05 Abril 2021
“Vamos ler o Evangelho de Marcos até ao fim porque aí é possível a coincidência entre a condição de mulheres fugitivas com a de discípulas convocadas”, escreve Dolores Alexandre, religiosa espanhola, em artigo publicado por Religión Digital, 03-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Então as mulheres saíram do túmulo correndo, porque estavam com medo e assustadas. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo”.
O final do Evangelho segundo Marcos é assim, abrupto. Não acaba como os outros com aparições do Ressuscitado, envio dos Doze ou palavras de consolo. Deve ter sido tão chocante para as primeiras comunidades que acrescentaram um final menos desconcertante.
Não obstante, sob a pele amarga do primeiro final, essas mulheres fugitivas são uma amêndoa a saborear: atenderam seguindo o costume do conveniente e adequado, mas nada ocorreu como esperavam. Por muito madrugaram, mas o sol já havia se antecipado; perguntavam-se como tirariam a pedra, mas a pedra já estava tirada; levavam perfumes para embalsamar um cadáver, mas o lugar estava vazio; buscavam um crucificado e anunciaram um vivente.
Ninguém pegou os perfumes de suas mãos: os trocaram por uma missão confiada a suas vozes, até então silenciadas. O lugar fechado havia se tornado um espaço aberto, que deveriam abandonar e não voltar a rondar nunca mais: era na Galileia onde ele precederia aos seus. Em vez de um corpo, receberam uma palavra, já não podiam seguir estando nos lugares que antes frequentavam.
Estavam perante a um acontecimento inesperado e inaudito que sobrepôs todas suas capacidades. Por isso reagiram com estupor e admiração, assim como Pedro, Tiago e João quando Jesus se transfigurou no monte diante deles; assim como os discípulos depois da tempestade no lago, ou os que viram a filha de Jairo se levantar.
Assim como nós mulheres escutamos hoje, o mesmo anúncio: “Ressuscitou, não está aqui. Olhai o lugar onde o puseram” e estamos convocadas para fazer o que elas fizeram – tornarmo-nos fugitivas – e escapar de tumbas tão vazias como estas:
A tumba da inocência perdida, aquela doce ignorância que nos protegia naquele tempo sonhado da “normalidade”, quando vivíamos alheios à realidade de que éramos tão vulneráveis e nossa espécie estava tão ameaçada; quando dávamos por certo que seríamos impedidas de nos reunirmos, nos abraçarmos ou ir para a casa de férias; quando imaginávamos que os velhinhos estavam sendo cuidados e a salvo em suas residências; quando a máscara dos chineses nos parecia um costume exótico, assim como comer pangolim que, graças a Deus, aqui não temos; quando nos parecia que os auxílios do governo era para os moradores das periferias, pobrezinhos; quando pensávamos que as inspeções de trabalho já se ocupavam da precariedade dos informais e de suas superlotações; quando ao escutar “filas de fome” pensávamos que era uma série distópica da Netflix.
A venda dos nossos olhos caiu muitas vezes e nos arrepiamos com a intempérie, mas a lucidez é melhor que o engano, e com a verdade vem a liberdade, como dizem que dizia Jesus.
A tumba dos Desalentados sem fronteiras, esse depósito de tinta de lula que vamos expandindo por todas as direções enquanto avançamos como os zumbis de The Walking Dead: “disse desde o princípio: ninguém aprenderá nada com a crise”, “já é tarde para frear a mudança climática”, “não há solução para tanto desastre”, “Fratelli Tutti? Pura utopia”, “por que apostas que vai chegar uma quarta onda?”, “dizem que para as novas cepas do vírus a vacina não serve”...
A tumba do apenas “devoto”: importante colocar a adoração eucarística em comparação com as tumbas porque ao entrarmos é uma alegria, escutarmos novamente o “te devoto, te adoro” e ver os jovens ajoelhados e em silêncio em custódia.
Mas, justamente porque é algo precioso, deve ser salvo de desvios perigosos: que o “te adoro” fique só no “te devoto”; que alguns celebrantes competem para ver quem consegue segurar o ostensório por mais tempo em elevação; que o movimento de adoração e de olhar para Jesus não acenda em nós o desejo urgente de viver como Ele uma vida “ex-posta”; que a sua Presença, tão acessível e disponível na simplicidade do pão, não nos contagie com a sua paixão pelo direito de cada ser humano de comer e viver; que não se prolongue na forma de uma consciência inquieta sobre as terríveis desigualdades acentuadas pela pandemia; que se torne uma bolha à prova do som e do vento do Espírito e nos asfixie com a fumaça do incenso.
São tumbas “da raiva atual” e há de se escapar delas às pressas, deixando os sudários cuidadosamente dobrados.
Vamos ler o Evangelho de Marcos até ao fim porque aí é possível a coincidência entre a condição de mulheres fugitivas com a de discípulas convocadas.
E como alegria extra, uma dica fantástica deste ano para o Anúncio de Páscoa: os bloqueios foram suspensos e podemos viajar livremente à Galileia.
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Mulheres fugitivas que são uma amêndoa a saborear - Instituto Humanitas Unisinos - IHU