15 Setembro 2021
O ponto crucial do próximo Sínodo parece ser a passagem de uma evangelização em que são transmitidos “os ‘eus’ do Nós” para uma em que se busca e se valoriza “o ‘outro’ dos Outros”.
O comentário é de Sergio Ventura, jurista italiano, em artigo publicado em Vino Nuovo, 10-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na terça-feira, 7 de setembro, foi publicado o documento preparatório do Sínodo 2021-2023, intitulado “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”. Um texto curto (24 páginas, quatro capítulos, 32 parágrafos), mas denso (um apelo inicial, o fundamento bíblico-teológico, a metodologia das perguntas e os núcleos temáticos). Acima de tudo, um documento capaz de não trair nem arregimentar de imediato a inspiração de Francisco, mas, antes, capaz de focalizá-la e radicalizá-la.
A Igreja, habituada a ser mãe e mestra, é chamada sobretudo – mais uma vez – a “aprender” (§1; 15; 30, VI; 32). E a aprender graças às ‘surpresas” (§2) que o vento do Espírito Santo (Jo 3,8) apresentará a ela (ver também §5, 7, 9, 13, 15, 16, 26).
Um pouco como na abertura do delicioso filme “Chocolate”, quando, com a chegada do protagonista (uma forasteira), as portas fechadas de uma igreja onde uma missa estava sendo celebrada são escancaradas pelo vento, perturbando a tranquilidade dos participantes (e, por isso, imediatamente trancadas pelo próprio prefeito).
A Igreja, portanto, deve permitir que a “ação do Espírito” (§ 9; 13; 14), entendido claramente como Alteridade que se faz presente para nós, desencadeie um “dinamismo” (§2; 25) em si mesma, mediante três “objetivos” (§2) elevados e exigentes:
1) examinar à luz do Evangelho o exercício pessoal da autoridade e as estruturas do poder eclesial, para fazer as contas com as “feridas” provocadas pelo seu “abuso” (§6);
2) reconhecer, levar a participar e valorizar quem, ontem e hoje, é portador dos “dons” e dos “carismas” do Espírito – principalmente se estiver nas “margens” ou não estiver em “posições relevantes na comunidade” (§14) – para dar um “novo impulso” (§7) à Igreja e permitir que ela se “renove” (§9);
3) tornar a Igreja “credível” e “confiável” como sujeito e ator de “fraternidade” e de “amizade social”, por meio da inclusão, do diálogo intra e extra eclesial (§ 28-29, 31) e da reconciliação-cura- regeneração das relações.
Em última instância: se quem detém o Poder e a Autoridade não escuta (nos outros) outra coisa além de si mesmo, outras pessoas além de si mesmo – esse é o núcleo do clericalismo – é evidente que, por um lado, nunca poderá (a)colher as novidades do Espírito e, por outro lado, será pouco credível em termos de capacidade dialógico-relacional reconciliadora e regeneradora.
Não é por acaso que as referências bíblicas escolhidas pelo documento preparatório buscam evidenciar, por um lado, a interlocução (de Jesus) com “qualquer um” (§18) e a (Sua) valorização pelos “separados” de Deus e pelos “abandonados” da comunidade (§17), e, por outro, as características da tarefa daqueles que são destinados (por Jesus) à “mediação autorizada” (§19) entre os seres humanos e Deus: os Apóstolos não têm “o privilégio de uma posição exclusiva de poder e de separação, mas sim a graça de um ministério inclusivo de bênção e de comunhão”, por isso “devem salvaguardar o lugar de Jesus, sem o substituir: não para colocar filtros à sua presença, mas para facilitar o seu encontro” (§19).
O seu líder, Pedro, deverá até experimentar – no encontro com Cornélio – uma verdadeira “conversão” em relação àquilo que é lícito ou não fazer dentro de uma determinada “identidade religiosa” (§22), ou seja, em relação às “próprias categorias culturais e religiosas” (§23) e às “normas tradicionais” (§24).
Não é por acaso, igualmente, que no documento preparatório os bispos são expressamente convidados a não temer “se colocar à escuta da Grei que lhes for confiada” (§14) – lembrando (com uma passagem bastante, senão muito, questionável sobre a essência da democracia, porém) que o processo sinodal é outra coisa em relação aos dinamismos democráticos – e, de fato, são exortados a fazer isso “com confiança e coragem” (§15).
Tal conversão (no exercício) da Autoridade e do Poder (sobre a qual chegaram algumas indicações bibliográficas pontuais de Andrea Grillo) torna-se ainda mais necessária já que o atual “contexto histórico” (pandêmico), em que a Igreja é chamada a “perscrutar os sinais. dos tempos” (GS 4), é definido pela sua “complexidade” (§4): em certo sentido, portanto, definido paradoxalmente por uma “indefinibilidade” que exige, nas palavras de Pascal, um certo esprit de finesse; por uma “contraditoriedade” que precisa, nas palavras de Morin, de um pensamento dialógico.
De fato, segundo o documento preparatório, é apenas entre as dobras – e as feridas – dessa complexidade dialética (por exemplo – §8 – entre “secularismo e integralismo”, ou – §21 – entre “sabedoria política mundana” e “rigor moral-religioso”) que podem ser colhidos os brotos “de esperança e de futuro” (§5), as “novas linguagens da fé e renovados percursos” (§7) semeados pelo “poder vivificante” (§7) do Espírito Santo, de modo a atualizar também hoje aquilo que, desde o início da aventura cristã, era recomendado por Paulo: “Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo: abraçai o que é bom (1Ts 5,19-21)” (§14).
Portanto, é claro – e o documento absolutamente não esconde isto – que a direção dada ao Sínodo 2021-2023 pode ser resumida em duas palavras significativas e evocativas: “atualização” (§1) e “reforma” (§9).
Por outro lado, é imediatamente especificado que tal escolha teológica e pastoral – que poderíamos chamar de pneumatocêntrica – faz parte da grande Tradição (§10-11) – incluindo o Concílio Vaticano II (§12-13) – e, acima tudo, não vai além da questão da verdade dessa Tradição:
1) “É o Espírito que guia os crentes para ‘toda a verdade’ (Jo 16,13). Pela sua obra, ‘a Tradição apostólica progride na Igreja’ (DV 8)” (§13; ver também §15);
2) e é Ele também que “iluminará as profundidades sempre novas da sua [de Jesus] Revelação” (§16).
Em última análise, como dizíamos no início, o documento preparatório enfoca definitivamente aquilo que deveria ser o Sínodo segundo Francisco: um Sínodo cuja fonte e cujo ápice devem ser “a voz do Espírito” (§26). Certamente não como aquilo que – junto com a oração e o silêncio – alguns poderiam usar para despotencializar aquilo que surgirá a partir da participação e da discussão, mas sim justamente como sujeito da “interrogação fundamental”: “Que passos o Espírito nos convida a dar” (§ 26), o que Ele está nos pedindo, para que o “estilo”, as “estruturas” e os “processos” desse caminhar juntos não sejam reduzidos a “retórica” e a “formalidade vazia”, senão a um verdadeiro “contratestemunho, minando a credibilidade da Igreja” (§27)?
Para entender ainda melhor o que está em jogo, pode ser útil recorrer à conhecida parábola do semeador. Os homens e mulheres da Igreja, a própria Igreja na realidade, tendem mais frequentemente – mais facilmente – a pensarem a si mesmos como aqueles que, como alter Christus, semeiam ou pelo menos cooperam com a semeadura de Jesus.
Em vez disso, parece-me que Francisco esteja lhe e nos pedindo que nos pensemos acima de tudo – e talvez, neste kairós, somente – como quem não semeia nem coopera com a semeadura, mas somente como quem parte em busca da boa notícia das sementes já plantadas por Jesus ou dos seus frutos (eis a missão evangelizadora hoje!), para protegê-los (de espinhos, pedras e pássaros), ajudá-los a crescer, a amadurecer e – por que não? – também para colhê-los e compartilhá-los.
Nesse sentido, a única verdadeira “falha” do documento preparatório me parece estar presente no §20: é absolutamente compartilhável o fato de que “Igreja e povo sem Jesus” acabem nas tramas do “jogo político”, enquanto, sem povo, a Igreja de Jesus se torna “sectária e autorreferencial”; mas é menos ou nada compartilhável, à luz do que foi dito, a afirmação de que “sem os apóstolos (...) a relação com a verdade evangélica interrompe-se”.
Parece-me, de fato, que tanto o papa quanto o restante do nosso documento preparatório querem recordar à Igreja que, mesmo sem os apóstolos, graças ao Espírito Santo, tal relação não só não se interrompe, mas também é vivificada.
A Igreja, os Apóstolos terão então que aceitar – algo certamente nada fácil – que a boa notícia a ser levada, o evangelho transmissível, nessa perspectiva, consistirá simplesmente na feliz e alegre notícia de que o Espírito já está agindo nos outros, que já agiu neles. Se assim não fosse, dificilmente seriam compreensíveis os “núcleos temáticos” (§30) no seu conjunto coerente (constituídos por escuta ativa, parrésia, corresponsabilidade, diálogo intra e extra eclesial, participação, discernimento, escolhas transparentes) e a autenticidade do desejo final: “O objetivo do Sínodo, e por conseguinte desta consulta, não consiste em produzir documentos, mas em ‘fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, faixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros” (Discurso do papa no início do Sínodo dos jovens) (§32).
Eis, portanto, dado que o Sínodo dos jovens é evocado na conclusão do documento preparatório, a minha esperança e a minha maior oração é que o Sínodo sobre a sinodalidade tenha, verdadeiramente, em comparação com aquele Sínodo, um andamento e um alcance decididamente diferentes...
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Sínodo: aprender com o vento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU