21 Julho 2021
O corvo que apanhou aquela pomba que minutos antes uma criança soltou de uma sacada na Praça São Pedro, no Vaticano, durante a oração dominical do Angelus, no dia 26 de janeiro de 2014, foi para Franco Berardi a imagem intrépida do Apocalipse. A cena comum da paz se transformou em sangue, nas santas intenções do Papa Francisco.
Embora fosse 2014, o filósofo italiano, a quem todos chamam de Bifo, já falava de uma mutação antropológica que forçava a olhar a realidade em termos de evolução, ainda que sua origem não pertença à natureza, mas ao domínio da revolução digital.
Esse episódio, um tanto bíblico, fez com que se lembrasse de um poema de W. B. Yeat, de onde retirou o título de seu livro mais recente La segunda venida. Neorreaccionarios, guerra civil global y el día después del Apocalipsis (Caja Negra Editora, com tradução ao espanhol de Tadeo Lima).
Nele, a figura invocada é a do comunismo, mas a partir da interpretação que o caos propicia. O espaço de trabalho não é mais uma fábrica, mas a psique destruída de milhões de pessoas fragilizadas em sua razão crítica e o vínculo que estabelecem com a governança abstrata do tecnocontrole, em uma situação que este professor da Academia de Brera, em Milão, caracteriza como ilustração sombria.
Berardi nunca deixa de ser um ativista político e este livro (escrito antes da pandemia, mas que é lido como um apelo a identificar as possibilidades que os conflitos desses dias parecem apagar) se aproxima de um manifesto e se distancia do caráter programático.
Na voz de Bifo, o sistema conectivo e suas arquiteturas virtuais operam como territórios onde será necessário se infiltrar. Um meme pode ser tanto um mote como uma bomba e a promessa de fazer da tecnologia uma arma para libertar o exército proletário da inteligência (definido por ele como cognitariado) seria um feito semelhante à tomada do Palácio de Inverno.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 18-07-2021. A tradução é do Cepat.
Você discute a Tese XI de Karl Marx, que diz: “Os filósofos nada mais fizeram do que interpretar o mundo, mas a questão é transformá-lo”. A interpretação não é uma maneira de intervir sobre a realidade?
Dizemos que se trata de um paradoxo porque sabemos que a Tese XI é a fundação do pensamento e da prática. O pensamento de Marx não era verdadeiramente filosófico naquele momento (1888). Era mais político, ético, mas me pareceu útil destacar que quando interpretamos, estamos fazendo a ação mais importante: entender o que está escrito no interior da realidade presente.
É uma maneira de dizer que não há distinção entre interpretação e prática e provavelmente a prática mais importante é a de identificar a tendência, porque desse modo sabemos como agir para permitir à tendência emergir. O problema é o que fazer quando a tendência é o fascismo.
E o que pode ser feito? Porque esse fascismo hoje se mostra rebelde e você destaca que a esquerda se tornou puritana.
Esse é o paradoxo político fundamental do último ano. Essa troca de papéis entre direita e esquerda. Isto se funda em uma vergonha da esquerda diante do conceito de liberdade, como se fosse um valor absoluto.
Por outro lado, desencadeia-se uma reivindicação de um individualismo agressivo que é essencialmente resultado da impotência contemporânea. Essa rebeldia direitista dos pobres que exaltam Jair Bolsonaro, dos proletários norte-americanos brancos que votaram em Donald Trump, pessoas que foram empobrecidas pelo neoliberalismo, que se encontram na condição de redução de seus espaços.
Costumo usar a expressão do envelhecimento da raça branca porque é um elemento que precisamos considerar. Dos brancos e também dos chineses, daqueles que são fortes economicamente. É o sentimento de agressividade do super-homem nietzschiano que reage com uma rebeldia sem conteúdo.
Você fala da liberdade ligada à ideia de potência e ressalta que, segundo Baruch Spinoza, a potência se constrói socialmente. Hoje, a noção de liberdade aparece desarticulada da dimensão social.
A liberdade é um grande tabu do pensamento moderno, porque o conceito de liberdade não foi pensado. Foi afirmado de modo retórico pelo romanticismo, pelo neoliberalismo e também pelo narcisismo e pelo fascismo que tem um discurso de liberdade individual do homem forte.
Quando digo que não é possível pensar o conceito de liberdade sem relacioná-lo ao conceito de potência, quero dizer algo muito simples: Eu posso abrir esta janela e me jogar do quinto andar, mas cuidado: morro. Não tenho o poder de voar.
Se dissociamos a liberdade do poder, estamos fazendo algo totalmente falso (a mentira filosófica) ou algo politicamente perigoso. A esquerda sempre se percebeu um pouco frágil com a questão da liberdade, porque há toda uma mitologia romântica da qual não conseguimos nos libertar.
Cita Günther Anders quando define o nazismo como a racionalidade do extermínio aperfeiçoada pela técnica. A ação política também perde força para o poderoso?
Pensemos no que foram o fascismo e o nazismo do século passado. Foram a reação de homens humilhados (essencialmente uma reação masculina). Os italianos de Benito Mussolini eram os que tinham participado da Primeira Guerra Mundial e acreditavam ter vencido, mas após o Tratado de Versalhes perceberam que os ingleses e os franceses não os reconheciam.
A história é longa, mas ao final os italianos dizem: “A vitória mutilada”. E os alemães dos anos 1930 são os que perderam tudo. Precisam pagar os gastos bélicos, perdem territórios.
Hoje, a potência efetiva dos poderosos está se tornando cada vez menor porque a aceleração, a intensificação do ritmo da infosfera, ultrapassou a força da vontade humana.
Você fala em se tornar amigo do autômato, sabotá-lo e reprogramá-lo. Entrar no caos não implica multiplicá-lo? É esta a principal contradição desta época?
Quando a comunicação social se torna muito veloz para interagir de forma funcional, temos que criar automatismos. Esses automatismos são multiplicadores da complexidade da velocidade do mundo social, então, produz-se um efeito de caos cognitivo. A ferramenta que criamos parar enfrentar o caos alimenta o caos. Encontramo-nos cada vez mais incapazes de uma atuação consciente e eticamente fundada.
Parece-me que essa é a principal armadilha das sociedades da aceleração comunicacional, porque quando falamos de informação, não falamos somente de algo abstrato que está no computador. Estamos falando de estímulos, de limiares que a máquina produz no cérebro e a capacidade dos estímulos não é ilimitada.
Sabemos que quanto mais intensa e veloz é a comunicação, mais a nossa capacidade de elaboração intelectual e emocional se torna caótica. Claro que se trata de uma armadilha muito difícil de lidar.
Podemos dizer: paramos a máquina, desaceleramos o ritmo. É algo que não parece possível. Eu explico o fascismo contemporâneo, ou seja, o trumpismo, como essa incapacidade de administrar conjuntamente a aceleração da infosfera e a elaboração consciente.
Você fala dos memes como uma ferramenta para entrar na lógica do sujeito online. Como se articula com o corpo? Como se recupera esse espaço público?
O que é um meme? Pode ser considerado uma intensificação da função semântica. Para dizer uma coisa, precisamos de muitas palavras que podem ser interpretadas em um certo ritmo, mas se aceleramos extremamente a produção de signos, o meme pode funcionar como uma síntese do processo de interpretação.
O que produz essa aceleração a nível da interpretação emocional? Não estou falando somente de um problema semiótico, estou falando também da capacidade de gerir os sentimentos, a percepção do outro, a afetividade, o desejo, tudo o que não pode ser reduzido em um tempo curto.
Talvez pensemos que os memes são uma ferramenta da direita. Eu não acredito nisso. Claro que nos últimos anos assistimos a uma utilização muito astuta por uma nova intelectualidade direitista. Não devemos pensar que todos os trumpistas são estúpidos, a maioria sim, mas há uma intelectualidade que produziu ferramentas comunicacionais interessantes.
Se eu penso a experiência dos anos 1970, na Itália, a força do movimento autonomista residia, em certo sentido, na criação de memes. Ou seja, de formas sintetizadas, irônicas, alusivas, que têm a capacidade de fixar um conteúdo mais complexo. Mas não podemos pensar que todo o pensamento, e especialmente toda a emocionalidade, pode ser reduzido à dimensão memética. Este é o problema e, neste nível, a direita tem mais força porque a emoção acelerada é a emoção da identidade básica e agressiva.
Esse caos é subjetivo. Como fazer para alcançar esse ato de autocriação, mencionado por você, para voltar a nos subjetivar?
Temos que considerar todas as hipóteses. Pode ser que a história do progresso humano tenha terminado e que inicie outra história muito longa da extinção da civilização humana. Ao mesmo tempo, devemos dizer: não, a possibilidade permanece. Onde está essa possibilidade? No casamento entre a riqueza da tecnologia e a riqueza da sensibilidade humana.
Não sabemos traduzir isso em termos políticos, mas eu acredito que é a tarefa do tempo que vem. Encontrar o modo de adaptar o ritmo de nossa sensibilidade ao ritmo da constante aceleração da infosfera, da tecnologia, porque como disse Hölderlin: “Onde há perigo/ cresce o que nos salva”. O perigo está na tecnologia, a salvação está em nossa relação sensível com a tecnologia. É a tarefa da filosofia, mas sobretudo da psicanálise e da arte, da poesia.
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“A salvação está em nossa relação sensível com a tecnologia”. Entrevista com Franco “Bifo” Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU