Ciclo de estudos História da Sexualidade inicia nesta semana no Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Vinte anos depois da morte do filósofo francês Michel Foucault, a Revista IHU On-Line dedicou uma edição em sua homenagem, intitulada Michel Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois. Um dos destaques da publicação foi a reprodução de uma entrevista com o próprio Foucault, concedida a Roger-Pol Droit, em 1975, e publicada posteriormente no jornal Le Monde.
Ao comentar o contexto da época, quando fundou a revista L’Arc, juntamente com Gilles Deleuze, Michel Foucault se contrapôs aos intelectuais universalistas, que marcaram as gerações anteriores à Segunda Guerra Mundial, e antecipou o que observaríamos anos mais tarde, com a fragmentação e especialização das ciências. "Ser um intelectual antes da guerra ou imediatamente depois dela, era encontrar-se numa posição universalista, que permitisse ter sobre qualquer assunto um discurso, fosse qual fosse seu domínio de aplicação, a mesma sintaxe e a mesma semântica. Era, ao mesmo tempo, ser prescritivo e dizer: 'Eis o que é preciso fazer', 'Eis o que é correto, e o que não o é'. Era igualmente ser profético e dizer: 'Eis o que vai acontecer'. Encontravam-se sempre essa figura e essas características. (...) As pessoas de minha geração começaram a procurar outra coisa. Talvez não tivéssemos o talento, ou o gênio, como se desejaria, para ter esse discurso universalista. Talvez também as relações com o Partido Comunista se tivessem tornado demasiado difíceis. Em todo o caso, experimentaram-se ações em que os intelectuais não falam, finalmente, senão do que eles conhecem, de seu próprio lugar de experiência ou de competência, com tudo o que isso pode comportar eventualmente de limitado. Resiste-se o mais possível ao funcionamento do intelectual universalista que fala não importa de quê, que toma posição sobre a política iraniana ou sobre a crise do petróleo. Em lugar disso, tentou-se, antes, definir um intelectual regional, falando do seu lugar de experiência. Por que é ele o seu lugar? Porque esta foi a sua vida, ou porque o seu corpo está aí confinado. Então, nada de função universalista", pontuou.
Foucault (Foto: Reprodução)
Para Foucault, o intelectual não deveria ter uma "função profética". Antes, "o seu papel é o de abrir possibilidades de discurso e de misturar o seu aos dos outros, de entrelaçar o seu discurso com o dos outros, como num suporte". Ele mesmo exemplificou a abordagem que os intelectuais deveriam acentuar em suas análises: "Em vez de perguntar-se: 'O que vai ser isso?', 'Para onde é preciso ir?', procura-se antes pôr questões ao presente: 'O que se passa?', 'Quem somos nós?' Em vez de dar um assobio de chamada e pôr todo mundo em fila para proclamar: 'Eis o objetivo!', é melhor procurar compreender o que se passa atualmente, o que nós fazemos, quais são as relações de poder que passam através de nós sem que nós o saibamos, qual é, pois, o acontecimento que nós constituímos, ou melhor, do qual somos os tolos: e é ainda melhor interrogar-se: 'Quem somos nós, a ponto de sermos enganados?', 'Onde estão as ciladas?', etc. Para mim, o que hoje constitui os intelectuais, é esta inquietude da atualidade. Nós somos antes jornalistas do que profetas, mas jornalistas de nós mesmos. Eis as funções que se procurou desencadear".
Entre os proclamadores dos novos discursos a quem os intelectuais poderiam unir os seus, Foucault já destacava, à época, "as pessoas que se bateram pela liberdade do aborto: médicos, e também as mulheres que assumiram mais responsabilidades, que se expuseram, que eram a maioria dos professores, dos artistas, dos intelectuais". O movimento antipsiquiatria também ganhava proeminência em suas análises, assim como a luta dos homossexuais e a situação daqueles que viviam encarcerados, e todas essas temáticas foram objeto de seus livros. "Se o que se passou no interior dos muros do asilo efetivamente pôde ter lugar, é porque houve uma espécie de discurso do intelectual que tornara possível que essas palavras dos internados fossem consideradas como discursos, ou seja, outra coisa a mais do que gorgolejos ininteligíveis e desqualificados. Veja as lutas em torno da homossexualidade, e com mais forte razão da sexualidade em geral; jamais os intelectuais foram tão fecundos, tão próximos em seus discursos daquilo que se diz na realidade. Finalmente, essa nova cena concerne ao corpo, ao habitat, à sexualidade, à família, ao cotidiano", avaliava.
Para Felisa Santos, professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, que concedeu entrevista à IHU On-Line naquela edição, "Foucault se expõe. Seu pensamento se arma fundamentalmente contra outros pensamentos". Segundo ela, ele "ocupou-se do que estava passando, e é por isso que foi tão criticado. Foucault permaneceu sempre, digamos, indiferente diante dos avatares do pensamento pós-moderno". Um exemplo disso foi a seguinte declaração do filósofo: "O que se chama de pós-modernidade? Não estou a par”.
O objetivo intelectual de Foucault, explica a pesquisadora, pode ser resumido nas próprias palavras do filósofo: “É necessário ter a modéstia de dizer ao mesmo tempo que - inclusive sem essa solenidade - o momento no qual se vive, é muito interessante, e demanda ser analisado, e demanda ser descomposto, e que, com efeito, temos que nos perguntar: O que é hoje?" A tarefa da filosofia, portanto, de acordo com essa concepção, sublinha Felisa, "é responder 'O que somos nós hoje?'". E esta função de diagnóstico, no entendimento de Foucault, esclarece, "não consiste em caracterizar simplesmente o que somos, senão, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, chegar a captar por onde o que é, como o que é poderia não ser o que é.”
Na tentativa de compreender quem somos, entre 1975 e 1984 Foucault empreendeu uma pesquisa sobre a história da sexualidade na sociedade ocidental, desde os gregos até os modernos, estabelecendo uma antropologia e uma análise dos discursos acerca do tema, que deu origem à obra História da Sexualidade, dividida em quatro volumes: A vontade de saber (1976), O uso dos prazeres (1984), O cuidado de si (1984) e As confissões da carne (2018) - este último, publicado postumamente.
Em cada um dos tomos que compõem a obra, Foucault analisa como a sexualidade foi abordada ao longo da história. Em entrevista à edição 335 da IHU On-Line, intitulada Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault, publicada em 2010, o filósofo Carlos Eduardo Ribeiro destacou dois procedimentos realizados por Foucault nessa empreitada: "a rejeição da hipótese repressiva sobre a sexualidade, no que toca ao dispositivo de sexualidade, e a crítica da noção de sujeito do desejo e a rejeição de uma teoria do desejo". No primeiro volume, explica, "a colocação do sexo em discurso exigirá que Foucault elabore um 'desengate' jurídico: desfazer-se de certa representação do poder como emanado de uma centralidade (cortar a cabeça do rei do ponto de vista da história da representação política) a fim de expor, sob a rubrica da negatividade pacificadora do poder soberano, os assaltos de um poder estrategicamente disposto em redes de forças".
De acordo com Ribeiro, ao contrário do que se costuma imaginar, Foucault não rejeitou o poder soberano para realizar sua história da sexualidade. "É coisa diversa disso que a História da sexualidade I elaborou como analítica do poder: o discurso da interdição sexual (hipótese repressiva) tem uma estratégia sui generis que é, precisamente, a de apresentar o homem do desejo como liberado da repressão sexual. Ora, é exatamente esta operação, a que crê no fim da severidade sexual, que oculta a efetiva ação política deste discurso: da repressão à liberação são sempre estratégias de 'assujeitamentos' que se está a formular".
A partir do segundo tomo, destaca, "Foucault quer estabelecer sua história da sexualidade para além da evidência histórica da teoria do desejo. Problematiza nos volumes I e II da História da sexualidade o tema teórico geralmente aceito do sujeito desejante. Portanto, recorrendo outra vez à negatividade constituinte do nosso humanismo – neste caso, tendo em vista certa genealogia do inconsciente – Foucault faz a crítica do homem do desejo a fim de entender por que o discurso científico da sexualidade (a psicanálise) pertence à era que confessa o que se é recorrendo a um negativo nós somos (o inconsciente). Contudo, se, nos últimos escritos, Foucault viaja até a antiguidade greco-romana para realizar esta tarefa, é para tentar um caminho novo que o homem pretende: tentar uma análise das práticas históricas segundo as quais os indivíduos se interessaram por eles próprios, ou seja, Foucault quer, ao analisar as práticas de si, encontrar as regras ou critérios não de fixação do indivíduo, mas de sua mudança pelo pensamento, uma estética da existência".
Os quatro tomos serão tema do Ciclo de estudos História da Sexualidade, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em parceria com o Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS. O curso, que inicia na próxima terça-feira, 24-08-2021, se estende até 09-11-2021, e será transmitido na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no Canal IHU Comunica.
Ciclo de estudos História da Sexualidade (Arte: IHU)
Quatro volumes de História da Sexualidade (Foto: Reprodução | Arte: Wagner Fernandes de Azevedo)
Os quatro volumes, editorialmente, são resumidos da seguinte forma:
Em 2010, por ocasião do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, a Revista IHU On-Line publicou mais uma edição sobre Michel Foucault: Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault. Na ocasião, a historiadora e professora da Universidade de Campinas (Unicamp) Margareth Rago, que participará do Ciclo História sobre a Sexualidade, concedeu a entrevista intitulada “O natural não é ser homem ou mulher”. A dissolução da identidade, na qual explica como "o pensamento do filósofo francês pode nos ajudar a compreender as pessoas sem catalogá-las através de "etiquetas sexuais”. "Foucault pode ser apropriado pelo feminismo para dar-lhes mais clareza sobre seus movimentos, processos sociais e dimensões subjetivas. Por exemplo, quando o movimento feminista utiliza a noção de poder de Foucault – do poder como relacional, do poder como rede de relações que nos constituem –, se torna muito mais fácil entendermos a dominação de gênero. O poder visto como relacional, microscópico, molecular, cria condições para entendermos melhor como vivemos. Quando Foucault mostra que a confissão é uma forma de dominação, essa é outra colaboração que ele traz", exemplifica.
A pesquisadora também comentou o terceiro volume de a História da Sexualidade. "Quando Foucault está falando em 'escrita de si', trata-se de uma prática da liberdade em que o sujeito se constitui ativamente, mas também de uma chave analítica que ele nos oferece para pensarmos certos tipos de produção subjetiva, como pode ocorrer com as correspondências que uma pessoa troca com outra. Isso vale para diários e autobiografias, mas não necessariamente. Ele diz que, nas cartas, as pessoas se revelam muito mais do que elas pensam. Se pensarmos na escrita de si nesses termos, ela não tem a ver com empoderamento. Se estamos falando de autobiografias, de que as mulheres e os homossexuais estão se mostrando, nos dois casos, isso não tem a ver com poder, penso eu, mas com a possibilidade de construção ativa de si, e não reiteração de discursos normativos. Uma mulher que foi presa política, por exemplo, pode escrever um livro autobiográfico, sobretudo, como uma forma de denúncia, mais do que como autoconstituição subjetiva. Seu objetivo de denunciar violências e atrocidades vividas é muito mais forte, então, do que reler o seu passado e harmonizar-se consigo mesma".
O Instituto Humanitas Unisinos - IHU dedicou três edições da Revista IHU On-Line ao pensamento de Foucault.
A edição 119, intitulada Michel Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois, publicada em 2004, refletiu a respeito desse pensador, por ocasião dos 20 anos do seu falecimento.
A edição 203, Michel Foucault, 80 anos, publicada em 2006, discutiu a importância do legado do filósofo francês que, em 15 de outubro daquele ano, completaria 80 anos de vida.
Em 2010, a edição 335, intitulada Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault, tematizou o corpo e a sexualidade a partir da obra do filósofo.
Ainda sobre Foucault, publicamos a série de artigos do professor Castor Bartolomé Ruiz, que relaciona temas comuns na obra de Foucault, Giorgio Agamben e Pierre Hadot: A Filosofia como forma de vida, A Filosofia como forma de vida (II), A filosofia como forma de vida (III), A filosofia como forma de vida (IV). A regra da vida (regula vitae), fuga e resistência ao controle social, A filosofia como forma de vida (V) - O Officium: o dever que separa a vida de sua forma, nas edições 461, 466, 467, 468 e 471 da Revista IHU On-Line.
Sobre a obra de Foucault, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU também publicou três edições do Cadernos IHU ideias, que podem ser acessadas abaixo.
Técnicas de si nos textos de Michel Foucault: A influência do poder pastoral, de autoria de João Roberto Barros. 173ª edição.
Foucault e a Universidade: entre o governo dos outros e o governo de si mesmo, de autoria de Sandra Caponi. 211ª edição.
Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de autoria de Sandro Chignola. 214ª edição.
A 13ª edição do Cadernos IHU em Formação também foi dedicada ao pensamento do filósofo francês: Michel Foucault. Sua contribuição para a educação, a política e a ética.
A primeira palestra do Ciclo de estudos História da Sexualidade, intitulada Vontade de Saber-Poder e o Problema do Sujeito, será ministrada pelo Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral e pela Profa. Dra. Márcia Junges. O evento inicia às 19h30min. A programação completa está disponível aqui.