26 Março 2021
“As extremas direitas europeias conseguiram se rearmar ocultando a mancha, e isso apesar do constante e forte trabalho de memória realizado pelos Estados. Na Argentina, resta-nos um espaço extravagante de liberdade e soberania: não as imitar, não permitir que se rearmem com gravata e sem uniforme. Por termos sofrido violações em massa aos Direitos Humanos, podemos ser a sociedade que não esquece, aquela que ensina a um mundo que se esquece que nada se reconstrói se apoiando no mal que devastou”, escreve Eduardo Febbro, jornalista argentino, em artigo publicado por Página/12, 24-03-2021. A tradução é do Cepat.
A Argentina de 45 anos atrás era muito mais que o espelho de si mesma. Aquele volume de horror e impunidade era o reflexo mais oculto do Ocidente. As potências encontraram na Argentina e na América Latina um punhado de palhaços sanguinários para fazer o trabalho sujo. Os Videla e seus acompanhantes eram os operários sem luvas de uma guerra que o Ocidente mantinha com a então União Soviética e seus satélites ideológicos.
A junta militar respondia localmente e com a devida obediência ao mandato que lhe havia sido inculcado, anos antes, na famosa Escola das Américas, nas academias militares de Washington, ou por meio dos manuais da contrainsurgência escritos pelos militares franceses, após suas experiências nas guerras da Indochina e Argélia.
Nunca escapamos do mundo, jamais estamos fora dele. Aquele militarismo feroz foi o reflexo da colonização ideológica, do mesmo modo como o menemismo foi a prolongação argentina da corrente ultraliberal dos anos 1990, que a irrupção de De la Rúa foi a reencarnação latino-americana do fluxo social-democrata que também percorria a Europa e que o liberalismo cheio de ódio e violência promovido pelo macrismo não é mais do que a interpretação tardia e local dos fascismos renovados e autoritários que surgem em vários pontos do planeta.
Isto não exime os assassinos da responsabilidade nos crimes de Estado cometidos durante os anos da ditadura, nem a sociedade e os meios de comunicação que os apoiaram de sua culpa coletiva. Ainda que confrontada, nenhuma sociedade sadia pode compactuar com essa barbárie uniformizada, nem aceitar o assassinato, a tortura e o desaparecimento como metodologia restauradora, menos ainda como ideal de um impossível progresso.
Qualquer sociedade que se entrega à adoração do mal absoluto ou que vê nele uma salvação, acaba devorada pelo mal, da raiz à superfície. Para sair dessa contaminação radical são necessários muitos anos e um trabalho obstinado de memória e pedagogia. Nesse processo, intervém uma das perversões mais dolorosas que se desencadeiam após as guerras. As vítimas, os sobreviventes, estão submetidos a um dever histórico: devem ensinar a coletividade a se defender do mal, devem transmitir a memória do mal para recuperar o bem e o sentido comum.
Em toda guerra, a inocência é majoritariamente culpabilizada. A inocência é, de fato, a principal vítima: os bombardeios matam mais inocentes do que protagonistas do conflito. Mas o pior não acaba aí. O escritor britânico Graham Greene escreveu em um de seus romances: “no momento da separação se sofre pouco. A comoção vem depois”. A comoção, em nosso caso, está em que a vítima, a inocência, deve perdoar a seus verdugos para que a sociedade possa continuar existindo. Perdão não é esquecimento, é ‘nunca mais’.
Mas essas duas palavras tão belas, tão cheias de amor ao futuro, de confiança, fazem das vítimas inocentes pedagogas da história que se está escrevendo. Sem memória, não há consciência e sem ela não há identidade. Assumir a memória, o paciente trabalho de reconstrução constante do relato do mal é uma necessidade vital. Não haverá ‘nunca mais’ se alguém não traçar constantemente a fronteira, se os grupos humanos não removerem os estragos da comoção acima da idiotice, indiferença, preguiça histórica, agressões e irresponsabilidade.
Visto do presente, o ontem da ditadura parece um pesadelo vomitivo. Que geração, que ideologia desvairada pode se identificar com aquele bando de coveiros tristes?
Quis ver o episódio sanguinário da ditadura a partir de outro suporte. Conheço um historiador francês especializado em América Latina que, há alguns anos, se propôs a compor um álbum de figurinhas com as fotos dos ditadores homicidas dos anos 1970 e 1980. Pacientemente, em ordem alfabética, colecionou imagens dos Videla, os Massera, os Pinochet, os Ríos Montt e outros sequazes contemporâneos. Fez um álbum e colocou as imagens como se fossem jogadores de futebol para compor, disse, o “time do mal”.
Eu tinha visto o álbum outras vezes, mas pedi a ele que me mostrasse de novo, justamente nesses dias em que se completam 45 anos do golpe de Estado de 1976. Foi uma experiência tripla, ao mesmo tempo de horror, de vergonha e de comédia trágica que emanava daquelas figuras patéticas. Foi como recorrer uma galeria de coveiros, um museu cinzento de criminosos tristes e indigestos, entorpecidos pela própria força da barbárie que encarnavam. Uma coisa velha, suja, fora do tempo, desgastada. Eram trapos de um Século que os chamou para esmagar a vida.
Nenhum ensaio, nenhum livro de história, nenhum documentário teria sido capaz de retratar com tanta exatidão e impiedade o que representavam os jogadores do “time do mal”. Seus rostos eram o antídoto visual da época em que viveram, a versão oposta e funesta daqueles anos de criatividade literária, musical e ideológica. Eram agentes vindos para matar o ser, a juventude, a liberdade e a emancipação. E nos mataram.
Senti que eram, para além de suas trágicas facções, uma mancha. Então, lembrei-me da frase final de um filme (Cleaner, com Samuel L. Jackson, Evidências de um crime, na versão em português) em que o personagem principal, um especialista na limpeza de cenas de crimes, diz: “as manchas têm memória”. Aquela fileira de figuras assassinas eram a nossa mancha. E entre essa mancha e nós, intercedia uma obrigação histórica.
Até o último suspiro, até a última palavra possível, nosso dever continuará sendo sempre trazer essa mancha à luz para que o esquecimento e a manipulação política e ideológica da memória não limpem a cena de um crime inapagável. Ainda que amadurecemos, ainda que superemos, ainda que julguemos os culpados, ainda que perdoemos, seus descendentes continuarão tentando obstinadamente apagar a mancha e dificultar a memória.
As extremas direitas europeias conseguiram se rearmar ocultando a mancha, e isso apesar do constante e forte trabalho de memória realizado pelos Estados. Na Argentina, resta-nos um espaço extravagante de liberdade e soberania: não as imitar, não permitir que se rearmem com gravata e sem uniforme. Por termos sofrido violações em massa aos Direitos Humanos, podemos ser a sociedade que não esquece, aquela que ensina a um mundo que se esquece que nada se reconstrói se apoiando no mal que devastou. Somos portadores de uma memória cheia de lições transmissíveis, e de uma capacidade inaudita para nos reconstruirmos apesar do voo contaminante dos especialistas em limpar cenas de crimes coletivos.
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Argentina. A mancha 'memoriosa'. Artigo de Eduardo Febbro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU