amor é feito pela mulher, situação impensável para a época. Aromas de flores, maçãs, mandrágoras, leveza e glamour de animais são equiparados, ao longo do livro, ao amor frenético entre a amada e seu amado. Ela o campara a um gamo (veadinho) saltitante nas colinas (2,9). Ele, por sua vez, a compara com a mais bela égua enfeitada do Faraó (1,9) à espera do amado garanhão que chegaria das batalhas. Tudo simbólico e lúdico.

 

Quando o amor foge, ela sai às ruas e praças para procurá-lo, com o desejo de levá-lo e possuí-lo na cama do quarto de sua mãe (3,1-4). Mais adiante, a amada convida o amado a entrar no seu jardim e comer de seus frutos saborosos (4,16c), a desfraldá-la na adega com a sua bandeira de amor (2,4). Suas amigas respondem ao cântico de amor da amada com o jargão: “Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro: não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!”

 

Cântico é uma poesia de amor às avessas para a sua época. Enquanto Gn 3,16 sentencia que o desejo da mulher a levaria em direção ao marido que a dominaria, a mulher livre de Cânticos declama: “Eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim” (7,11). Cânticos é o retrato de um amor puro e desejoso, que se expressa até em sonho erótico (5,2-6).

 

Numa época em que o casamento era feito por contrato e a mulher era comprada, nada melhor para finalizar o livro a passagem de Ct 8,6-7. Ela deixou registrado o desejo da mulher de que o amado gravasse no seu coração e no seu braço o selo, a marca do amor eterno, do amor paixão que é forte como a morte e cruel como o abismo. O amor é como chamas de fogo, faísca de Deus (Javé). Note-se que aqui é o único lugar que o livro menciona Deus. A conclusão é ainda mais emocionante: “As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo que tem para comprar o amor... Seria tratado com desprezo” (8,7). Com essas palavras o livro termina.

 

Um copista piedoso e conservador da velha tradição machista judaica acrescentou os versículos 8 a 12. Outro, possivelmente uma mulher, acrescentou o versículo 14: “Foge logo, ó meu amado, como um gamo, um filhote de gazela pelos montes perfumados”.

 

Assim, a mulher abre e fecha o livro com o desejo de um amor sem regras preestabelecidas, livre como a liberdade que um pássaro que voa nos ares de um céu sem limites. Cânticos não tem conclusão definida. O amor é assim, não tem o que concluir. Ele é ‘ad infinitum’, isto é, sem fim, sem limites e interminável.

 

 

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