Entre o Vaticano e a Igreja Católica alemã, existe “uma dificuldade de se entenderem e de acreditarem um no outro”, mas a confiança é possível, cultivando uma relação de escuta recíproca, que supere as contraposições dialéticas e redescubra a fé comum no Evangelho.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada em Vatican Insider, 19-11-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Quem está convicto disso é Christian Hennecke, teólogo da Diocese de Hildesheim, que acaba de publicar na Alemanha o livro “Raus in eine neue Freiheit” [Por uma nova liberdade], com o subtítulo “Die Ueberwindung der klerikalen Kirchen” [A superação da Igreja clerical] (Ed. Koesel). Trata-se de uma oportunidade para repensar os ministérios ordenados, tanto no que diz respeito aos percursos de formação, para além do seminário, quanto à identificação de vocações a serviço da comunidade.
Na Alemanha, aumenta a cada ano o número de pessoas que abandonam formalmente a Igreja, tanto a católica quanto a protestante. O escândalo dos abusos sexuais levou a Conferência Episcopal a iniciar um processo sinodal plurianual, junto com a organização dos leigos. As propostas de reforma abordam questões – a moral sexual, o celibato obrigatório, o poder na Igreja, o papel das mulheres – que despertam alguma apreensão no Vaticano. Na realidade, a crise é de longa duração, e a secularização afeta o catolicismo muito além da Alemanha.
Para Christian Hennecke, focolarino com uma longa convivência com Roma, esses problemas devem ser enquadrados na perspectiva certa. Convencido de que se deve olhar para o futuro sem medo, Hennecke não acredita, porém, que seja suficiente reformar e redistribuir o poder eclesial, nem que a pergunta certa seja: “Como fazer para trazer as pessoas de volta à Igreja?”.
“Eu escrevi esse livro porque me parece que muitas das discussões que temos se desenvolvem de forma dialética, ou seja, acabam em uma contraposição que, no fim, não faz as coisas avançarem”, explica o teólogo alemão nesta entrevista.
“A Igreja clerical vive de um lado de cima e de um lado de baixo, a hierarquia que está ‘acima’ e os fiéis que estão ‘abaixo’. Mas, se invertermos a questão e dissermos: ‘Agora é o lado de baixo que decide’, na realidade cairemos no mesmo problema que tentamos superar. Eu me pergunto, em vez disso, o que pode ser o ministério sacramental na Igreja Católica sem cair nessa dialética histórica usual do acima/abaixo. Se o batismo é a mais alta dignidade de todo cristão, então como desenvolver ministérios e serviços no povo de Deus que não sejam mais delegados pelo clero, mas sim a expressão dos dons de Deus, que depois são confirmados pela comunidade e pelo ministério ordenado como expressão dessa ‘vocação’? Também podemos nos perguntar, então, quando há pessoas que dirigem comunidades em um grupo de três, quatro, cinco pessoas, como eu vi em outros países onde há menos padres, por exemplo nas Filipinas ou na África, por que não dar um passo em frente e desenvolver – em um futuro próximo – uma teologia da ordenação local? Por que não ordenar esses responsáveis para a Igreja local a que já estão servindo?
Essa ideia, que foi proposta pelo bispo emérito Fritz Lobinger, parece relevante, se começo a pensar a Igreja a partir do batismo, sem, por isso, perder de vista a nossa tradição da ordem sacramental. Isso pode ter várias consequências. É preciso imaginar que uma pessoa amadurece até o ponto em que uma comunidade reconhece os seus talentos e, nesse ponto, é chamada a um serviço à comunidade. As pessoas que amadurecem nesses serviços podem ser chamadas e reconhecidas para uma possível ordenação sacramental? É um caminho que podemos ousar pensar, a partir da nossa tradição? É diferente da concepção clerical que corre o risco de pensar os ministérios em termos de estado de vida e localização: eu conquistei, eu ainda não conquistei. Pelo contrário, seria preciso pensar em termos de processos em devir. Uma pessoa faz um percurso e, durante o percurso, descobre os seus talentos, os outros que vivem com essa pessoa os descobrem, e se chega a um ponto em que uma comunidade diz: ‘Queremos pedir que essa pessoa se torne responsável pela nossa Igreja’, e o bispo a ordena.”
Nessa perspectiva, como pode se configurar a formação dos futuros ministros da nossa Igreja?
Na minha opinião, as pessoas devem ter a possibilidade de desenvolver o seu próprio percurso de fé. Formar-se, não porque lhes falte algo, mas porque cada um tem o direito de se desenvolver: é a alegria de crescer e de encontrar o próprio caminho. E a diocese, a certa altura, pode perguntar a uma pessoa: “Precisamos de você porque você amadureceu, porque tem estes talentos na sua vida de cristão, de cristã, e agora temos uma tarefa para você... e também vamos te pagar por isso”. Na minha opinião, em um mundo como o atual, os seminários não são o lugar ideal para formar as jovens gerações para o serviço diocesano. Não creio que antes dos 35 ou 40 anos existam pessoas que estejam maduras, às quais é possível confiar essa tarefa. Então, onde elas podem amadurecer? Na minha opinião, não nos seminários, mas na sua vida, no trabalho, na vida familiar ou de indivíduo. Na vida comunitária, na vida cotidiana, em que as pessoas habitualmente se revelam, em que emergem as vocações, em que os outros podem entender se essa pessoa está apta para desenvolver um ministério.
Na sua opinião, as paróquias são o lugar para viver a própria fé?
A paróquia não é a priori uma comunidade individual, mas uma estrutura que ajuda as pessoas a amadurecerem nas várias comunidades que se formam e encontram a sua unidade na fé. O fato de uma paróquia se tornar uma comunidade homogênea, entendida em sentido sociológico, parece-me bastante difícil devido à diversidade das pessoas que existem em cada paróquia. Parece-me mais importante que nasçam comunidades distintas, mesmo que muito diferentes entre si, talvez no contexto de uma paróquia. A paróquia é o espaço de possibilidade para amadurecer na fé cristã e é o lugar do anúncio da palavra e da celebração eucarística, o lugar onde a presença do Ressuscitado faz crescer os caminhos da fé. Depois, o modo como cada um, cada uma, cada comunidade, cada grupo vive esse amadurecimento será muito diferente. Não é, portanto, uma estrutura semelhante a um castelo, mas um espaço do qual eu me aproximo para poder crescer; não um lugar que me limita, mas um lugar que me dá a força para me desenvolver.
Quando você afirma que o pensamento dialético é um beco sem saída, também se refere à dialética entre Roma e a Igreja alemã neste momento histórico?
Sim, também me refiro a isso. Acho que o problema das dialéticas é que a questão em discussão fica em segundo plano em relação à contraposição. Se eu afirmo que “assim e somente assim deve ser o padre”, por exemplo, e você é contra essa minha afirmação, você se opõe a partir daquilo a que você se opõe. Então, de algum modo, a oposição depende da norma. E assim não há saída. A ideia de padre que temos hoje surgiu a partir do Evangelho e se desenvolveu na grande tradição teológica, mas também é “revestida” por muitas ideias elaboradas ao longo da história. Enquanto essas duas coisas não forem diferenciadas, paramos na oposição à “veste” sem ir à origem da pergunta. Mas a história muda, e hoje vivemos em um tempo diferente do passado, e eu tenho que ir a fundo e me perguntar o que é o ministério ordenado para este tempo, para que serve. Se não vou à raiz, permaneço nas contraposições que não são frutuosas.
Entre Roma e Alemanha, existe o risco de uma contraposição que também seja uma dependência recíproca?
Entre Roma e Alemanha, neste momento, eu acho que existe sobretudo uma dificuldade de se entenderem e de acreditarem uma na outra. Ou seja, corre-se o risco de repetir sempre o mesmo ritual. De Roma, vem uma ideia e na Alemanha ela é percebida automaticamente como uma agressão às próprias posições: e então acho que é preciso ir a Roma para dar a entender o que pensamos para a salvação de toda a Igreja. E vice-versa, imagino: da Alemanha chega uma ideia, e, em Roma, há quem pense que os católicos alemães são protestantes, na realidade. Quando não há relação, você acha que o outro não entende, ou é atrasado, ou não é ortodoxo. Mas esses são preconceitos que não têm a ver com fé, mas com constelações históricas. Mas a fé do papa e a fé de um católico alemão são a mesma fé. É preciso relação, o que não significa que, de vez em quando, eu escrevo uma carta ou faça uma visita: é preciso conhecer bem o outro, ouvi-lo e entendê-lo a partir do seu modo de vida e vice-versa. As relações são sempre entre pessoas e consistem em confiança. Se não houver confiança e se for apenas uma questão de poder, eu não chego à relação. Confiança significa que eu acredito na sua fé, não digo: “A sua fé certamente está equivocada”. Um católico italiano, um polonês, um croata têm a mesma fé, mas tradições diferentes para expressá-la. Eu não preciso me tornar polonês para ter a fé certa, mas acredito na fé dele, e seria bom se ele me aceitasse como eu sou e levasse a sério a minha tentativa de crer. Se falta a relação, falta aquilo que é central para o cristianismo, a relação de confiança entre irmãos e irmãs. E, se falta confiança, no fim duas dogmáticas se opõem, e o debate se polariza.
O Papa Francisco fala frequentemente de “unidade na diversidade” como um caminho para o futuro sinodal da Igreja: o que é, na sua opinião, hoje em dia, a unidade da Igreja e a diversidade?
A unidade, que é uma realidade muito cara para mim, existe onde reconhecemos o fundamento comum do Evangelho, o fundamento comum da fé em Cristo que está presente. Acredito que, nesta época, a forma do cristianismo é o da sinodalidade, que é caminhar juntos. É importante que se caminhe “em comum”. Todos estamos a caminho e não conhecemos o futuro, porque esse caminho, no qual nos desenvolvemos, não é um bolo que comemos, mas um futuro, a partir do qual uma pessoa vem ao nosso encontro e se faz caminho para nós.
É possível a convivência entre progressistas e conservadores, que também se mostram mais distantes do que nunca nestes anos?
Mas isso já acontece. Em Berlim, ou Frankfurt, ou Roma, existem comunidades diferentes, as pessoas escolhem uma comunidade ou outra, com base na própria inclinação, e tudo bem. Afinal, os Evangelhos têm teologias diferentes, tem a teologia de João, a de Paulo... O importante é que eu reconheça que você chega a viver o Evangelho com o seu caminho e vice-versa: acreditar-se reciprocamente. Acho repugnante o populismo que divide e que certamente não tem nada a ver com o Evangelho. Estamos juntos na busca da verdade, que não é uma formulação dogmática, mas a experiência de descobrirmos juntos a verdade que é Cristo... É um processo, um caminho de sinodalidade.
O cristianismo poderia ser um exemplo para o restante da sociedade com sinodalidade?
Com a sinodalidade e com a fraternidade. E nós vemos isso. Onde mais pessoas vivem uma relação autêntica, de uma forma mais ou menos explicitamente cristã, isso é atraente. O cristianismo deveria mostrar a possibilidade de viver juntos felizes, apesar da distinção. A sinodalidade também me parece uma grande escola para toda a Igreja, e me parece que o Papa Francisco está convidando a Igreja local e toda a Igreja a um processo para encontrar um novo mundo de participação, de busca comum e de discernimento. Se o aprendermos, também pode ser um modelo para um mundo que busca essas estradas em uma realidade cada vez mais complexa. A sinodalidade traz consigo um conjunto de atitudes a serem aprendidas. Seria maravilhoso se conseguíssemos testemunhar que estamos nesse caminho na nossa Igreja, destacando muitas outras tentativas de sinodalidade em outras Igrejas, religiões e práticas da sociedade.