16 Fevereiro 2022
"Mataram Moïse e Melquisedeque como se mata negros e indígenas no território brasileiro, espancados, amarrados, queimados, baleados, emboscados. O pedido de justiça gritado por essas mães atualiza outros milhares de pedidos para que o Estado brasileiro atue de fato no enfrentamento à escalada da barbárie hoje estimulada por meio de manifestações inclusive de autoridades públicas em redes sociais", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, 24 anos, assassinado por espancamento no Rio de Janeiro, cunhou, em meio a dor difícil de ser configurada, uma frase que roda o Brasil nas mobilizações e protestos por justiça ao jovem e no enfrentamento ao racismo no Brasil: “mataram meu filho aqui como matam em meu país”, o Congo.
Em dezembro de 2021, a mãe de Melquisedeque dos Santos, 20 anos, do povo satere-mawe, Francilene, implorou em prantos: “peço justiça não somente por ele, mas por todos os jovens que vêm do interior pedindo uma oportunidade”. Melquisedeque era um dos tantos jovens que atravessam mundos diferentes, dentro do próprio país, para realizar o sonho de estudar, trabalhar e receber um salário justo “para ajudar a família que ficou por lá” e construir suas vidas com dignidade.
Um dos assaltantes de um ônibus da linha 444, em Manaus, no dia 16 de dezembro do ano passado, matou o rapaz com um tiro na cabeça. O sonho somou-se à tragédia que todos os dias destrói famílias de brasileiros e não brasileiros que, neste país, querem ter assegurado o direito de viver plenamente.
As mães de um congolês e de um indígena saterê imprimem uma fotografia sobre a qual necessitamos refletir e falar. Moïse e Melquisedeque não são casos isolados ou referências esporádicas desse tipo de acontecimento. São parte de atitude de repetição amparada pela impunidade incentivada. Um pensamento estruturado hegemonicamente tenta naturalizar o racismo no Brasil, a criminalização das vítimas e a normatização da violência como conduta social.
Mataram Moïse e Melquisedeque como se mata negros e indígenas no território brasileiro, espancados, amarrados, queimados, baleados, emboscados. O pedido de justiça gritado por essas mães atualiza outros milhares de pedidos para que o Estado brasileiro atue de fato no enfrentamento à escalada da barbárie hoje estimulada por meio de manifestações inclusive de autoridades públicas em redes sociais.
“Peço justiça”, por cada um deles e cada uma delas tem que ganhar corpo nas praças, nas orlas das praias, nas fachadas de prédios, nos pontos de paradas obrigatórias, nos muros das instâncias judiciárias, nos nossos corpos. São muitos pedidos de justiça acumulados, um déficit histórico na construção do aparato capaz de completar o ato de justiça e de ampliar a base de prevenção ao racismo, ao ódio e aos crimes vinculados a essas condutas. Quem mandou matar Marielle? Irmã Dorothy? Pedimos justiça!
Em sete de dezembro de 2019, Humberto Peixoto, 37, do povo tuiúca, morreu vítima de espancamento, no dia 2 do mesmo mês. O prontuário médico registrava afundamento craniano, perfuração na cabeça e fêmur quebrado. Peixoto retornava para casa, por volta das 15h, onde vivia com mulher e uma filha de cinco anos, no bairro Coroado.
Catequista, assessor da Cáritas Arquidiocesana e militante na luta pelos direitos indígenas no Amazonas, era comum encontrar Peixoto nos encontros organizados por pastorais sociais e pelas organizações do movimento indígena. Desses encontros, ficam na minha memória a fala mansa, jeito discreto e sorriso largo. Em nota divulgada à época, a Coordenação dos Povos Indígenas e Entorno (Copime) atribuiu o assassinato de Humberto Peixoto a crime de ódio.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O endereço do ódio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU