11 Dezembro 2017
Precisou esperar 40 anos pelo fechamento do círculo. Mas viveu para contá-lo. María del Rosario Cerruti, como outras mães de desaparecidos, estava juntando dinheiro em frente à Igreja de Santa Cruz na tarde de 8 de dezembro de 1977. Precisavam do valor para pagar um anúncio no jornal La Nación com os nomes de 804 desaparecidos. Dentro da Igreja, o infiltrado Alfredo Astiz, um capitão da Marinha que se fez passar por irmão de um sequestrado e havia conquistado a confiança das mães, deu o sinal da morte: beijou os que deviam ser sequestrados enquanto seus colegas observavam a cena, ocultos entre os fiéis que comemoravam o dia da Virgem.
A reportagem é de Carlos E. Cué, publicada por El País, 10-12-2017.
“Eram oito da noite, já estava escuro”, lembra María del Rosario. “Esther Careaga saiu, nos disse que já tinha o dinheiro, 12 pesos. Eu estava atrás. Vi que um homem a levou embora, eu fui jogada contra a parede. Gritavam andem, andem, é uma operação contra drogas! O terror que sentimos!”. Em três dias sequestraram 12 pessoas do núcleo fundador das Mães da Praça de Maio, entre elas Careaga e Azucena Villaflor, líder do grupo. Foi o crime mais terrível da ditadura. Já não eram guerrilheiros, mas mães que procuravam seus filhos. Sequestraram até mesmo duas freiras francesas que as ajudavam. Todos foram jogados no mar, vivos e drogados, de um avião. Mas alguns corpos voltaram à costa.
Foram enterrados como “NN” (Nome Desconhecido, da expressão em latim Nomen Nescio). Mas as outras mães e as famílias continuaram lutando. Até que em 2005, com a ajuda do Governo dos Kirchner, os corpos foram identificados. Astiz e outros foram os primeiros a ser condenados em 2011. E na semana passada dois dos três pilotos desse voo foram condenados à prisão perpétua. O terceiro morreu. A história pôde ser reconstruída nos mínimos detalhes porque, ao contrario das outras 4.000 vítimas estimadas dos voos da morte, os corpos apareceram. Foi encontrada até mesmo a documentação desse estranho voo noturno de três horas sem destino, pilotado por três comandantes.
“É mágico, as três mães caminhavam juntas, foram levadas juntas, jogadas juntas ao mar. Mas esse mar é muito rebelde e as devolveu juntas, não quis colaborar. E juntas foram enterradas”, emociona-se Nora Cortiñas, outra das fundadoras, que conseguiu sobreviver. Depois de 40 anos, essas mulheres já próximas dos 90 anos não se rendem e dedicam sua vida a impedir que os culpados fiquem livres. A Argentina é um exemplo mundial pelos julgamentos de lesa humanidade, que não param. “Dessa vez foram condenados os dois pilotos que as lançaram ao mar. Mas outros escaparam. No ano que vem serão presos. Não vamos parar. Eles pensavam que acabariam com as mães, mas não conseguirão nos submeter, se não formos nós serão nossos filhos e nossos netos”, diz Cortiñas.
Todas elas vão aos julgamentos. Olham na cara dos assassinos, lhes mostram as fotos de seus familiares. Querem comprovar em pessoa como são condenados. Eles, especialmente Astiz, as olham desafiadores através do vidro que os separam. Não negam seus crimes. Não contam nada, não ajudam a encontrar os corpos de outros desaparecidos que foram enterrados.
Para elas, ver o homem que se fez passar pelo desamparado irmão de um desaparecido para matar suas amigas é duríssimo. “Quando ele entra é como se eu visse um bicho nojento”, conta María del Rosario. “Nós o chamávamos de anjo loiro. Era muito bonito, muito agradável. Vinha às marchas e tínhamos medo de que o levassem. Nós pensávamos que nunca fariam nada às mães, porque éramos mulheres, mas ele era homem. Duas mães o acompanhavam ao coletivo para protegê-lo”.
Astiz chegou a um nível tal de confiança que Villaflor, a líder assassinada, esteve prestes a convidá-lo para dormir em sua casa. Em teoria estava sozinho e assustado, era de Mar del Plata, e não tinha onde se proteger. Seu marido a impediu. “Impossível, temos uma filha adolescente”, lhe disse. A jovem era Cecilia, que explica a fraqueza de sua mãe por Astiz. “Ele tinha a idade dos filhos desaparecidos, 26 anos. Para as mães era um rapaz desamparado. Ele se mostrava como um jovem bom, dizia que sua mãe estava doente em Mar del Plata. Minha mãe pediu permissão ao meu pai para levá-lo em casa e ele não deu. Por sorte esse torturador não dormiu em minha casa”.
O nível de ousadia de Astiz era enorme. Chegou a aparecer algumas vezes às reuniões com uma jovem silenciosa e triste que fez passar por sua irmã. Na realidade era uma presa. Seu filho havia nascido na ESMA, o centro de detenção mais conhecido da ditadura, estava em poder dos militares e a forçavam a colaborar. Astiz a dominava completamente após torturá-la à vontade.
Villaflor, as freiras e os outros presos do grupo dos 12 de Santa Cruz, como são conhecidos, foram levados à ESMA. Mas lá estiveram por poucos dias. Foram sequestrados em um final de semana e na quarta-feira já foram lançados ao mar. Lila Pastoriza, uma sobrevivente do centro de torturas, esteve presa lá junto com o grupo, e pôde falar com os sequestrados porque conquistou a confiança dos militares e era usada para servir mate aos recém-chegados. Por isso deixavam que retirasse o capuz. “Chegou um grupo e uma mulher começou a falar de Deus e a perguntar por sua irmã. Era uma freira! Depois vi Villaflor, não sabia à época quem era. Ela me disse que estava lá porque estava procurando seus filhos. “Não vou deixar de fazê-lo, continuarei lutando”, dizia. “Era uma mulher muito decidida”.
Até mesmo lá dentro, Villaflor parecia convencida de que os militares nunca matariam as mães. “Eram pessoas mais velhas, tinham a idade de nossos pais, isso nos impressionou muito, porque lá éramos todos jovens, militantes. Distribuiu entre os detidos uma lista que ela fez com nomes de desaparecidos para ver se estavam na ESMA. Mas não podíamos falar nem entre nós. Muitos não conheciam os nomes de outros companheiros”, lembra Pastoriza. No dia seguinte Villaflor já não era a mesma. Havia sido torturada. “Ela me disse que só queria dormir. Estava muito mal”. Pouco depois foram levados ao avião. Pastoriza diz que lá dentro ninguém sabia que os presos eram levados para serem assassinados. Acreditavam ou queriam acreditar na versão oficial: que eram levados ao sul. “Eu não sabia que eram mortos, se não teria ficado louca”, lembra.
“Jamais pensaram que ocorreria algo com elas. Em novembro de 77 eu parti ao exílio e minha mãe me disse que gostaria de ficar por lá, que sua ajuda era necessária. Eu a vi pela última vez em uma praia do Rio de Janeiro, veio trazer meu filho”, lembra Mabel Careaga, a filha de Esther, uma das três mães sequestradas. Ela acredita que Astiz as escolheu porque eram as mais ativas.
Careaga era bioquímica, e foi a primeira chefe do papa Francisco quando ainda não era padre. “Bergoglio entrou no laboratório como aprendiz, estava no colégio. Ele sempre diz que minha mãe lhe ensinou a seriedade no trabalho, a sensibilidade social. "Você precisa sentir a dor do outro como se fosse a sua', lhe dizia”, conta Mabel.
Astiz não conseguiu acabar com as mães. Pelo contrário. Fez com que ficassem mais fortes. Os sobreviventes e seus familiares dedicaram a vida a buscar justiça, a conseguir com que a Argentina fosse a referência mundial que é em direitos humanos. E continuarão: ainda existem 420 processos em andamento contra dezenas de repressores. Mas a sentença da semana passada, que pela primeira vez incluiu os pilotos e considerou comprovados os voos da morte, colocou um ponto final no crime mais cruel da ditadura. Mabel é taxativa: “É o círculo de horror que se fecha com justiça”.
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Argentina fecha o círculo do crime mais cruel da ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU