Filosofia da casa: o espaço doméstico e a felicidade. Artigo de Marcello La Matina

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07 Janeiro 2022

 

Em seu blog Come Se Non, 05-01-2021, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve: “A bela circunstância de uma resenha acurada, que apresenta sinteticamente o pensamento de um filósofo italiano (Emanuele Coccia), que trabalha em Paris, oferece um quadro interessante de um pensamento original e surpreendente. Cujos pressupostos e implicações a teologia também deve considerar com atenção”.

 

A resenha é do filósofo italiano Marcello La Matina, professor de Semiótica e Filosofia da Linguagem na Universidade de Macerata, na Itália. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em casa. Reflexões sobre filosofia, vida e geminação a partir de um livro de Emanuele Coccia [1]

 

Por Marcello La Matina (Universidade de Macerata)

 

Enquanto a filosofia acadêmica se dispersa nas correntes do especialismo certificado, outros modelos de sábios emergem. Sábios cultos e versáteis, mas bastante diferentes do tipo usual de professor acadêmico (o μαθηματικός de que falava Sexto Empírico, ou o filósofo “universitário” a quem o historiador Pierre Hadot dedicou páginas severas e memoráveis).

 

Tais filósofos novíssimos (novíssimos no sentido dos poetae novi da Roma de Catulo) não parecem estar nada interessados em defender ou erguer muros disciplinares; pelo contrário, promovem intrigantes explorações temáticas, inéditos contágios metodológicos e até convites à deserção disciplinar. Todas aquelas coisas que (o leitor vê por conta própria) fazem a Academia muitas vezes dar um pulo (de indignação, principalmente), já condenada à velha transformação da universidade em empresa e, por isso, dos círculos de otium em linhas de montagem em estilo pós-fordista.

 

O mais representativo dessa geração de νεώτεροι é o filósofo Emanuele Coccia. Nascida nas Marcas, Itália, cosmopolita por vocação, Coccia leciona na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), a prestigiosa instituição parisiense onde, apenas para citar alguns nomes, tiveram cátedra estudiosos como Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Le Goff ou Jacques Derrida.

 

Feroz adversário de toda castração da curiosidade intelectual, Emanuele Coccia considera o especialismo não um excesso de saber, mas “uma renúncia consciente e voluntária ao saber dos ‘outros’” (Coccia 2, pp. 126 e 135-136). E considera a filosofia como uma não disciplina que, já no nome (φιλοσοφία), se recusa a se entregar a um método ou a um campo de fenômenos dado de uma vez por todas, para se mostrar antes como uma atitude e um dispositivo do desejo.

 

Em suma, um não saber que todas as vezes faz emaranhar nas malhas do seu discurso constelações díspares de saberes e estilos epistêmicos, todos porém “atravessados por um excesso impressionante de desejo” [2]: “filosofia”, portanto, é o nome de uma erótica capaz de abalar e animar toda prática discursiva.

 

Nesse sentido, o percurso intelectual e filosófico de Coccia fala por si só. Depois de obter o doutorado em Filosofia Medieval em Florença, ele estudou profundamente a teologia cristã medieval e o averroísmo latino, abordando com rigor e originalidade pesquisas sobre os temas das imagens e da angelologia cristã, judaica e islâmica, sobre a teoria do poder no Ocidente e até sobre o discurso publicitário como uma teoria moral moderna. Na última década, Coccia concentrou a sua atenção na filosofia da natureza e da vida, chegando à formulação de um pensamento originalíssimo e fecundo.

 

Em uma convincente trilogia, Emanuele Coccia chamou a atenção dos seus numerosos leitores para o poder criativo imanente no mundo. Em 2016, com “La vie des plantes”, ele apresentou um modelo da razão vegetal, desenhando ao mesmo tempo uma metafísica da mistura: “Pensar a razão como flor – ou, inversamente, pensar a flor como forma de existência paradigmática da razão – leva a concebê-lo como a faculdade cósmica da variação das formas” (Coccia 2, p. 126). A flor é um “atrator cósmico”, capaz de fundar uma economia da mistura.

 

Em 2020, com “Métamorphoses”, ele argumentaria de forma semelhante que só existe uma vida e que todas as espécies vivas só vivem apenas esta e única vida. Um exemplo paradigmático é a lagarta que se torna borboleta: aqui existem duas formas distintas, sem nada de anatômico ou etologicamente relevante em comum; mas lagarta e borboleta são “a mesma vida, o mesmo eu”.

 

Isso também vale para os indivíduos de outras espécies, tanto vivas quanto minerais, das bactérias aos vírus e aos animais. Todas as vezes, na mudança das formas, experimenta-se que a vida subsiste em corpos separados como uma só vida: “Nascer significa, todas as vezes, assumir um corpo que era de outro (a própria mãe, o próprio pai, mas, por meio deles, também todos os outros) e fazer dele a própria carne. Nunca somos apenas filhos e filhas, assim como nunca somos apenas irmãos e irmãs. Nós compartilhamos o mesmo rosto; não precisamos nos assemelhar” (Coccia 3, p. 36, tradução nossa).

 

 

Exceto que, para Coccia, essa unicidade da vida sobre a terra deve se livrar das teleologias e das genealogias que, durante séculos, dominaram boa parte do pensamento filosófico. O que fica claro na metamorfose é a continuidade autotrófica da vida. Não se trata do desempenho de um antepassado que inscreve diacronicamente suas próprias características – um pouco como um palimpsesto – nas dos descendentes, mas sim a manifestação de uma geminação (gémellité) que pertence à própria vida e que se transcreve lateralmente e livremente a cada nascimento (cf. Coccia 3, pp. 35-38).

 

Portanto, se todos os seres vivos são atravessados pelo mesmo sopro e existem em tal geminação, então há espaço para que essa visão original da vida dite as condições para uma nova ética, distinta tanto da moral individualista de marca anglo-saxônica quanto da moral coletivista – e, no fim das contas, burguesa – que caracteriza o pensamento materialista de todos os tempos (cf. Coccia 3, pp. 187 ss.).

 

O terceiro volume da trilogia é “Filosofia della casa. Lo spazio domestico e la felicita” [Filosofia da casa. O espaço doméstico e a felicidade] (2021), que agora foi publicado pela editora Einaudi/Stile Libero. Sim, mas o que a filosofia da casa tem a ver com a vida das plantas e a metamorfose das lagartas? Gostaríamos de falar sobre isso a seguir, mas sem escrever uma resenha (até porque há muitas e também belas), mas tentando transcrever à margem das páginas alguns escólios, algumas notas de leitura, que são fruto da minha convivência com este livro.

 

A primeira pergunta de Emanuele Coccia é: “Como foi possível que a filosofia, a partir da experiência dos gregos até hoje, tenha negligenciado tanto o tema da casa?”. No entanto, nós, humanos, habitamos casas e não cidades; entre cada um de nós e a cidade em que se vive há sempre um intermediário insuprimível: a casa.

 

A filosofia falou quase apenas de cidades, de Platão a Agostinho e de Hobbes a Benjamin. Até mesmo a noção política e teológica de οἰκονομία (literalmente, “administração da casa”), embora se referindo à casa, foi pensada com referência à cidade, à polis, ao Estado [3].

 

A filosofia – se excluirmos as intrigantes observações de Ludwig Wittgenstein – não dialogou com a casa, ao contrário, fez dela o objeto de uma negligência teórica. De fato, poderíamos dizer, se a Cidade está sempre à vista, a Casa, assim como o ser, ama se esconder, tornar-se invisível. Portanto, é preciso tirá-la da toca; e é isso que Emanuele Coccia faz no seu livro, revisitando seus próprios encontros com as muitas casas que habitou na sua vida.

 

 

A primeira epifania da casa é a mudança. A casa se torna evidente como tal no momento da mudança, quando começamos a domesticar e a nos apropriar de algo que está ao nosso redor: o nosso gradiente ocasional. Os filósofos estoicos tinham uma palavra para essa adaptação recíproca: οἰκείωσις, “uma palavra belíssima que significa ‘apropriação’ (no duplo sentido de tornar próprio e de se tornar apropriado a algo), adaptar-se (no duplo sentido de tornar semelhante a si mesmo ou tornar-se semelhante a outra coisa), ‘domesticação’” (Coccia 1, p. 18).

 

Coccia põe em relação a experiência da mudança com a própria experiência da subjetividade: “Foi me mudando que eu aprendi a entender qual é o movimento psíquico e corporal a que damos o nome de ‘eu’” (Coccia 1, p. 19).

 

A casa que está em questão aqui não é a articulação de um espaço vazio que será preenchido de objetos, bagagens, mobília. Não é a casa como artefato, como produto arquitetônico, mas sim a casa como fenômeno moral que interessa a Emanuele Coccia. Não se trata, portanto, de levar em consideração um amontoado de materiais lígneos ou pedrosos em torno do qual se coagularam algumas propriedades formais (estéticas, arquitetônicas, políticas), como tantas marcas predicativas atribuídas a uma substância físico-semiótica. A casa não é uma coisa, não é substância nem estrutura ilomórfica, mas “um agregado de técnicas de adaptação entre o ‘eu’ e o planeta, uma dobra cósmica que faz coincidir por um instante psique e matéria” (Coccia 1, p. 16).

 

Além disso, a casa não é sequer aquele reino da privacidade e da reserva de que sempre nos fala o discurso publicitário e a narrativa hoje comum na paraliteratura. A despeito da difusão dessa visão consolatória, Coccia sublinha uma intuição diferente: a casa é também “uma técnica material e psíquica que usamos para entrelaçar a nossa vida e o nosso destino com os alheios” (Coccia 1, p. 23).

 

Ir morar em uma nova casa não é, portanto, um mero acidente na vida das pessoas, mas sim uma daquelas epifanias nas quais a Casa – graças a uma certa Stimmung – se dá a ver como um dispositivo moral, fora da habitual máscara objetual em que ela se encerra. Tal casa geralmente está vazia, deserta. O que acontece quando estamos na presença de tal espaço desabitado? De um apartamento completamente vazio?

 

Coccia narra a sua primeira experiência em Friburgo, no início da sua carreira: “Foi a experiência mais importante dos meus últimos anos. Naqueles dias, eu entendi que o espaço, na sua pureza é fisicamente inabitável. Eu tinha uma casa em que o mais elementar dos atos de vida era impossível. Era impossível dormir, porque o pavimento era duro e frio demais [...]. Eram necessárias coisas, e não espaço. É uma abstração: porque, em vez de se construir sobre a realidade dos gestos e do mundo de coisas que povoam a vida de cada um de nós, eles são reduzidos a um fato exclusivamente geométrico. Na realidade, a forma-casa – o solo, o telhado, as paredes – é por definição o inabitável” (Coccia 1, p. 42).

 

 

Na contraposição entre um espaço domesticado e outro ainda selvagem, Coccia certamente pensa nas esplêndidas páginas que Émile Benveniste dedicou ao imaginário topológico dos gregos e dos romanos [4]. Na cultura indo-europeia, havia uma forte oposição entre espaço interno e espaço externo. No latim arcaico, ela era evidente na contraposição entre domi (a casa) e foris (fora, externo). No entanto, essa dupla não é simétrica, porque o termo foris indica a porta, e não o espaço exterior à casa. Portanto, não só “o fora começa pela porta”, mas o fora pressupõe um observador que esteja situado em um espaço observado a partir do interior: alguém ou alguma coisa está fora para quem está dentro; e só é espaço não domesticado aquele espaço que pode ser aberto a partir da casa.

 

Naturalmente, a oposição domi/foris também era conjugada no mundo dos deuses, onde Héstia era a deusa da lareira, o penhor da estabilidade e da permanência, enquanto Hermes representava o espaço fora da porta, a ultrapassagem, o contato com o gradiente ocasional. Coccia dedica um belo capítulo (“Amori”, Coccia 1, pp. 21-28) aos desequilíbrios passionais na casa, onde o amor é o rito mistérico próprio do espaço doméstico e onde a sua divindade tutelar, Eros, porém, sofre de um rebaixamento em relação ao deus Hércules.

 

Na casa, o rito e a ocasião são como o vazio e o cheio na filosofia. Cada casa é suscetível a redefinir essas noções, mostrando a sua natureza bífida: vazio e cheio, assim como próximo e distante, não são pares conceituais geométricos, mas modos de se dar daquilo com que, na casa, podemos ter a ver ou não. Não são características abstratas da espacialidade, mas noções econômicas, que somente na casa, em casa, podem receber um conteúdo experiencial.

 

Mas, como vimos, Coccia supera essa contraposição dentro/fora, para nos indicar na casa algo como o revelador de uma “embriaguez ontológica”, em virtude da qual nós somos sempre o idêntico e o qualquer outro, o “eu” e tudo o que esse “eu” percebe como gêmeo de si mesmo. Em casa, as leis da identidade tautológica afrouxam seus tentáculos; e nós – assim como fazem todas as crianças, quando são incapazes de diferenciar sua própria vida da vida alheia – acabamos pressentindo em casa “um espaço de livre circulação dessa mesma vida entre vários corpos: uma espécie de feitiço que permite, pelo menos por um instante, que pessoas e objetos se tornem gêmeos” (Coccia 1, p. 66).

 

As nossas notas à margem poderiam ir mais longe, mas não queremos tirar do leitor o prazer, que nós sentimos fortemente, de descobrir passo a passo, sala após sala, as maravilhas ocultas da casa. Além disso, a tese de fundo é clara. A casa de que trata Emanuele Coccia não é um objeto da experiência, sem ser ao mesmo tempo uma condição de possibilidade da própria experiência.

 

O lugar principal dessa experiência de geminação cósmica, para Emanuele Coccia, é a cozinha. Ele dedica a ela um capítulo ao mesmo tempo encorpado e leve, como sempre deveria ser na filosofia, quando a vida está em jogo. A cozinha é aquilo que os semiólogos chamariam de um espaço utópico, ou seja, o lugar onde ocorrem aquelas transformações narrativas que permitem que o sentido signifique.

 

De fato, “cozinhar não significa apenas transformar aquilo que nos rodeia, mas sobretudo instaurar e preparar a própria metamorfose por meio daquilo que foi cortado ou fatiado, ralado ou picado, ensopado ou frito, fervido ou grelhado” (Coccia 1, p. 115).

 

 

O ato de cozinhar não é um mero fazer transformador, por meio do qual um sujeito se assegura um poder sobre um objeto, subtraindo-o do regime da naturalidade para introduzi-lo na esfera da cultura. A cozinha, escreve Coccia, “é a forma transcendental da relação de qualquer realidade com o mundo e com o planeta” (Coccia 1, p. 114); em primeiro lugar, porque o ato de cozinhar nos ensina que nunca se dá uma relação de mera contemplação com o mundo, mas que estar em intimidade com o mundo também é sempre querer transformar o mundo; depois, porque sobretudo a cozinha nos ensina que habitar o mundo só é possível permitindo que este se confunda conosco, em uma interpenetração recíproca.

 

 

Cozinhar é sacrificar uma parte da substância cósmica, para que ela contribua para mudar não só a si mesma, mas também o próprio ator do sacrifício. Nessa relação que é o cozinhar, o sujeito e o objeto são tomados em uma metamorfose que neutraliza a sua contraposição actancial.

 

A filosofia da casa, portanto, é uma filosofia do “em casa”, do único νόστος do qual hoje podemos reivindicar a agência: viver em uma privacidade que nos devolve a nós mesmos apenas quando estamos em casa no mundo, de modo a “não deixar mais nenhum espaço residual” (Coccia 1, p. 123).

 

Notas

 

1. As referências aos livros de Emanuele Coccia são: Coccia 1: “Filosofia della casa. Lo spazio domestico e la felicita”, Turim: Einaudi (Stile libero extra), 2021; Coccia 2: “La vita delle piante”, Bolonha: Il Mulino, 2020 (edição original: “La vie des plantes”, Paris: Payot & Rivages, 2016); Coccia 3: “Métamorphoses”, Paris: Payot & Rivages, 2020 (tradução italiana no prelo: Einaudi, 2022).

2. Cf. “Pensiero vegetale. Intervista con Emanuele Coccia”, de Leonardo Caffo, in Sette, Corriere della Sera, 21 ago. 2020, p. 68.

3. Em grego, oikonomia é tudo o que concerne à administração da casa e é também, a partir de certo ponto, tudo o que se pode obter estendendo o âmbito doméstico ao político. Seria legítimo inferir que, no uso filosófico da palavra, vem primeiro a referência à casa (οἶκος) e, só posteriormente, a referência à polis. Porém, se levarmos em conta o que Aristóteles escreve na Política 1253a18-20, quando afirma que, “segundo a natureza, a cidade tem prioridade sobre a família”, então a palavra poderia sinalizar uma operação semântica diferente: não a extensão da comunidade menor à comunidade maior, mas a referência do englobante ao englobado, da totalidade necessária (= a polis) à parcialidade obtida analiticamente (= a família que dela faz parte). Essa hipótese também tem consequências sobre a noção teológica de oikonomia, introduzida em época tardo-antiga como termo técnico no debate sobre o mistério da Encarnação divina.

4. Refiro-me a “Il Vocabolario delle istituzioni indoeuropee”, Turim: Einaudi, 1976, pp. 240-242.

 

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