O pior ano de nossas vidas: “os trabalhadores e a natureza submetidos à dissolução física, biológica e mental”. Entrevista com Roberto Romano

Foto: Wikimedia Commons/Senado Federal

06 Janeiro 2021

 

Ainda não sabemos como 2020 entrará para a memória coletiva num tempo distante, inclusive por não sabermos se 2021 reservará uma sorte ainda pior para o conjunto da humanidade. Vivemos à flor da pele antigos slogans de que no modelo societário vigente o lucro está acima da vida. Até o ruralista Luiz Henrique Mandetta, médico que se aventurou no cargo de ministro da Saúde de um governo que amontoa crimes imprescritíveis, admitiu em seu livro que “o engenho não pode parar”. Mas a vida parou e as pessoas morreram. Fácil culpar o ocupante do Palácio do Planalto. Difícil é associá-lo com a Lei de Anistia de 1979 validada pelo STF, corte exclusivamente branca agora tida como a resistência democrática. Mais difícil ainda para alguns “democratas” é assumir a necessidade de colocar a saúde pública acima de tudo por um instante. Pois nenhum centavo foi acrescentado à saúde num ano em que a demanda por tais serviços esteve acima da capacidade de atendimentos, seus profissionais adoeceram em massa e sofrem esgotamento físico e mental. Porque não é aceitável mexer no teto de gastos (não destinados aos mercados financeiros) imposto por aqueles que enriqueceram na maior tragédia de nossas vidas. Vidas brasileiras não importam para os donos do Brasil. A conta da crença no discurso moralista daqueles que enfiaram 20 anos de ditadura em nossa história chegou de forma mais cruel do que se podia pensar. Na edição que encerra o ano, convidamos diversos autores a buscar uma elucidação do que acontece. E o filósofo Roberto Romano é nosso entrevistado especial.

 

A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 23-12-2020.

 

Na conversa, Romano recorre a sua base filosófica para explicar como se vive, na prática, o conceito de crise. Aquilo que sugere uma tragédia social e coletiva nada mais é, conforme suas referências etimológica e marxista, do que um reordenamento perfeitamente racionalizado por aqueles que detêm o poder e a riqueza.

 

“‘O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios’. O vocábulo essencial no trecho acima é o conceito de dissolução. Na língua filosófica alemã, ele tem origem na química: Auflösung. No processo de gerar sua riqueza a burguesia corrói todos os elementos naturais, todas as formas societárias, todos os valores”, disse Romano, mencionando passagem do Manifesto Comunista e sua explicação sobre as crises.

 

O contexto brasileiro é enquadrado de forma perfeitamente condizente com a ideia da dissolução – carro chefe da discussão aqui publicada -, até pela notória violência de nosso processo histórico, que parece se renovar diante das luzes midiáticas contemporâneas, mas no final das contas não possui nada de novo.

 

“Antes da eleição de Bolsonaro existiu a cultura da dissolução do Outro, decretado inimigo a ser abatido sem nenhum remorso. Economistas e jornalistas da morte (por exemplo, os programas policiais de rádio e TV) cumpriram o papel de alicerçar em almas já pervertidas pelo escravismo – que ainda mostra sinais no tratamento de indígenas e negros, cujos direitos são dissolvidos sempre –, o desejo da tirania, o culto da ditadura, o elogio da truculência, o aplauso aos assassinatos cometidos pela polícia, a irresponsabilidade de juízes etc.”.

 

Não há tempo a perder com as encenações de perplexidade de quem abriu os caminhos para que passássemos às mãos da camarilha absurda que governa o país. Fazem o serviço sujo que os verdadeiros donos do poder e seus ventríloquos aceitam de bom grado.

 

“Sou dos que não separam neoliberalismo (ou ultraliberalismo) do franco fascismo. As raízes teóricas encontram-se, como lembrei acima, em Carl Schmitt. A receita do jurista de Hitler ainda é a mesma: polícia, censura, repressão contra os descontentes com a ditadura do capital, liberdade absoluta para o mercado. A dissolução da natureza, dos corpos e mentes humanos, fim de todo direito trabalhista ou político para os não proprietários, eis a política neoliberal de cunho fascista. Bolsonaro pouco poderia sem Guedes e sua gangue de empresários, banqueiros, jornalistas, todos adeptos do Estado de exceção para garantir seus ganhos privados”.

 

Eis a entrevista.

 

Antes de março de 2020, a crise social e econômica brasileira já parecia não ter fim previsível. A pandemia do novo coronavírus adicionou a maior crise sanitária dos últimos 100 anos na humanidade e o que já era um quadro complicado se tornou absolutamente caótico e mortífero. No meio disso, estamos debaixo de um governo que boicota qualquer política séria de contenção dos danos e a própria organização do Estado. Como projetar no plano histórico o ano que se encerra, o que ele deixa para a sociedade, tanto objetiva como subjetivamente?

Vocês escolheram um estudioso da filosofia para a entrevista. Com a disciplina posta no índice dos inimigos públicos pelo atual “governo”, aproveito para discutir conceitos visando entender a nossa situação. Note que por duas vezes na sua pergunta foi usada a palavra “crise”. Ela vem do grego krisis, “instante de passagem, escolha, prova, decisão”. A cada átimo todas as sociedades sofrem o teste: preservam a vida e a existência dos indivíduos e grupos humanos? Em milênios a palavra “crise” sofreu uma subversão semântica. Ela compreendia a decisão de assuntos vitais no momento certo e se diferenciava do vocábulo krasis, confusão, indecisão. Hoje o primeiro termo diz o que antes o segundo enunciava: a crise, instante decisivo se degradou, pois evoca o pior desarrazoado. O verbo krinein significava “separar”, “triar”, “escolher” e finalmente “decretar”. Nos tratados hipocráticos o termo tem a conotação de induzir a doença para a sua fase decisiva. O bom médico sabe o instante em que a doença caminha para a morte ou para a persistência vital. Na cultura latina a noção de crise evoca “o julgamento (crise) nas doenças e, por metáfora do que ocorre nos tribunais, designa a pronta transformação da doença” (Pigeaud j. La crise, éléments d’histoire de la médecine). No historiador Tucídides a palavra “crise” surge como procedimento racional para estabelecer fatos e os ordenar em esquemas de desenvolvimento. Crise é o instante de passagem de um momento histórico para outro, abrindo as portas do futuro previsto cientificamente. Sem a noção de crise é impossível o pensamento de Maquiavel e da filosofia política moderna e contemporânea. Convido o leitor a consultar o excelente trabalho de Thierry Portal (“Crises et facteur humain”, um texto de 2009 facilmente encontrável na Internet).

O capitalismo tem a crise como origem e não apenas fim de seu processo. Por crises aquele modo de se apropriar das riquezas naturais e humanas cresce e se instaura contra os modos de produção anteriores ou concorrentes. Desde os escritos de juventude Marx atenta para o fato: o capitalismo é composto e movido por crises. Nas frases famosas, mas pouco meditadas do Manifesto Comunista: “a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto, as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios”.

 

 

O vocábulo essencial no trecho acima é o conceito de dissolução. Na língua filosófica alemã, ele tem origem na química: Auflösung. No processo de gerar sua riqueza a burguesia corrói todos os elementos naturais, todas as formas societárias, todos os valores. Marshall Berman usou tais frases de modo pouco rigoroso e sua versão do texto marxista se banalizou no Brasil. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. O texto de Marx, como aliás antes dele do seu mestre Hegel, é terrível e quase insuportável. Não se trata de um “desmanche”, mas de corrosão virulenta que desfigura as formas naturais e humanas. O termo usado por Marx para designar a ação da burguesia, perene destruição do mundo físico e humano, vem da química de seu tempo. Dissolução é palavra que, na época, define o próprio elemento químico quando unido ao calor (uma leitura da Filosofia Real de Hegel pode esclarecer o ponto).

A burguesia, com seu modo de explorar os elementos naturais para transformá-los em lucro (ente imaginário sem substância alguma, daí que Marx o chama de “vampiro”) dissolve ininterruptamente o que pode ser explorado para a acumulação dos que se proclamam “donos da natureza” (uma releitura da Crítica do Programa de Gotha faz-se urgente). O corpo dos trabalhadores, os elementos naturais, tudo passa a ser submetido à dissolução, desgaste, corrosão física, biológica, mental.

Falar em crise evocando o sistema capitalista significa imediatamente nos referir à inexorável dissolução (Auflösung) do planeta pelos donos do capital. Percebe-se o alcance do pensamento, em Marx: as crises que a Humanidade enfrenta desde os primeiros tempos modernos dissolvem a face do planeta. Nas guerras antigas, por exemplo, após o morticínio dos coletivos humanos, a natureza ainda apresentava suas características originais. Hoje a guerra assola e dissolve vastos territórios tornando-os inabitáveis, mortos. Se pensarmos no que ocorreu em Hiroshima a Nagasaki e compararmos aqueles eventos com o que pode ocorrer numa guerra nuclear hoje, percebemos o que significa o termo “dissolução”. Terminei meu livro sobre o Conservadorismo Romântico citando uma notícia na qual um cientista a serviço do capitalismo proclama as virtudes da bomba de nêutrons “porque ela dissolve as vidas humanas, mas preserva a propriedade”. A maravilha, digna do Dr. Strange Love, foi republicada pela Folha de São Paulo (13/09/1981. P. 14).

 

 

A natureza é dissolvida, os corpos dos animais e dos seres humanos são dissolvidos, o petróleo foi dissolvido até que seu uso se mostrasse pouco útil para o prolongamento futuro do lucro, o que já ocorrera com o carvão e outros itens naturais. É o que ocorre agora com a água, posta como algo a ser destinado ao lucro sem considerar que o planeta Terra, incluindo os entes humanos, são por ela compostos. As crises não são “tragédias” como tentam avançar o jornalismo irresponsável e governantes criminosos. Não há “normal” a ser retomado porque o “normal” é a dissolução planetária em nome do lucro. A essência do capitalismo encontra-se na crise. No século 20 houve a discussão (por exemplo entre Rosa Luxemburgo e Lênin) sobre os limites do capitalismo e a crise. Urge retomar tais estudos por uma questão de sobrevivência do nosso planeta e dos que nele habitam.

O neoliberalismo exacerba as marcas do capitalismo com violência inédita. Não por acaso o seu “laboratório” foi a ditadura Pinochet imposta pelos EUA, apoiada pela ditadura brasileira e argentina: os direitos civis foram dissolvidos, os direitos humanos mais ainda, os corpos torturados, as mentes aterrorizadas, tudo seguiu para a dissolução. O pior é que tal prática se estabeleceu como ética das classes ricas e médias que aprenderam não apenas a tolerar tais crimes, mas deles se tornaram cúmplices.

Antes da eleição de Bolsonaro existiu a cultura da dissolução do Outro, decretado inimigo a ser abatido sem nenhum remorso. Economistas e jornalistas da morte (por exemplo, os programas policiais de rádio e TV) cumpriram o papel de alicerçar em almas já pervertidas pelo escravismo – que ainda mostra sinais no tratamento de indígenas e negros, cujos direitos são dissolvidos sempre –, o desejo da tirania, o culto da ditadura, o elogio da truculência, o aplauso aos assassinatos cometidos pela polícia, a irresponsabilidade de juízes etc. Proust diz que a Senhora Swann “é toda uma época”. O mesmo podemos dizer, embora com o vômito na boca, que Bolsonaro é toda uma época. Ele começou na campanha da UDN contra Getúlio e o pretenso “mar de lama”. O disfarce do combate à corrupção ajudou e ajuda setores dominantes do capital a assaltar os cofres do Estado brasileiro e a reprimir aspirações da vida livre entre trabalhadores. A receita vem do nazista e campeão do direito reacionário Carl Schmitt: Estado total para reprimir revoltas populares e abertura máxima à “livre iniciativa”. A receita foi recomendada por criminosos como Hayek. Ela é usada e abusada no Brasil desde o golpe que destituiu Getúlio Vargas, com sua morte. Bolsonaro, Sergio Moro, Lava Jato, fascismos vários que infestam o país descendem da “moral” udenista que ajudou a dissolver os fundamentos de toda República em nossa terra.

 

 

O que vivemos em 2020 resulta da economia criminosa que, inclusive, controla a lógica capitalista em países ostentando orgulhosamente o título de comunistas. A China para começar. O PIB chinês atingiu patamares de fazer inveja aos imperialistas EUA. Mas os custos em termos ecológicos e humanos são incalculáveis. No Brasil a expropriação da natureza, como o agronegócio com seus venenos e uso irresponsável de terras, incluindo as fontes hídricas, soma-se à grilagem, à capangagem, às milícias cujo único signo é a caveira. O ano de 2020 bolsonarista resulta de uma política criminosa que, inclusive, cativou setores da esquerda quando ela estava no comando de estados e municípios.

Todos deveriam lembrar que Antonio Palocci foi promovido a persona grata pela burguesia nacional e internacional por ser o primeiro prefeito (do PT) a aplicar a política de privatização no setor mais estratégico hoje destinado à exploração privada, o de águas e esgotos.

O futuro, o futuro: sem romper com a lógica de privatização da vida em prol do lucro, seguiremos a burguesia que dissolve toda e qualquer esperança de vida no planeta.

Pandemias – e as teremos sempre mais e piores – vêm da dissolução do mundo, pois elas se relacionam diretamente à alimentação precária de trabalhadores aos milhões, os quais consomem a fauna e a flora por não terem acesso a alimentos produzidos para sua sobrevivência, mas para o mercado. Os plantios do mundo exalam odores da química, seguindo a tradição dissolvente exposta por Karl Marx. Nunca a polissemia do termo pharmakon, palavra grega que significa ao mesmo tempo remédio e veneno, foi tão evidente como em nosso tempo.

 

 

Interferência no aparato policial, colocação de agentes da Abin em órgãos diversos, ampla participação militar, mentiras sistemáticas nos pronunciamentos oficiais, fanáticos ideológicos e religiosos em órgãos fundamentais da organização social e nacional, facilitação do acesso às armas para suas bases sociais, sem falar nos evidentes esquemas de locupletação. Por que tudo isso foi permitido a Bolsonaro?

Na longa resposta anterior indiquei que Bolsonaro não caiu do céu como raio em dia límpido. Ele é produto de uma ampla e profunda cultura capitalista coberta pelo manto do moralismo. Os procedimentos ditatoriais e policialescos por ele empregados têm uma longa história, pois surgem com os bandeirantes e os capitães do mato, os jagunços e os capangas, a violência em estado puro. A cultura social brasileira é de violência das classes dominantes, violência que também é absorvida por vastas camadas de dominados.

 

 

O livro de Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) é essencial para quem busca compreender a “sociedade” brasileira. Quanto aos bandeirantes, não foi por acaso que os assassinos de 1964 escolheram o nome para batizar uma força de cunho fascista para destruir toda oposição ao regime. Bolsonaro foi precedido pela autorização, pelo Supremo Tribunal Federal, da Lei de Anistia. Tal lei preparou o retorno da censura, da tortura, da espionagem contra a cidadania que hoje assistimos.

Sem aquele crime do STF, Bolsonaro seria preso imediatamente ao fazer a apologia da tortura e dos torturadores em plena Câmara dos Deputados. Mas ele recebeu aplausos de vastas camadas dominantes e da classe média. Seu voto no impeachment de Dilma Rousseff seria sancionado com a prisão e a perda do mandato. Mas o STF deu-lhe, e também, para seus capangas (alguns sob a farda) licença para matar a frágil democracia.

 

 

Diante de toda essa exposição de abrangência histórica muito mais ampla, ainda faz sentido amarrar no mesmo pacote os últimos quatro anos, ou seja, de Temer para cá? As elites políticas e econômicas do Brasil, que tanto se esmeraram em destruir as experiências de recorte popular protagonizadas pelo PT, revelaram algo novo de si mesmas nesses anos?

Como sugeri acima, os setores dominantes nacionais usurpam a riqueza pública e as dirigem para os seus cofres privados. Eles usurpam os monopólios do Estado (norma jurídica, força física, impostos) em proveito de empresários corrosivos que visam apenas o lucro imediato. Retrato moralista e hipócrita dos “adversários do mar de lama”; dos que usariam a vassoura, sob Jânio, para “limpar” a sociedade e a política; dos que apoiaram o golpe de 64 para “salvar o Brasil da subversão e da corrupção”; dos que aplaudiram o “caçador de marajás”; como no caso de Dorian Gray, há sempre um lado não visto pela cidadania. Trata-se do apodrecido jeito de roubar a coisa pública.

Veja o caso de Sergio Moro: fingiu moralidade com seus cúmplices da Lava Jato. Usou da pior má fé e do atentado a todos os direitos de defesa para afastar Luiz Inácio da Silva das eleições de 2018. Assumiu sem rubor algum o cargo de ministro da Justiça de um candidato a ditador. Hoje ele entra numa lucrativa firma que “ajuda” empresas por ele destruídas. Ele aparece, ao lado de Luciano Huck, vulgar comediante, como possível saída “honesta” nas próximas eleições presidenciais.

 

 

Ironicamente, essa mesma elite não acaba nos atirando num saudosismo dos anos petistas e, dessa forma, fabricando um imaginário mais romântico do que realista a respeito dos governos deste partido, em especial Lula?

Os governos petistas cometeram erros graves. Um deles foi o de conceder dinheiro público para empresários que usaram aqueles recursos na compra de títulos do Tesouro norte-americano, detendo a produção. Tal prática criminosa ajudou a onda para o impedimento da presidente Rousseff. Também no plano religioso: o apoio aceito e trocado com um dos piores fomentadores de fanatismo ideológico no Brasil, Edir Macedo e seus comparsas. A foto da presidente na inauguração do “templo” de Salomão em São Paulo é constrangedora. Ainda será preciso fazer um levantamento prudente dos acertos e dos erros petistas. Aí, então, a cor rósea hoje projetada sobre eles pode esmaecer. Mas comparados à paleta de cores do Horror que hoje vemos, eles de fato merecem um desconto enorme na sua lista de erros, visto os seus acertos.

 

Diante do exposto e a esta altura dos acontecimentos, o que falar da cruzada anticorrupção protagonizada por vastos setores das elites brasileiras? O que sobrou desta bandeira?

Infelizmente, sobrou aquela borra ética purulenta inaugurada pela UDN contra Getúlio. Ela está no subsolo da sociedade, da política, da Justiça nacional. Ela ainda trará muito sofrimento para os “negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber), que são a esmagadora maioria dos brasileiros.

 

 

“Depois da corrupção”, apenas a agenda ultraliberal poderia nos salvar. O que falar deste escopo ideológico à luz do atual estágio histórico? O que vislumbrar para o Brasil caso essa agenda perdure mais alguns anos, quaisquer sejam as lideranças políticas da vez?

Sou dos que não separam neoliberalismo (ou ultraliberalismo) do franco fascismo. As raízes teóricas encontram-se, como lembrei acima, em Carl Schmitt. A receita do jurista de Hitler ainda é a mesma: polícia, censura, repressão contra os descontentes com a ditadura do capital, liberdade absoluta para o mercado. A dissolução da natureza, dos corpos e mentes humanos, fim de todo direito trabalhista ou político para os não proprietários, eis a política neoliberal de cunho fascista. Bolsonaro pouco poderia sem Guedes e sua gangue de empresários, banqueiros, jornalistas, todos adeptos do Estado de exceção para garantir seus ganhos privados.

O fascismo é arrogante por natureza. Guedes o provou na reunião “ministerial” em que Salles pregou o estouro da boiada e o pretenso ministro da economia elogiou a si mesmo por ter lido oito (8) livros sobre processos de crises em alguns países. Numa universidade decente a lista dos oito faria qualquer candidato ao mestrado receber uma grave reprovação. Palocci seguiu o receituário neoliberal. Parte das esquerdas com ele flertou. A Bula continua disponível para os políticos, juízes, militares que tentam dominar sem a legitimidade democrática.

As crises, inclusive e sobretudo na saúde, evidenciam a catástrofe das receitas fascistas/neoliberais. Caso tais práticas e teorias perdurem o genocídio praticado contra os indígenas e os negros, desde a Colônia, passará à ordem do dia universal nos tempos próximos. Aliás, quando um presidente trata uma pandemia como o faz o pequeno candidato a ditador e quando seu ministro da saúde(?) fica irritado com a angústia das vítimas, só podemos esperar o frio assassinato de massas como pauta estatal.

 

 

O filósofo Marcos Nobre afirma que depois de 2013 as mais velhas e viciadas expressões do poder, em especial os partidos, tão fortemente questionados naquelas jornadas de protesto, parecem ter se fortalecido e, por incrível que pareça, aumentado sua legitimidade representativa. O senhor concorda com essa noção? Aonde estão as novas energias da sociedade brasileira e suas possibilidades de construir um país mais justo, solidário, ético, ambientalista etc.?

Tenho muito apreço pelas análises de Marcos Nobre. Aprendo bastante com ele. No entanto, não concordo totalmente com sua posição. Os partidos continuam sua marcha para o puro e simples mercadejo de cargos e verbas junto ao Executivo (nacional, estadual, municipal). Quase todos eles não contam mais com militantes de base (inclusive os da esquerda), não renovam seus quadros dirigentes. Só o PSOL mostrou capacidade de conquistar a opinião e os votos programáticos. Os demais (inclusive alguns da esquerda) continuam cumprindo o papel de intermediários entre os Executivos, as oligarquias, a população.

Um raio-x em todos eles mostra ossatura carcomida, próxima à realidade prognosticada por Max Weber e Robert Michels: direções onipotentes que tudo decidem e jogam segundo os interesses “realistas” das conjunturas. Se alguns partidos reacionários como o DEM recebem maior número de votos, é porque cumprem de modo mais eficaz o papel de intermediários entre o Executivo ditatorial (gosto muito do artigo de Fabio Konder Comparato, “Réquiem para uma Constituição”), os oligarcas (notem os nomes dos “jovens” dirigentes políticos regionais: nada mudou salvo o “neto”, o “sobrinho”, na designação da família dominante) e a população.

Seguindo a intuição weberiana, nossos partidos são hoje cópias pioradas do “bossismo” partidário norte-americano. Eles são fábricas eleitoreiras sem compromisso ou responsabilidade social. Sou daqueles que não aceitam quantidade (número de votos) como relevância política.

 

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