Nova lei de licenciamento ambiental – Flexibilização, retrocessos e riscos à saúde

Foto: Pixabay

07 Julho 2021



A atual proposta do marco legal do licenciamento, PL 3729/2004, que será votada no Senado tem provocado debates acirrados entre os senadores e pedidos de audiência pública. A reação negativa ao PL extrapolou a casa legislativa. Nove ex-ministros do meio ambiente assinaram, em maio, um manifesto duro contrário ao PL. Diversas entidades da sociedade civil como a Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Antropologia, a Frente Parlamentar Ambientalista e a Abrasco, também, têm se manifestado. A Abrasco publicou, em junho, uma nota na qual chamou a nova lei de Lei Geral da Extinção do Licenciamento Ambiental. “ Entendemos que se trata de uma flexibilização do licenciamento ambiental que vai radicalizar o retrocesso e fazer com que tragédias recentes possam continuar e inclusive se agravar”, diz um dos autores da nota, o pesquisador da Fiocruz, Marcelo Firpo. Entre as tantas tragédias recentes no país, Marcelo cita as de Brumadinho e de Mariana, o desmatamento do cerrado e da Amazônia, e o garimpo criminoso em territórios indígenas. “Infelizmente estamos em um momento em que o consenso entre comunidade científica e pessoas que têm um mínimo de compromisso com a cidadania e com a Constituição não parecem ser suficientes para interromper esse rolo compressor que nos últimos anos vem acontecendo”.

 

A reportagem é de Andréa Vilhena, publicada por Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, 30-06-2021. 

 

Depois de passar 17 anos em tramitação, o projeto foi aprovado na Câmara dos deputados, na forma de um substitutivo, em maio deste ano, em uma votação rápida, na qual todas as tentativas de partidos para mudar o texto final foram rejeitadas. Considerado um importante instrumento de política pública, o licenciamento ambiental era uma reivindicação antiga, inclusive de ambientalistas, para garantir o equilíbrio entre a proteção ambiental e as atividades econômicas. No entanto, especialistas, como a ex-presidente do Ibama Sueli Araújo e a ex-ministra do meio-ambiente Izabella Teixeira apontaram, em webinar promovido pela Fundação Fernando Henrique no dia 15 de junho, que é preciso aprofundar o debate. Ao buscar simplificar e agilizar o processo licenciatório, sem consulta à pluralidade de atores envolvidos, propondo a exclusão da avaliação do impacto ambiental em diversos casos e, em seu lugar, o autolicenciamento dos empreendimentos, pode gerar insegurança jurídica com um provável aumento da judicialização dos pedidos de licenciamento no futuro, além de uma disputa entre os entes federados. Para falar do PL do licenciamento ambiental, o blog do CEE-Fiocruz, promoveu o encontro virtual dos pesquisadores do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (NEEPES/ENSP), Marcelo Firpo e Diogo Rocha, no dia 21 de junho, registrado no vídeo abaixo.

 

Para Marcelo, o PL esbarra numa contradição antiga existente no país, que diz respeito ao modelo de desenvolvimento adotado. “Quando apostamos no que chamamos de neoextrativismo, na produção e exportação de commodities rurais e metálicas, necessariamente tiramos valor agregado de vários outros setores econômicos não somente da indústria”. Essa opção neoextrativista, no contexto de um modelo de desenvolvimento neoliberal, inserido numa economia globalizada e submetido aos interesses do setor financeiro e das indústrias transnacionais, “como diz Ailton Krenak, devora a natureza, o solo, os minérios e a biodiversidade”, explica Marcelo. Por isso, o licenciamento ambiental é “uma questão cara do ponto de vista estratégico”, ressalta, e envolve, além do direito ao meio ambiente equilibrado, outros direitos sociais, como o direito à saúde.

 

Na lógica da produção de commodities e do agronegócio baseado em monoculturas da soja, milho, pasto para gado, café ou qualquer outro monocultivo voltado à exportação, realizado em grandes extensões de terra, “a biodiversidade é considerada praga e o agronegócio se torna químico dependente”, explica o pesquisador. Nesse contexto, é que se justifica o combate à biodiversidade e o combate à proteção ambiental.

 

“Sem a flexibilização do licenciamento, não tem como os monocultivos se expandirem em áreas ambientalmente preservadas, muitas vezes localizadas em territórios indígenas e quilombolas”, diz Marcelo. Além da pressão exercida pelo agronegócio, ele cita ainda a de outros setores da economia, como a da grande mineração e da infraestrutura associada, que precisam da flexibilização da legislação ambiental. De acordo com essa mesma lógica “é preciso impedir que novos territórios indígenas e quilombolas sejam demarcados e aqueles existentes sejam revertidos", aponta.

 

De pano de fundo, para justificar o desmatamento e a violência contra os povos originários, Marcelo identifica práticas como o negacionismo e a violência racial, que se articulam com o que ele denomina de “facismo social”. “Essa nova lei geral do meio ambiente que dizem que vai apenas flexibilizar (o processo de licenciamento), faz parte de um amplo desmonte não apenas das políticas sociais, das políticas de saúde, como, também, das políticas ambientais”.

 

A pressão contra a proteção ambiental, sublinha Marcelo, não é novidade no país. “Desde 2007, 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos e parte das tragédias que ocorreram da grande mineração ocorreram durante o governo do PT”, lembra o pesquisador. Uma das formas dos governos cederem à pressão exercida pelos grandes produtores é a concessão de benefícios fiscais. O país tem deixado de arrecadar bilhões com as isenções fiscais sobre a produção de agrotóxico.

 

Estudo da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), publicado em fevereiro de 2020, indica que os benefícios fiscais aos agrotóxicos foram de R$ 10 bilhões apenas no ano de 2017, sendo que 63% relativos somente ao ICMS, um imposto estadual. Em plena crise econômica e fiscal, os Estados e o DF deixaram de arrecadar R$ 6,3 bilhões naquele mesmo ano. O produto é considerado insumo essencial para a produção agrícola, apesar de todos os malefícios que trazem à saúde. “ Todas as externalidades negativas associadas aos impactos ambientais e à saúde no Brasil são consideradas um incentivo à agricultura e por isso não se deve cobrar imposto”, explica o pesquisador.

 

Diogo ressalta que a legislação do licenciamento ambiental no Brasil é relativamente recente. “As primeiras tentativas de regular a ação humana em relação ao meio ambiente, seja ela privada ou do Estado, remontam ao final da década de 70, início da década de 80”. A economia do país, sublinha o pesquisador, esteve sempre baseada na exploração intensiva da riqueza mineral e vegetal, com a exploração madeireira e da borracha, e também no agronegócio. “Vários ciclos que estavam ligados a essa extração do meio ambiente começaram a ser regulados por uma legislação, uma conquista da sociedade brasileira, que lutou durante muitos anos para que houvesse algum nível de regulação estatal para diminuir o impacto de algumas atividades econômicas sobre o meio ambiente e sobre a saúde humana”, explica.

 

No decorrer dessa trajetória de consolidação da legislação ambiental, ele reconhece que houve, também, retrocessos. “O que está acontecendo agora não é um movimento isolado na história do Brasil, nós vimos recentemente vários movimentos parecidos de flexibilização e de fragilização da legislação ambiental e das instituições que fazem a fiscalização”, diz Diogo. Durante os governos do PT, por exemplo, ele lembra que houve a fragmentação do Ibama em duas organizações, sendo criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Hoje, ele explica que o mesmo instituto está sendo “ ironicamente cotado para ser novamente fundido ao Ibama”. Essas mudanças, em sua avaliação, ocorrem toda vez que uma estrutura de fiscalização se consolida no país. Segundo Diogo, “no hiato entre o momento em que ela é modificada e aquele em que ela consegue operar com um mínimo de eficiência na defesa do meio ambiente, ocorre uma fragilização da ação estatal para consolidar esse modelo de economia focado na extração de recursos dos ecossistemas”.

 

A mudança legislativa que está sendo proposta, de acordo com o pesquisador, é fruto do interesse de grupos econômicos ligados à exploração dos recursos ambientais, “ pessoas que querem continuar o desmatamento, fazer mineração a qualquer custo”. Para esses grupos, a produção de forma desregulada, sem sofrer qualquer constrangimento legal, tem gerado muito lucro, mas o custo ambiental e social é alto. “Os recentes desastres de Mariana e Brumadinho não nos deixam mentir em relação a isso. Foram perdidas vidas, ecossistemas, rios, fauna e flora”, diz Diogo.

 

O “grande passivo” para a sociedade brasileira, ao qual Diogo se refere, ameaça ainda “modos de vida de populações tradicionais que dependem muito da sustentabilidade dos ecossistemas”. Nesse contexto, “ a Amazônia vem se tornando um símbolo internacional da luta ambiental e pela construção de uma outra forma de relação entre a sociedade e o meio ambiente, de uma outra economia que preveja a floresta em pé”, ressalta.

 

Para Diogo a mudança legislativa “torna cada vez mais vulneráveis populações que já são historicamente vulneráveis” e que em momentos de crise como a que o país enfrenta são as que mais adoecem. Ele explica que defender a sustentabilidade dos territórios, dos povos tradicionais, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos pequenos agricultores, das pessoas que produzem alimentos na cidade, também, “é uma política de promoção da vida , da saúde e da sustentabilidade”.

 

Ao falar da situação das populações mais vulneráveis em situação de crise, Diogo aponta para o crescimento da fome com a pandemia do coronavírus. “Enquanto isso, grande parte das terras do país estão voltadas para produção de commodities agrícolas”, um modelo de agricultura voltado à exportação.

 

Nesse momento de crise econômica e sanitária, “em que as próprias estruturas de mercado estão entrando em colapso, quando vemos vários grupos econômicos fechando suas unidades”, ele sublinha a importância do Estado para satisfazer as necessidades mais urgentes da população. “Se colocarmos todas as fichas nessa economia do extrativismo, teremos mais para frente um país sem muitas alternativas para a construção da sua própria soberania, seja do ponto de vista ambiental, da alimentação, da promoção da saúde”, diz Diogo.

 

Essas opções políticas, explica, não dizem respeito apenas ao interesse das pessoas que vivem no campo, nas áreas florestais, nas bacias dos grandes rios, mas é, também, uma questão para toda a sociedade brasileira. “Agir contra esse desmonte é garantir o futuro de toda a sociedade, não apenas daqueles que serão imediatamente afetados, as populações que vivem nesses ecossistemas, mas em longo prazo todos nós vamos ser afetados por isso”, conclui. Por isso, ele defende que “a aprovação de uma lei que fragiliza o controle social sobre as atividades econômicas do ponto de vista ambiental é também uma lei que fragiliza a própria sociedade”.

 

Marcelo critica, ainda, a celeridade como vem se dando a votação do PL, sem uma discussão profunda com a academia, organizações, entidades e movimentos sociais ligados ao tema da proteção do meio ambiente. “Justamente em um momento em que a sociedade exige um aprofundamento no processo de participação democrática, esse projeto vai na contramão, porque coloca no Estado todo o processo decisório”, completa Diogo. Ao diminuir a possibilidade das pessoas opinarem sobre quais empreendimentos que consideram estratégicos para seus territórios, em sua opinião, a nova legislação contribuirá para inviabilizar modos de vida que têm como base a sustentabilidade ambiental.

 

Outra consequência que a lei pode trazer, explica Marcelo, é o aumento da judicialização dos pedidos de licenciamento no futuro. “Existem vários especialistas que dizem tratar-se de uma legislação que fere a atual Constituição brasileira, na qual o direito ao meio ambiente é garantido como uma das cláusulas pétreas”.

 

Diogo considera grave no projeto de lei uma indefinição do conceito de impacto ambiental, estabelecendo uma série de tipologias de empreendimentos que seriam excluídos do processo de licenciamento ambiental. “Muitos dos projetos que estão sendo considerados de pouco impacto ambiental ou tão estratégicos para o estado brasileiro que deveriam ser excluídos do processo de licenciamento são justamente aqueles que geram um grande número de conflitos nos territórios”, diz. A mudança legislativa, em sua opinião, contribuirá para intensificar ainda mais esses conflitos, não apenas do ponto de vista judicial, mas também fragilizando a situação de vida daquelas pessoas que mais defendem a sustentabilidade dos territórios, os povos tradicionais, os quilombolas, os povos indígenas e pequenos agricultores.

 

Outro risco apontado por Marcelo e Diogo diz respeito à fragilização do papel da União como um dos principais entes licenciadores do país. “ Os órgãos ambientais federais têm maior autonomia em relação às pressões econômicas e políticas que muitas vezes o nível local, municipal ou regional sofre”, explica Marcelo. A descentralização dos processos de licenciamento para órgãos estaduais e municipais, segundo Diogo, abre a possibilidade para quando ”um empreendedor não estiver satisfeito com a forma como um empreendimento estiver sendo licenciado em um estado, em um município, simplesmente reinicie o processo em outro estado ou município”. Essa situação, explicam, é especialmente preocupante no caso de licenciamento de projetos de grande impacto, envolvendo territórios muito grandes, que deveriam, segundo a avaliação de ambos, necessariamente ter um parecer de órgãos ambientais federais. “Embora haja uma descentralização para os órgãos ambientais estaduais e por vezes municipais, não existe um nível de organicidade que defina com absoluta clareza o papel do município, do estado e do nível federal”, completa Marcelo.

 

Os pesquisadores sublinham ainda a importância da relação de interdependência da saúde e meio ambiente, “uma relação necessária para a garantia da democracia, da justiça sanitária, social, ambiental e cognitiva, referente aos direitos dos povos e comunidades tradicionais”, explica Marcelo. Em nome da celeridade da concessão de licenciamento, a nova legislação pode ampliar e intensificar os riscos ambientais ou socioambientais, afetando especialmente as populações que dependem da saúde dos ecossistemas, da forma como são preservados e protegidos”.

 

Como pontua Diogo, o Brasil tem sido “um campo de experimentação” de diversas economias baseadas numa relação mais harmoniosa com o meio ambiente'. “Temos a oportunidade de estar entre os primeiros nesse processo de inovação que está sendo discutido no mundo inteiro, pois temos várias experiências interessantes acontecendo nos territórios”, diz o pesquisador. Atividades como turismo ecológico, agrofloresta, produção e valorização da cultura tradicional estão, em sua opinião, no entanto, “ radicalmente ameaçadas com a nova legislação”.

 

É preciso construir um novo modelo de desenvolvimento mais inclusivo, mais sustentável, mais saudável e que garanta a dignidade e a saúde das gerações atuais e também das gerações futuras

 

Todo o debate em torno do PL expressa, segundo Marcelo, um grande dilema: “Como alcançar o desenvolvimento econômico, respeitando o meio ambiente e respeitando o direito dos povos tradicionais e as populações da agricultura camponesa, da agricultura familiar?

 

Para que isso seja possível no futuro, ele sublinha que as forças políticas que defendam a democracia, saúde e meio ambiente precisam produzir “ uma equação diferenciada em relação aos últimos anos, na construção de um novo modelo de desenvolvimento que seja mais inclusivo, mais sustentável, mais saudável e que garanta a dignidade e a saúde das gerações atuais e também das gerações futuras”.

 

 

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