19 Fevereiro 2022
Ela era grande amiga de Primo Levi e tornou-se uma espécie de alma gêmea do Papa Francisco. Um cartão de visita que se impõe. Edith Bruck compartilhou com o primeiro [Primo Levi] o indizível dos campos de extermínio, a escrita do testemunho e da salvação através da literatura. Com o segundo [o Papa Francisco], suas perguntas sobre Deus, o bem e o mal, a busca pela justiça.
A entrevista é de Marie Chaudey, publicada por La Vie, 18-01-2022. A tradução é do Cepat.
Quando da publicação do seu livro Le pain perdu [O pão perdido] na Itália há um ano, o Papa Francisco deixou expressamente o Vaticano (um holofote extraordinário) para fazer uma comovente e fraterna visita a Edith Bruck em seu apartamento situado na rua do Babuíno, a dois passos da igreja Santíssima Trindade dos Montes, em Roma.
É lá que ela nos recebe com toda simplicidade, uma silhueta frágil de 89 anos, mas com uma cabeça imperial, cercada por seus livros, suas memórias e seus ausentes tão presentes: seus pais e um de seus irmãos falecidos em Auschwitz; seu marido, Nelo Risi, irmão do famoso cineasta, ele próprio diretor e poeta, que sofria do Mal de Alzheimer, morreu em 2015.
Edith Bruck mostra-nos com fervor o castiçal de sete braços que Francisco lhe deu e a calorosa dedicação da encíclica Fratelli Tutti. Entre a intelectual ateia de origem judaica e o chefe da Igreja Católica, a corrente passou, um laço foi tecido, e eles agora se comunicam regularmente.
Francisco foi tocado pelo poder da “carta a Deus” que encerra Le pain perdu, esta história de uma vida, uma obra-prima de concisão, sobriedade luminosa, franqueza rara, mas sem ódio, escrita como uma fábula – sua infância em um aldeia pobre na Hungria; sua deportação aos 13 anos com sua família, sua sobrevivência em Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen; suas andanças ao sair dos campos de extermínio, sua chegada a Nápoles e em seguida a Roma depois de um desvio decepcionante por Israel, a adoção do italiano como sua pátria e língua de escrita, sua vida como intelectual e como testemunha que transmitiu memórias, engajada para sempre.
Desde a publicação, em 1959, de Qui t’aime ainsi [Quem te ama assim], Edith Bruck refaz incansavelmente o caminho dos campos de extermínio através das palavras de seus relatos, ficções e poemas, para abrir os olhos de seus contemporâneos.
O que lhe permite atravessar tão diretamente nossos tempos confusos?
Escrever me deixa feliz: é meu oxigênio e minha liberdade. E se escrevo na língua italiana, é porque é para mim um baluarte íntimo contra a minha língua natal. O húngaro me lembra insultos e ofensas, já que atravessei uma época fascista. O italiano é para mim isento dessas memórias, não tem raízes tão profundas quanto a minha língua materna.
Se digo a palavra pão em húngaro, vejo o rosto de minha mãe, suas bochechas coradas enquanto ela coloca a massa no forno. Ela está feliz porque poderá alimentar seus seis filhos por uma semana. Mas naquele dia de 1944, logo após a Páscoa, o vizinho nos ofereceu farinha. E vejo o último pão que minha mãe amassou no dia anterior.
Desde o amanhecer, ela fica acordada observando a massa crescer antes de colocá-la no forno. Depois vieram os policiais fascistas para nos prender – moradores locais, insisto, e não alemães, ao contrário do que foi contado nos livros de história na Hungria depois da guerra... Minha mãe gritou. Não podíamos levar o pão, ela chorou ao longo de todo o caminho até Auschwitz.
Como se manifesta a necessidade de escrever?
À tarde, escrevo duas ou três horas, à mão, de joelhos. Escrever é muito físico, passa pelo corpo. Quando uma ferida amadurece em mim, estou como que grávida dela... E as palavras saem, em forma de conto, ou poemas curtos quando o assunto não requer mais espaço. Eu tenho essa necessidade de colocar as palavras no papel, e a forma se impõe por si, eu não escolho.
Quando eu era criança, preferia recitar poemas em vez de minhas orações, para grande desgosto de minha mãe, muito piedosa. Os poetas não são simplesmente pessoas ingênuas, mas seres que enxergam além: mais longe e mais fundo.
Na minha poesia, certamente há uma grande influência de autores húngaros, como Attila József (1905-1937) que traduzi para o italiano. Através da poesia, podemos fazer reviver os seres que amamos.
Quando vamos visitá-la, temos a sensação de que estamos chegando ao encontro de uma multidão…
De qualquer forma, não estou falando de mim, mas do que passei e vi; trata-se acima de tudo de um testemunho. Acrescento que não esperei ser amiga de Primo Levi para escrever, fiz isso em 1946, em húngaro, mas perdi tudo e joguei fora quando saí do país.
De qualquer forma, ninguém estava nos ouvindo naquele momento. Por mais que eu dissesse: olha, está no papel, preto no branco, ninguém se interessava. Meu objetivo era reviver os seres que haviam desaparecido. Mas as pessoas se contentavam em dizer “nós também”… Nós também estávamos com fome. Nós também estávamos com frio.
Você diz que sua missão de testemunhar também é uma gaiola que a tranca...
Não vejo nenhuma contradição nisso: estou realmente em uma gaiola, mas em uma gaiola interna. Você não sai de Auschwitz, é para sempre. No começo, quando eu comecei a falar sobre os campos de extermínio, foi aos poucos. Eu vomitava o veneno, estava experimentando uma libertação. É apenas mais tarde que se torna uma consciência moral e um dever.
Em 1945, quando chegaram os soldados anglo-americanos que tinham acabado de libertar Auschwitz (não sabíamos, mas já tínhamos sido embarcados na marcha da morte), fomos finalmente levados de volta ao campo dos homens de Bergen-Belsen. O lugar estava cheio de cadáveres nus. Uma imagem que impregnou minha alma para sempre.
Os kapos nos pediram para retirar os corpos amarrando os tornozelos com um pano, para fazer uma pirâmide. Dois homens ainda estavam vivos. Eles me disseram: “Se você sobreviver, conte para eles. Mas eles não vão acreditar em você”. É por eles que continuo, prometi.
Trata-se de contar e recontar, em todas as formas possíveis?
Sim, de acordo com a minha promessa. Sempre vou ao encontro dos jovens, mesmo que seja difícil. O antissemitismo nunca foi erradicado, o racismo e a discriminação estão retornando. É importante que os jovens saibam. Se eu conseguir mudar alguma coisa em um punhado deles, minha sobrevivência não terá sido em vão.
Mas hoje, as últimas testemunhas são recebidas com silêncio, porque os idosos já não contam nesta sociedade. São considerados improdutivos, os mais frágeis pesam nas famílias, suas vidas não têm mais valor.
Envolvi-me em uma comissão pontifícia liderada por Dom Vincenzo Paglia, que apoia a assistência domiciliar a idosos dependentes – se são retirados de seu ambiente, se perdem, e é o fim. Não faço nenhuma diferença entre os seres humanos.
No coração do mal, aprendi o bem e o valor da vida de todos, inclusive dos idosos. Enquanto cuidava de meu marido Nelo Risi, que tinha Alzheimer, não parava de pensar em minha mãe.
Quando os médicos disseram que ele ia morrer no dia seguinte, eu o mantive vivo por mais 11 anos. Era como dar à luz a ele todas as manhãs. E ao fazer isso, inconscientemente, eram meus pais que eu estava mantendo vivo...
O que você conversou com o Papa Francisco?
Contei a ele sobre o que chamo de minhas cinco luzes, aqueles momentos em que escapei da morte e quando me lembrei de que era humana. Ao chegar a Auschwitz, enquanto as crianças eram imediatamente eliminadas, um soldado me arrancou da minha mãe para me empurrar para a linha de trabalho forçado, ele queria que eu vivesse.
Mais tarde, em Dachau, um cozinheiro me perguntou: “Qual é o seu nome?” Mas não havia tais palavras nos campos – eu era o número 11552. Sua pergunta significava: você tem um nome, você é uma pessoa, você está viva.
Outra vez, um soldado jogou uma tigela no meu peito e me disse: lave-a. Mas estava coberta de geleia... O papa me perguntou o que essa comida significava para mim: era a bondade humana, o fascínio, nem tudo era tão escuro. Um paradoxo total! Uma outra vez, um soldado jogou uma luva furada em mim. Francisco me perguntou o que havia no buraco desta luva: a vida, de novo.
Quanto à minha quinta vez que me salvo, aconteceu de forma bastante dramática, depois que minha irmã, para me proteger (eu estava no chão, sangrando) atingiu um soldado com toda a força. Ele caiu para trás na neve. Minha irmã me aconselhou a recitar o kadish, a oração pelos mortos, em hebraico.
O soldado levantou-se e sacou a pistola. Mas, inacreditavelmente, ele não nos matou. Ele disse: “Uma judia imunda ousou colocar as mãos em um alemão. Se ela está com fome, ela merece sobreviver”… Nós sobrevivemos.
Estávamos acostumados à vida dura da aldeia, à pobreza, éramos mais fortes que as meninas burguesas ou intelectuais. E, de maneira mais geral, os homens eram mais fracos do que as mulheres: havia três vezes mais mortes do lado deles.
A centelha da bondade parece possível para você na pior pessoa?
Estou convencida disso. Depois da libertação dos campos, cinco soldados húngaros pediram para nos acompanhar, a mim e a minha irmã, em nossa jornada. Eram jovens fascistas, que pensavam que poderiam tirar proveito da ajuda que os americanos estavam dando aos judeus. Eu tinha 14 anos, minha irmã, 18. Decidimos acolhê-los conosco, para fazer esse gesto de pacificação.
É absurdo, mas não tenho ódio em mim. Sempre me emociono quando penso nesse retorno: nós duas sentadas nas pilhas de carvão nos vagões de carga, e esses homens ao nosso lado, com quem dividimos as rações americanas. Vejo algo de grandioso, de absoluto nisso, como se tivéssemos construído a paz no mundo com esses cinco estranhos!
Nenhum desejo de vingança, nunca?
Na minha vida posterior a esses acontecimentos, em Israel ou em Roma, o acaso me fez cruzar três vezes com mulheres que tinham sido kapos em Auschwitz. Nunca as denunciei, porque sei tudo o que se está disposto a fazer para sobreviver – os alemães tinham toda a intenção de transformá-las em feras.
Primo Levi afirmou que foram as circunstâncias que trouxeram à tona o mal que as pessoas têm dentro de si. Eu tinha 13 anos e não aceitei uma única vez ser a mensageira dos kapos em troca de um pouco de pão: eu disse não. E depois, também não denunciei ninguém. Eu não conseguiria dormir se soubesse que coloquei alguém na cadeia.
Eu acredito no destino: o bem é como um bumerangue. Impedir que o mal vença não é deixar a última palavra para os nazistas: o dever de viver é minha utilidade. A vida não me pertence, pertence à história.
Quando Primo Levi se suicidou, seu gesto me machucou profundamente. Sentia-se culpado por ter sobrevivido, pois como químico fora privilegiado no campo. Meu único privilégio era ter sido menor que os outros, fui selecionada uma vez pelo Mengele e consegui me esconder.
Você não é devota, mas fala sobre sua relação com Deus...
Todas as noites, digo a mim mesmo que Deus me ama, e não sei por quê... não sei se ele existe ou não, mas algo me salvou. Também me dirijo à minha mãe, não sei se é a mesma coisa.
Fui salvo dos campos de extermínio, mas também de sérios problemas de saúde. Eu tive um ataque cardíaco, um AVC, uma operação cardíaca; eu deveria ter morrido. Deus me ama? Minha mãe me ama? São os mortos que me mantêm viva.
Há coisas nesta terra que são impossíveis de explicar. Como podemos explicar o que aconteceu nos campos? O ser humano caiu tão baixo? Como esses mesmos lugares eram possíveis? Em um campo, você aprende tudo sobre a humanidade: você pode ver alguém que arranca um pouco de comida da boca de seu filho.
Por que os humanos são tão apegados à existência? A vontade de viver é mais forte que tudo. E quando não há mais esperança, nós a inventamos.
Para mim, a religião é acima de tudo o respeito pelos vivos. O Papa Francisco concorda, ele aceita os ateus. Você me permite dizer que os ateus são talvez as pessoas mais religiosas que existem...
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“Falar sobre os campos de extermínio é uma consciência moral e um dever”. Entrevista com Edith Bruck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU