15 Abril 2021
"Será que vamos naturalizar o genocídio brasileiro? Temo pelo meu grau de humanidade", questiona Frei Betto, frade dominicano, escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais e autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.
Não bastasse o genocídio promovido pelo governo Bolsonaro, favorecendo a infecção de 15 milhões de pessoas e a morte de 350 mil no Brasil, muitas delas asfixiadas em casa ou na fila de hospitais por falta de leitos, o povo brasileiro se vê, agora, diante de outro fator letal: a fome.
Em dezembro de 2020, de 213 milhões de brasileiros, 19 milhões literalmente não tinham o que comer. E 117 milhões não sabiam o que haveriam de comer no dia seguinte, sobreviviam em insegurança alimentar. Os dados são da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional.
Basta olhar para as ruas do Brasil para constatar, tristemente, como é atual o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira (1947): “Vi ontem um bicho / na imundície do pátio / catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, / não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / não era um gato, / não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem.”
A Covid impôs à maioria do nosso povo um dilema shakespeariano: comer ou morrer infectado. Se ficar em casa e evitar aglomerações no transporte coletivo e no trabalho, corre o risco de morrer de fome, por falta de recursos. Se sair para ganhar o pão de cada dia, corre o risco de morrer infectado.
O novo (mísero) auxílio emergencial (valor médio de R$ 250 por 4 meses) começa a beneficiar 45 milhões de pessoas a um custo de 44 bilhões de reais. Um retrocesso, sobretudo considerando que miséria e pobreza aumentaram em 2021, comparadas a 2020. No ano passado, o valor do auxílio emergencial foi de R$ 600 por cinco meses, e R$ 300 por mais três meses (Guedes queria dar, desde o início, R$200). Custou quase 300 bilhões de reais (exatos R$ 293,1 bi) e beneficiou 68 milhões de pessoas.
Vale lembrar que a indiferença do governo para com a saúde de nosso povo provocou aglomerações nas agências da Caixa Econômica Federal (o que teria sido evitado se os pagamentos ocorressem por toda a rede bancária). E, por falta de ética, chegou ao bolso de 7,3 milhões de pessoas imerecidamente, inclusive servidores civis e militares. Esses corruptos embolsaram R$ 54 bilhões (18% do total). E até agora não há evidências de terem devolvido os valores e sido punidos.
O auxílio emergencial de 2020 fez o PIB brasileiro retroceder 4,1%, quando o FMI previra 9,1%. Segundo Marcelo Neri, da FGV Social, a proporção de pobres (renda mensal inferior a R$ 246) caiu de 10,97% para 4,52%.
Em agosto de 2020 o número de pessoas na pobreza era de 9,5 milhões. Com o fim do auxílio emergencial na virada do ano, e o agravamento da pandemia, em fevereiro de 2021 o número de pobres somou 27,2 milhões, afirma Neri.
A novo auxílio emergencial equivale a tentar atravessar a tempestade, sem se molhar, segurando apenas uma folha de jornal sobre a cabeça. Durará apenas quatro meses e pagará R$ 150 a quem vive sozinho, R$ 250 a famílias, e R$ 375 a mães sem maridos. Valores insuficientes para adquirir uma cesta básica, calculada em R$ 626 em março.
Os beneficiários do Bolsa Família, que recebem R$ 346 por mês, são os mais afetados pelo aumento do custo dos alimentos. Durante a pandemia, 44% dos brasileiros deixaram de comer carne; 41%, frutas; e 37%, legumes e hortaliças. Entre os beneficiários, a insegurança alimentar chega a atingir 88,2%. Destes, 35% passam fome, segundo dados da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, divulgados em 13 de abril.
A fome se faz presente em 25,5% das casas chefiadas por mulheres, índice duas vezes superior ao de famílias chefiadas por homens. Se a pessoa é negra, a insegurança sobe para 67,5%, apontam dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional.
Veja bem, atento leitor: 44 bilhões de reais serão destinados a 45 milhões pessoas que sobrevivem na extrema-pobreza. E o orçamento deste ano prevê destinar a 513 deputados federais e 81 senadores (ao todo, 594 privilegiados), 48,8 bilhões de reais em emendas parlamentares, ou seja, fortuna para cada parlamentar aplicar em projetos de sua base eleitoral (ou embolsar via maracutaias).
Um governo que cruza os braços diante da pandemia, não amplia as políticas sociais, não assegura uma renda básica a toda a população abaixo da linha da pobreza, reduz gastos na saúde e na educação e, no entanto, libera o comércio de armas, é declaradamente um governo genocida.
Será que vamos naturalizar o genocídio brasileiro? Temo pelo meu grau de humanidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pandemia da fome - Instituto Humanitas Unisinos - IHU