14 Dezembro 2021
"Aqui está o catálogo da vergonha com o qual se mede a vontade ou não de virar a página no que diz respeito a um sistema reticular de exploração e marginalização de jovens e não mais jovens, de mulheres e de desempregados e imigrantes que vieram para trabalhar", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 13-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "profeta não é aquele que prevê o futuro, mas aquele que sabe ler os sinais dos tempos”. Quando os papas conseguem apontar os pontos cruciais do mundo contemporâneo, eles se impõem no cenário mundial".
"Em meio à crise pandêmica global, - lembra o jornalista - Francisco sinalizou imediatamente a bifurcação que diante da qual as empresas e os estados se encontram. Reconstruir o mundo "como antes", isto é, com base em uma desigualdade impressionante e crescente (pouco mais de duas mil pessoas possuem o mesmo que 4 bilhões e setecentos milhões de homens e mulheres no planeta), ou se atua para construir um sistema econômico-social inclusivo e sustentável".
Para o vaticanista, "as palavras de Francisco assumem de repente um significado de relevância imediata. Existem poderes econômicos e políticos aos quais interessa que a situação continue assim, e existem milhões de mulheres e homens para os quais a mudança é vital. A bifurcação histórica é essa. Nesse quadro se encaixa a greve geral conclamada pela CGIL e UIL. A indignação farisaica dos partidos e potentados econômicos, a constrangida "surpresa" com que grande parte dos noticiários acompanha a iniciativa evidencia a tentativa de velar o cerne da questão".
O quanto é importante um profeta em termos de poder? Nada. Quanto pesa um profeta? Muito. Afirma o bispo Rino Fisichella, presidente do Conselho para a Nova Evangelização, que “profeta não é aquele que prevê o futuro, mas aquele que sabe ler os sinais dos tempos”. Quando os papas conseguem apontar os pontos cruciais do mundo contemporâneo, eles se impõem no cenário mundial.
João XXIII, Paulo VI e João Paulo II provaram isso. Basta pensar no árduo empenho de Wojtyla para criticar a invasão do Iraque determinada pelo presidente estadunidense George W. Bush. Era uma aventura desprovida de fundamento, que acabou sendo catastrófica, como o papa polonês havia alertado. O marco (18 de março de 2003) continua sendo a declaração do porta-voz do Vaticano Joaquin Navarro Valls: “Quem decide que se esgotaram os meios pacíficos que o direito internacional disponibiliza assume uma grave responsabilidade perante Deus, sua consciência e a história”. São os momentos em que os papas interagem com a opinião pública mundial, laicamente, para além de qualquer cerca confessional ou filosófica, tornando claros os divisores de águas da história. Profeta não é aquele que automaticamente consegue impor a sua visão; aliás, os famosos profetas da Bíblia sistematicamente não foram ouvidos, mas os eventos subsequentes provaram que seu grito de alarme era justificado.
Jorge Mario Bergoglio exerceu desde logo o papel de quem aponta a necessidade de uma visão alternativa à globalização tecno-financeira inspirada no paradigma de um neoliberalismo de rapina. Pode-se concordar ou não - dependendo dos próprios interesses - mas o aut aut é muito real. Se uma revista científica de destaque internacional como a Nature decide dedicar espaço e atenção à encíclica verde Laudato si', significa que o profeta Bergoglio - frisando o nexo entre a irresponsável degradação natural e a crescente degradação social – apontou para uma chaga da qual depende o destino da humanidade.
Em meio à crise pandêmica global, Francisco sinalizou imediatamente a bifurcação que diante da qual as empresas e os estados se encontram. Reconstruir o mundo "como antes", isto é, com base em uma desigualdade impressionante e crescente (pouco mais de duas mil pessoas possuem o mesmo que 4 bilhões e setecentos milhões de homens e mulheres no planeta), ou se atua para construir um sistema econômico-social inclusivo e sustentável.
A iniquidade sistêmica e as novas escravidões, que também inclui a precarização do trabalho sem garantias, são os nós a serem desatados segundo Bergoglio. O ponto de partida é religioso: a pessoa não é cristã porque se contenta em ir à missa e se proclama identitária, mas se segue a Cristo na obra do Bom Samaritano. O que, traduzido em termos laicos, significa comprometer-se com a promoção e a tutela da dignidade de milhões de mulheres e homens, para seu crescimento individual e social em condições de vida dignas. “Amar o próximo” para Francisco exige ativar-se. Esta é a razão pela qual tantos crentes de outras religiões, ateus e agnósticos, há anos seguem com interesse suas tomadas de posição.
Em termos concretos, tal visão implica um esforço de radical inovação como aconteceu na Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. O sistema socioeconômico do pré-guerra não foi ressuscitado, mas foi construído o estado de bem-estar social e foi criada a economia de mercado. Uma virada similar é (seria) necessária agora. Não basta pregar o “crescimento” como abstrata panaceia, trata-se de decidir quem cresce e como se cresce juntos superando as fissuras que atravessam a sociedade.
E aqui é fácil descer do império de ideias para mergulhar na realidade viva. Poderia ser examinada a situação de cada país, um a um. Vamos nos concentrar na Itália. Não há dúvida de que Draghi esteja empenhado com uma retomada econômica acompanhada de coesão social, na medida do possível. Mas a questão é: na ação do governo podemos ver a escolha clara e a realização, ainda que gradual, de uma nova economia social, de um novo sistema de relações econômicas, de uma decisiva inclusão daqueles que hoje estão à margem e à deriva (jovens, mulheres, imigrantes)? A resposta só pode ser não.
A exploração descarada do trabalho precário. A cota anormal do trabalho a termo ou temporário nas empresas em todos os níveis. A obrigação do part time com que são chantageados aqueles que teriam o direito a ser empregados em tempo integral com todas as garantias e os benefícios devidos. A proliferação de trabalhos informal ou sem garantias. A extensão do trabalho sazonal de norte a sul nos mais diversos ramos de negócio. A recusa do salário mínimo obrigatório. A persistente inércia no combate à macroscópica evasão fiscal, com 90 por cento do Irpf financiado por trabalhadores contratados e aposentados, enquanto os egoístas impunes fazem uso de hospitais, escolas, serviços, transportes, infraestruturas para os quais não dão um centavo.
Aqui está o catálogo da vergonha com o qual se mede a vontade ou não de virar a página no que diz respeito a um sistema reticular de exploração e marginalização de jovens e não mais jovens, de mulheres e de desempregados e imigrantes que vieram para trabalhar.
E eis que as palavras de Francisco assumem de repente um significado de relevância imediata. Existem poderes econômicos e políticos aos quais interessa que a situação continue assim, e existem milhões de mulheres e homens para os quais a mudança é vital. A bifurcação histórica é essa. Nesse quadro se encaixa a greve geral conclamada pela CGIL e UIL. A indignação farisaica dos partidos e potentados econômicos, a constrangida "surpresa" com que grande parte dos noticiários acompanha a iniciativa evidencia a tentativa de velar o cerne da questão.
A greve representa um grito de alarme em meio à iniquidade cotidiana. É um farol apontado para uma encruzilhada da história italiana. Chama Draghi ao dever de escolher entre o mundo de antes e um mundo renovado e mais humano. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, diz um ditado evangélico bem compreensível para mentes laicas.
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Itália. Greve geral, aqui está o catálogo da vergonha: até para o Papa está bem clara a bifurcação. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU